Jamais o fogo nunca, de Diamela Eltit
Por Pedro Fernandes
O título do
romance mais conhecido de Diamela Eltit é retirado do poema “Os nove monstros”,
de César Vallejo. A leitura integral do texto, que não está dissimulado na obra
da escritora chilena porque os dois versos que formam sentido com o sintagma nominal
aparecem logo à entrada como epígrafe, antecipa o conteúdo de Jamais o fogo nunca. Pode-se afirmar, inclusive,
que o poema se constitui em chave de leitura indispensável porque entrar na
narrativa do romance sem esse conhecimento pode significar um tempo maior para captar
quais os seus sentidos. O poema em questão assinala o tema da dor e se constitui
numa espécie de grito do poeta sobre a indignidade do seu tempo, quando homens
se distanciam perigosamente da humanidade e se constituem em carrascos dos seus
semelhantes, impondo sobre uns aos outros o opróbrio e o horror.
Obviamente
que este estágio de segregação aparece em Jamais
o fogo nunca não se constitui de maneira íntegra a retomada deste estado
poético – uma vez que, ante o abandono do outro à dor, Diamela Eltit constrói uma
personagem que se dedica de maneira, mesmo que suspeita, aos cuidados integrais
de um homem cujo passado escurecido pela sua própria condição de memória
alheada guarda fortes indícios de imerecimento do gesto. Não é que essa figura
seja dotada de amor ou de ser condicionada por uma razão cristã capaz de induzi-la
a este gesto em nome de uma redenção. É sua profissão o cuidado de enfermaria
daqueles que estão em vegetação ou quase nesse estado como é o caso do homem
seu companheiro com quem dialoga continuamente e de quem só recebe resmungos,
monossílabos ou gestos de reprovação e violência – estes últimos, um dos indicadores
sobre a relação passada entre os dois elementos contributivos para pensarmos numa posição contrária dela para com ele. O outro maior é a maneira fria com
que trata o estado grave de doença do filho: preso à obsessão de que teriam
suas vidas barradas da liberdade ou mesmo da existência se suas identidades
fossem reveladas – mais ele que ela – esse fim trágico não deixa de ser recordado
com remorsos por essa personagem que também conduz o fio da prosa e é fundamental
para se compreender certo estágio de claustro e anomia que tudo contamina,
mesmo a atmosfera dos acontecimentos marcadamente presa em situações-tipo, como
a noite, o frio, a chuva e contínua repetição dos mesmos gestos, como são
retomados na narrativa ora pela objetividade com que são descritas ora pela
maneira precisa com que são despenhados pela personagem.
A condição
de vigilante da vida desse homem e a quem o direito de voz constitui em duas características singulares nesse romance se considerarmos o contexto suposto. A
suposição, aliás, é outra determinante de Jamais
o fogo nunca: isso não apenas pela indeterminação temporal, mas porque tudo
aparece filtrado por uma consciência perfeitamente marcada por situações adversas
do seu passado e que tem no presente alguma estratégia de esclarecê-las ao seu
favor. O contexto suposto se constitui pelo estabelecimento determinado pelo
leitor sobre devido ao lugar na história ocupado por essas personagens – o que
pode ser variável. Aqui consideramos que ao recobrar a interrogação sobre quando
morreu Franco, o sanguinário ditador espanhol, ainda na introdução do romance,
logo nos colocamos no contexto chileno, o de quando Augusto Pinochet, entre os
anos de 1973 a 1990, dominou o país natal de Diamela Eltit. Outra marca é a contínua
reiteração por parte da narradora sobre quando se tornou militante numa das células
de combate, ocasião quando se envolve com o homem que hoje se mantém enfermo e cujas
posições e condutas do passado são sempre duvidosas aos olhos atuais, passado
os anos de horror. Assim a memória dessa figura inominada, que perscruta minuciosamente
a vida tacanha mais presa que livre num apartamento de quarto-e-banheiro é o
que determina a existência dos acontecimentos e, por sua vez, do romance. Esta
é outra determinante que reporta a um passado de silenciamento imposto
sobretudo às mulheres.
Ainda sobre
a opressão recorrente em todo estágio de regressão das liberdades, não deixa de
ser este um romance sobre a aprendizagem dos usos e subterfúgios da linguagem. Isto
é, do estabelecimento de uma compreensão sobre o papel desta no enforme da
realidade e da fabricação das verdades que a determinam. Basta perceber a
observação construída pela narradora sobre o discurso da mídia jornalística, como
esta dispõe as notícias e como os militantes apreendem tais estratégias discursivas
restritas a especialistas em usos e manipulações linguísticas. Reconhece-se o vital
papel de certa compreensão marxista segundo a qual nenhuma realidade é alterada
se não passar por uma renovação da linguagem que determina; os estados totalitários
parece que perceberam isso de maneira bastante anterior às massas e por razões
diversas que vão da situação de instrução às de condição financeira de
manutenção da propaganda capaz de impor e propagar suas ideologias bem como a visão
de verdade única. Obviamente, então, que apenas a compreensão sobre tais
estratégias não é o suficiente para subversão da ordem e a narradora observa de
maneira desencantada: “Na verdade, nos esquivamos da realidade de cada uma das
décadas [as do regime] só pudemos participar de ser perímetro como ínfimos
roedores em perpétua fuga”. E denuncia, mais adiante: “Vi ou vimos, já não sei como
ser justa, a fragilidade da máquina humana desprezível, comum, mecânica, uma
forma primitiva e incessante, geradora do pior tipo de exploração, uma produção
meramente orgânica que estava ali só para servir à sua própria espécie, as espécie
humana. Sim, uma maquinaria seriada, multitudinária, que existia para colonizar
a si mesma, a espécie humana, digo, dissemos, num procedimento que não era
sequer complexo, e sim abusivo, pelo que escondia. O que se escondia?, o que se
elide, que o corpo, os inumeráveis organismos numa cadeia de produção que tinha
um componente alienante, imperdoável e injusto.”
Assim, os cuidados
com o corpo doente e a repetida menção a ele tornam-se, neste romance, metáfora
para a composição de um relato sobre o extenso processo de domesticação dos corpos
imposta pelos poderes sectários. Processo que resultou na morte de muitos e na
falência de outros cujas sequelas carrega-se como marca física ou psicológica. A
obsessão da narradora com a ordem e a higienização dos corpos figuram, portanto,
como reflexo da ordem maior que impôs a todos continuísmos de poderes, suas células.
Por nos referirmos a este nome e porque sublinhamos a presença do corpo doente
em Jamais o fogo nunca, um traço que
irmana a narrativa ao poema de Vallejo, a narrativa repete-o com diversos sentidos:
o sentido original, de parte constitutiva do corpo humano, mas a conotação que apresentamos,
isto é, do indivíduo enquanto extensão da ordem determinada pelo poder dominante
e célula enquanto organização de combate a esta ordem. Entre o biológico e
histórico social estabelece-se uma correlação cujos efeitos de significação
agora óbvios não carece de explicação.
A doença dos
corpos apresentadas no romance também encontram relação com o contexto pós-histórico
ditatorial. A paralisia que se acompanha em sentido à inércia, à afasia e à
anomia constitui-se no estádio de repouso porque passam os corpos depois da
longa exposição na luta e na confirmação de uma vitória sem vitória, aquilo que
de alguma maneira significou o ponto final dos regimes autoritários na América
Latina – ora pelo enfraquecimento físico-biológico dos déspotas pra por sua
morte, o que resultou na variedade de acordos institucionais que em muitos casos
(sobretudo no Brasil) parece mais uma decisão dos próprios poderes no arrefecimento
das forças que numa derrota pela luta popular. A célula, então, se mostra
desintegrada, como signo da sobreposição do indivíduo sobre a coletividade.
Isto é, as organizações celulares dos tempos de união contra o despotismo estão
reduzidas às células enquanto unidades, logo enfraquecidas como as de um corpo
doente. O acesso à reflexões desse tipo só é possível graças ao estilo meditativo
de uma narrativa interessada em captar e traduzir o mínimo detalhe – um
trabalho de perscrutação indireta semelhante ao estilo empregado por Clarice
Lispector em algumas de suas obras, como A
maçã no escuro; “quero que os minutos passem íntegros, cada um deles, sem
esquivá-los, sem renúncia possível”, diz a narradora numa de suas reflexões
metatextuais.
Enfim, nada
é gratuito em Jamais o fogo nunca. E
nada está ao primeiro alcance, porque Diamela Eltit foge – de maneira magistral
– de fazer um romance que só objetivamente recuperaria, como milhares escritos
depois dos regimes, o panorama histórico, político e social de um passado que
as marcas ainda estão muito à vista de nós latino-americanos e que em alguns casos
se repetem, agora por outros meios, como pelo discurso da legalidade nos tribunais
formados por juízes de exceção. A escritora chilena buscou captar como o poder
não é apenas um exercício que se manifesta na ordem, mas deixa sequelas
irreparáveis nos corpos. Um corpo dócil é uma célula doente da sociedade,
porque nada se faz sem revolução e sem unidade coletiva. Em parte, traduz-se o
paroxismo dos versos de César Vallejo: “Jamais o fogo nunca / fez melhor seu
papel de morto frio”. Ao dizer das cicatrizes e não de um contexto, Jamais o fogo nunca se constitui numa obra
continuamente atual, porque essas [as cicatrizes] são decorrentes de modos variados
da imposição de homens contra homens. E, ao que parece, como seguramente repara
a narradora deste romance, vimos atravessando tempos de fogo morto frio.
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