Elogio ao contador de histórias


Por José Manuel Fajardo


O escritor Italo Calvino.

É difícil determinar qual é o lugar, o alcance, a importância que a literatura tem para os seres humanos. Poderia se pensar que na realidade é um assunto que concerne basicamente à maioria formada por leitores de livros. Talvez, tomando nota dos tempos audiovisuais em que vivemos, poderia se ampliar essa influência aos que desfrutam dos filmes e séries de televisão que se inspiram em romances ou em obras para o teatro. Esses cálculos, por sua vez, sempre são suspeitos, porque a literatura, em sua dimensão narrativa, ocupou e ocupa um lugar central na vida de toda a humanidade: leitores e analfabetos, curiosos e não-curiosos, ricos e pobres.

Como dizia uma personagem de William Shakespeare, a vida é um conto cheio de som e fúria contado por um louco. Talvez a crueldade, a brutalidade e a loucura não façam parte necessariamente da vida, mas o que não resta dúvida é que esta é sempre para os seres humanos um conto, um romance, uma narrativa construída pela memória. Desde quando aprendemos a manejar as primeiras palavras, já sentimos a necessidade compulsiva pela narração. E o pedido “Conta uma historinha!” é patrimônio de todas as crianças do mundo, indiferentemente sua nacionalidade, raça ou estrato social. Bruno Betelheim estou em seu Psicanálise dos contos de fadas o papel formador dos contos infantis na construção da personalidade e os grandes compiladores dos contos populares (que em grande maioria vêm refletir sobre a cultura de nossa civilização), como Charles Perrault ou os Irmãos Grimm, compreenderam que essas narrativas essenciais constituíam a dorsal da percepção de mundo nas sociedades de então.

São muitos os autores que refletiram sobre a literatura, mas ainda, em minha opinião, as reflexões literárias e as críticas mais interessantes são aquelas realizadas por escritores e a razão disso me parece evidente: falam do que conhecem não apenas de forma teórica mas também empiricamente. Um desse autores foi Italo Calvino, quem ressaltou o valor literário e cultural (no sentido mais amplo dos termos) desse tipo de literatura narrativa, popular e iniciática nos diversos prefácios que escreveu para diferentes compilações de contos populares ou em artigos sobre livros de ensaio que estudam estas formas narrativas, como é o caso do ensaio de Vladimir Propp, As raízes históricas do conto maravilhoso. Num desses textos, o leitor tem a ocasião de acompanhar o discurso de um excepcional contar de histórias sobre as fabulas que lhe ensinaram a arte de contar, pois não em vão afirma Calvino que “se me senti atraído pelos folktales, pelos fairytales, não foi por fidelidade a uma tradição étnica nem pela nostalgia das leituras infantis, mas pelo interesse estilístico e estrutural, pela lógica essencial com que são contados”. Um interesse que ele próprio dirige em relação às fábulas populares italianas, francesas, africanas, alemães ou irlandesas.

Um interesse absoluto, pois para Calvino, a aura das antigas fábulas, por remotas que sejam geográfica e culturalmente, se inscreve profundamente na cultura moderna e se deixa sentir inclusive na linguagem onomatopeica de figuras da nova cultura popular da HQ, como por exemplo Mickey Mouse, porque  “o roteiro das HQs estadunidenses segue muitas vezes o modelo da dos negros, rico em modismos e usos todavia da tradição africana, da época de seu êxodo como escravos”.

A influência dessas fábulas sobre as que reflete é patente também na própria obra de Calvino que tende a tomar uma forma fabuladora. As histórias de O visconde partido ao meio, onde uma bala parte em dois, física e moralmente a personagem; de O barão nas árvores, onde um jovem inteligente se refugia nas copas das árvores para a partir dali poder entender o mundo; e de O cavaleiro inexistente, em que a armadura fazia anda em busca de algo com que preencher o vazio da sua vida, não são modernas fábulas? De igual maneira, as histórias As cosmicômicas com sua personagem de nome impronunciável, Qfwfq, que está em todos os lugares, desde o nascimento da Lua à morte dos dinossauros, são fábulas filosóficas e científicas; e a conversa entre Marco Polo e Kublai Kan em As cidades invisíveis é uma grande fábula sobre a viagem e sobre os cenários da vida humana em comunidade.

É que o legado da literatura narrativa, que conta histórias, cheias de som e de fúria ou de alegria e exaltação ou de mistério e fantasia, não é o mero divertimento, como muitas vezes se tem considerado, mas toda influência dos contos confrontam o leitor com decisões que o inquietam e com personagens que terminam por se interiorizar como modelos humanos. Dificilmente se encontrará hoje na Europa um cidadão que, por escassa que seja sua formação cultural, não saiba quem é Peter Pan ou o capitão Nemo ou Robin Hood. E com eles, Dom Quixote e Robinson Crusoé e Ulisses. Como apenas não haverá quem não saiba de prostitutas e corvos, crianças perdidas em bosques de terror e laboriosos animaizinhos que trazem a fortuna, ou a infelicidade conforme sejam os propósitos que se guardam no coração do viajante.

As personagens literárias nos acompanham desde a origem de nossa cultura (afinal de contas, o herói Ulisses é o pai primeiro desse arquétipo de narração que faz da viagem e da aventura as ferramentas com que armar a narrativa, e de sua sábia disposição no tempo e na memória a arte da construção do relato).  São essas criaturas da fantasia narrativa, desde sua expressão mais popular ou mais arcaica ao moderno mundo do romance, as que como as cartas noutro livro de Italo Calvino, O castelo dos destinos cruzados, nos servem para nos contar metaforicamente nossa própria vida. O mesmo Calvino definia o escritor como “um mágico ou ilusionista que dispõe sobre sua bancada certo número de figuras e que as movendo, conectando-as, intercambiando-as, obtém certa quantidade de efeitos”. Os personagens são cartas essenciais com os quais, no final, se levanta o castelo de toda invenção literária.

* Esta é uma tradução de “Elogio del contador de historias”, publicado em zenda.



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