Não escrever: breve ensaio sobre a impossibilidade
Por Matías Moscardi
Em seu poema
“Brisa marinha” Mallarmé condensa, numa imagem, o momento inaugural e
vertiginoso da escrita moderna nesse “papel vazio com seu branco anseio”. Aí
parece começar o ato criativo do poeta: no contraste entre o branco imaculado
da folha e a gordurosa tinta negra que, num pequeno big-bang caligráfico, dá
vida a um universo inteiro. Entende-se, então, que no imaginário romântico encontremos
o mito da origem do famoso “bloqueio criativo do escritor”. Se o poeta é um
“pequeno deus”, a folha em branco se converte no nada que enfrenta: um vórtice
retangular de celulose que, de sua condição estática e impassível, ameaça em
bloquear até mesmo o mínimo vislumbre de começo. César Vallejo começa um conhecido
soneto com estes dois hendecassílabos: “Quero escrever, porém me sai espuma, /
quero falar muitíssimo e me entalo”; no segundo quarteto, acrescenta: “Quero escrever,
porém me sinto puma; / quero laurear-me, mas me cinjo de alho”. Algo nestes
versos se cristaliza como um paradoxal tema literário da modernidade: escrever sobre não escrever.
Edmund
Bergler – um esquecido e remoto discípulo de Freud – aponta em Psicanálise do escritor [tradução livre]
(1949): “o escritor é um perpétuo delinquente acusado ante o alto tribunal de
seu inconsciente”. É precisamente neste livro onde aparece, pela primeira vez,
a expressão “bloqueio criativo do escritor”, também conhecida como “síndrome da
página em branco”. Basicamente, Bergler aplica ao terreno da criação literária
o conceito de “inibição” que Freud desenvolve em “Inibição, sintoma e angústia”
(1926), entendida como uma suspensão corporal ou mental de uma determinada
atividade física ou psíquica.
O realmente curioso
é que a etiqueta sintomática de Bergler prosperou e se popularizou, antes que
na literatura, no cinema: filmes que nos mostram, incansavelmente, a batalha de
escritores ultrapassados que não podem parar de jogar basquete com bolas feitas
de folhas, uma após outra, ao cesto de lixo, treinando pontaria. Talvez, ou
melhor, seguramente, existem muitos romances que têm como personagem um escritor
que não consegue escrever – agora mesmo recordo um, talvez O insólito esplendor (1977), de Stephen King – mas, por alguma
razão o tema parece funcionar melhor como tema em cena. Filmes, portanto,
lembro de vários; de Barton Fink
(Joel Coen e Ethan Coen, 1991), Desconstructing
Harry (Woody Allen, 1997), Finding
Forrester (Gus Van Sant, 2000), Adaptation
(Spike Jonze, 2002), Stranger than fiction
(Marc Forster, 2006) até o relativamente novo Limitless (Neil Burger, 2011). Como se no terreno da literatura não
escrever fosse, além de um lugar comum, uma verdadeira impossibilidade. Imagino uma razão possível: se num romance aparece
um escritor “bloqueado”, de imediato notamos o artifício, porque há outro escritor
por trás da cena – o autor – que efetivamente
escreve isso que lemos. Talvez, por esta mesma razão, também, os melhores
testemunhos de “bloqueios de escrita” se encontrem nos diários íntimos ou trocas
de correspondências, e não em suas obras propriamente ditas.
Numa de suas
cartas, por exemplo, F. Scott Fitzgerald confessa que “os escritores são como crianças:
nem sequer em circunstâncias normais são capazes de se concentrar em seu trabalho”.
Noutra, diz que “um escritor que não escreve é quase como um maníaco preso em
si mesmo”. Neste sentido, Franz Kafka é um exemplo de manual. Lemos em seus Diários: “Meu estado não é a infelicidade,
tampouco a felicidade, nem indiferença, nem fraqueza, nem esgotamento, nem
qualquer outro interesse – que é então? O fato de que meu desconhecimento se
relaciona com minha incapacidade de escrever”. Este “medo de escrever” – assim
o nomeia –, tal como sucede aos protagonistas de seus romances, faz com que a
escrita seja trâmite eternamente postergado em Kafka: seu próprio “processo”
dilatador, uma tartaruga tão próxima e lenta como distante. E ainda assim,
Kafka jamais deixa de escrever. Ao contrário, escreve muito. Então, o que é isso de não poder escrever?
O escritor
grego Vassilis Vassilikos, antes de conceber seu célebre romance político Z (1969), sobre o caso Lambrakis, escreveu
um extenso diário de sobre a dor pela morte de seu pai – publicado como Diário de Z (1971) – onde se refere à
impossibilidade radical de escrever este romance. Assim começa: “Logo fará
justo um ano que não escrevo nada”. A frase se torna, no mesmo instante falsa: como
o brilho dos fogos de artifício, extingue-se com seu estouro. Dito de outra
maneira: “não poder escrever” é o “impossível de escrever” da escrita. Simples:
o que não pode escrever, não se escreve. Há cena bonita no Diário de Z. Vassilikos quer contar à sua companheira uma ideia que
tem para sair do marasmo que lhe ataca mas ela o beija antes de dizer alguma coisa.
Depois lhe diz: “Quando quiseres contar-me o que escreves, nunca escrevas.
Assim, desta vez não quero escutá-lo”. Por que será que algo da escrita, de sua
condição de projeto, se desvanece ao contá-lo, inibe-se enquanto se pronuncia?
Conta-lo a alguém o tornará trivial, comum? Tudo o que qualquer um pode dizer
de seus projetos literários soará invariavelmente banal? Imaginam Alain
Robbe-Grillet contando a um amigo o tema de O
ciúme (1957)?
Num de seus cursos no College de France intitulado nada mais nada menos que A preparação do romance (1978-1980),
Roland Barthes se refere à possibilidade de não escrever como “a asa negra do
Infortúnio, mas também a doce asa da Sabedoria”. Na perspectiva de Barthes, não
escrever pode ser, ao mesmo tempo, uma forma de meditação que pretende
diminuir, a partir da passividade, o acelerado impulso criador do mundo que, em
alguns casos, finda por fragmentar a escrita e as obras, como essas porcas que
não param de estar frouxas em Tempos
modernos (Charles Chaplin, 1936). Por sua vez, em suas aulas sobre pintura,
Gilles Deleuze adverte seus alunos que não
existe tela branca, assim como existe nenhuma página em branco. A página e
a tela, diz com certeza, se encontram sempre saturadas, cheias. “Cheias de
quê?”, pergunta-se Deleuze. Do pior: estão inundadas, a priori, de clichês. Está aí o problema: escrever será,
fundamentalmente, superar, apagar, substituir. Escrever é, nas palavras de
Deleuze, “uma eliminação fantástica”. Por isso, ao contrário e contra o sentido
comum”, não escrever é já uma forma monopolizada
pela fatalidade da escrita.
Um dos exemplos
contemporâneos mais engraçados sobre esta fatalidade
da escrita culmina em duas obras geniais de Mario Levrero: O romance luminoso (2005) e O discurso vazio (2011). O contexto do
primeiro é memorável: Levrero acaba de receber uma bolsa de estudos da
Guggenheim para escrever O romance luminoso,
mas, quando já perto do fim do tempo acordado, não lhe vem uma ideia: está
absolutamente bloqueado. Entre a culpa e a despreocupação absoluta, começa um colossal
“Diário do bolsista” para ativar o hábito da escrita. Aí o vemos, preso em seu
escritório, perdendo tempo com velhos jogos do Windows, acumulando alternativas
para encontrar um método ótimo para melhorar seu iogurte caseiro, falando-nos
dos caprichos do Word ou perscrutando, todos os dias, uma pomba que visita sua
janela. A poucas páginas, Levrero adverte: “No mesmo instante me dei conta de
que será igual a um romance, queira eu ou não, porque um romance, atualmente, é
quase qualquer coisa que se ponta entre uma capa e uma contracapa”. Precisamente:
O romance luminoso é o grande romance
definitivo sobre o ato de não escrever, sobre a impossibilidade própria de escrever.
Em O discurso vazio, o interior se
transforma, diretamente, numa questão de exercícios caligráficos: para sair do “bloqueio”,
Levrero imagina que o mais adequado é levar uns cadernos manuscritos para
observar, nada mais, que a forma de sua letra. Onetti dizia que o êxito do escritor
é haver escrito. A resposta de Levrero é radical: para preencher o desejo de escrever,
bastam alguns rabiscos na página.
Um provérbio
zen que pode se aplicar quase a qualquer coisa diz assim: o princípio das
montanhas são as montanhas; logo, as montanhas deixam de ser as montanhas; no
fim, as montanhas voltam a ser montanhas. Algo parecido sucede com a página em
branco: no princípio está vazia; depois, vem o símbolo trágico de uma angústia
tormentosa e intransponível; no fim, sem pompas, volta a estar vazia: disposta para
a escrita.
* Este texto é a tradução de "No escribir: breve ensayo sobre la imposibilidad".
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