Advertência e ruminação: breves notas sobre Esaú e Jacó, de Machado de Assis
Por Guilherme
Mazzafera
Cressida Campbell. |
Boa parte do
que hoje se entende por teoria do romance decorre do posicionamento dos autores
em prefácios que, muitas vezes, cumpriam a função de justificativa para o
empenho da pena em uma forma nova, arredia a métricas e poéticas, dada a
enchimentos e digressões e, acima de tudo, que carecia do caráter sério que os
gêneros estabelecidos pelas preceptivas emanavam e exigiam. Embora se possa
vislumbrar no século XIX – o “século sério” na poderosa definição de Franco
Moretti – um momento de supremacia da forma em sua afirmação de pintura da
vida, o recurso dos prefácios e advertências permanece como elemento poroso que
reforça ou, nos casos mais interessantes, contesta seu próprio anseio mimético.
Nos romances
de Machado de Assis, o prefácio, prólogo ou advertência ao leitor tem certa
composição proteica. Em Ressurreição (1872), seu primeiro romance, escutamos a
voz do autor empírico que percebe a obra que oferece ao público como “ensaio em
gênero novo”, em que busca, como princípio organizador, “o esboço de uma
situação e o contraste entre dois caracteres”, inspirado pelos versos
shakespearianos de Medida por medida que o autor deseja “pôr em ação”. Negando
o romance de costumes, Machado explora os atritos e desencontros amorosos entre
a viúva Lívia e o ciumento Félix, delineando a possibilidade de um romance de
análise e dissolvendo, no próprio prólogo, a feição característica desse tipo
de recurso, visto como “arrebiques de dama elegante, que se vê ou se crê
bonita, e quer assim realçar as graças naturais”, ao mesmo tempo em que
corrobora certa feição recorrente de falsa modéstia, ao dizer que o livro vai
“despretensiosamente às mãos da crítica e do público”. Tal lugar-comum, no
entanto, ampara-se em uma frequente preocupação de Machado quanto ao que pensa
o leitor (há leitores?) e sobre a emergente necessidade de se construir um
campo efetivo de crítica literária nacional – na qual o próprio Machado assume
papel fundante –, uma vez que, como ele observa em “Instinto de nacionalidade”,
“é mister que a análise corrija ou anime a invenção [...] que o gosto se apure
e se eduque, para que a literatura saia mais forte e viçosa, e se desenvolva e
caminhe aos altos destinos que a esperam”.
Nos romances
seguintes, pertencentes juntamente com o anterior ao que a crítica (com algum
respaldo do próprio autor) acostumou-se a referir como “primeira fase”, não se
observam grandes mudanças: A mão e a luva (1874) apresenta um Machado que se
desculpa pelos defeitos da “novela” em função da apressada publicação em jornal
(outro recurso recorrente) e garante que, se fosse de outro modo, entregaria ao
leitor um livro mais bem acabado e com caracteres mais coloridos e não apenas “esboçados”.
Na nota à segunda edição, de 1907, Machado assevera que eliminou apenas quinze
linhas e corrigiu erros tipográficos, não alterando o romance, pois, como
autor, “se não lhe daria agora a mesma feição, é certo que lha deu outrora, e,
ao cabo, tudo pode servir a definir a mesma pessoa”. Helena (1876) ganha uma
advertência só em nova edição (1905), em outro momento de composição
machadiano, do qual o autor olha com certo afeto para o romance em seu “eco de
mocidade e fé ingênua”, arrematando, de modo quase incontestável, que “cada
obra pertence a seu tempo”. Iaiá Garcia (1878), por fim, não apresenta
advertência.
Entre muitas
outras coisas, Memórias póstumas de Brás Cubas representa um ponto de virada no
próprio modo de conceber tais advertências, pois agora quem se dirige ao leitor
não é mais o autor empírico Machado de Assis, e sim o autor ficcional Brás
Cubas. Em “Ao leitor”, Brás especula sobre a existência de leitores para seu
livro (“Talvez cinco”): preocupação real em um país essencialmente analfabeto,
mas também relacionada à novidade de uma “obra difusa”, que partindo da “forma
livre” de Laurence Sterne e Xavier de Maistre, acrescida das “rabugens de
pessimismo”, acaba por mesclar a “aparência de puro romance” com a negação do
“romance usual”. Haveria leitores para tal empresa? Reconhecendo o difícil da
tarefa, Brás diz que um dos meios de angariar a estima alheia é furtar-se ao
“prólogo explícito e longo”, pois o melhor prologo é o que diz mais com menos
e, em grande medida, o faz “de um jeito obscuro e truncado”. O que resta,
portanto, é a obra, e a “obra em si mesma é tudo”. O que resta, portanto, é o
leitor: Brás ameaça-o com um piparote, repreende-lhe a frivolidade e acusa-o de
defeito supremo do livro. Mas nunca o esquece.
Quincas
Borba (1891) não possui advertência, ganhando um prólogo só na terceira edição,
de 1899, em que Machado indica a rapidez com que a segunda esgotou e cita
textualmente a sugestão de um amigo para um fecho de trilogia com um novo
romance que teria Sofia como protagonista. O autor revela ter considerado a
ideia, mas percebe, ao reler as páginas de Quincas Borba, que tal ideia não se
faz mais acicate, pois Sofia está nele por inteiro. Dom Casmurro (1899) também
não apresenta advertência, mas o autor ficcional, Bento Santiago, passa os dois
primeiros capítulos (“Do título” e “Do livro”) discutindo o estatuto e o escopo
do livro que o leitor tem em mãos.
Em Memorial de Aires (1908), nono e último
romance de Machado, a advertência recupera a assinatura M. de A. presente em Ressurreição,
mas aqui ela se torna prenhe de ambiguidade: o próprio Machado de Assis, autor
empírico? Um excerto de obra maior que aqui se assina Memorial de Aires? O
personagem Marcondes de Aires? As evasivas incorporam-se à linguagem na
explicitação do olhar que moldou o Memorial, em claro recorte de outro Memorial,
mais amplo: “Tratando-se agora de imprimir o Memorial, achou-se que a parte
relativa a uns dois anos (1888-1889), se for decotada de algumas circunstâncias,
anedotas, descrições e reflexões, pode dar uma narração seguida, que talvez
interesse, apesar da forma diário que tem” . Quem achou? Quem decotou, editou o
que lemos? Parece ser o mesmo autor de Esaú e Jacó (1904), romance anterior e
intimamente imbricado com o Memorial, mas deste sabemos menos ainda (leia-se,
do autor ficcional). O mais curioso, no entanto, é que contrariamente àquele
romance, que nos chega em forma mais propriamente narrativa, de “narração
seguida”, o Memorial assume a forma diário já que “Não houve a pachorra de
redigir à maneira daquela outra [narração] – nem pachorra, nem habilidade”.
Esta especificação formal, mais do que a justificativa, é decisiva, posto que
intimamente ligada a seu conteúdo. Na concisão da ambiguidade, a narrativa
fragmentada do Memorial é simultaneamente respeitada e devassada – “Vai como
estava, mas desbastada e estreita, conservando só o que liga ao mesmo assunto.”
–, sendo extraída de uma totalidade maior, o grande Memorial, que salpicava algumas
passagens de Esaú e Jacó que não são recuperadas no romance final em função da
unidade do assunto. Este resto do todo, diz M. de A., “aparecerá um dia, se
aparecer um dia”, contingência e fragilidade imanentes ao diário como forma.
A advertência
ao leitor de Esaú e Jacó é, possivelmente, a mais curiosa e original. Ela recupera,
em alguma medida, um procedimento já antigo e gasto sobre a origem e
verossimilhança daquilo que se narra: o manuscrito encontrado. No caso,
trata-se do sétimo e último volume das obras do Conselheiro Aires, volume este
intitulado justamente Último. Tratando-se de uma parte de um conjunto maior de
obras, referida constantemente no romance como o Memorial do Conselheiro, o
leitor de Esaú e Jacó tem apenas acesso parcial a tal totalidade, o que reforça
o movimento de certo modo caprichoso de um narrador em terceira pessoa coetânea
aos eventos (que narra “daqui”, do Rio de Janeiro) que, por vezes, fala de si
mesmo e se crê plenamente autorizado a narrar o que nos conta – “mas eu, amigo,
eu sei como as coisas se passaram, e refiro-as tais quais” –, embora peça ao
leitor, no mesmo movimento, olhar atento para tudo que é preciso explicar:
“Quando muito, explico-as, com a condição de que tal costume não pegue.
Explicações comem tempo e papel, demoram a ação e acabam por enfadar. O melhor
é ler com atenção.” Embora não seja possível, como em Brás Cubas e Dom Casmurro,
determinar com alguma exatidão a voz que narra os eventos, creio ser possível
notar uma aproximação de perspectiva com o Conselheiro Aires personagem, a quem
é dado o arremate do livro em sua aceitação de uma opinião alheia que sabia
descabida (que a nova rusga entre os gêmeos Pedro e Paulo, cuja animosidade
uterina se espraia como fio narrativo central, devia-se a disputas de herança)
para “evitar debate”. Se a advertência é
assinada por um editor que não revela seu nome, mas que crê ser justificável
publicar a narrativa em separado do Memorial por ver entre tais obras
diferenças de natureza (narrativa x diário), de modo que a publicação da
narrativa após os volumes dos diários não seria natural – além de atribuir à
narrativa o título autorizado por palavras ditas pelo próprio Aires personagem –,
talvez seja possível procurar nas qualificações deste sobre a atividade
diplomática o movimento constitutivo desse narrador: a vocação de descobrir e
encobrir, lembrando que o leitor atento, ruminante, “tem quatro estômagos no
cérebro, e por eles faz passar e repassar os atos e os fatos, até que deduz a
verdade, que estava, ou parecia estar escondida.”
A curiosa
advertência de Esaú e Jacó é apenas o pórtico de um verdadeiro redemunho de
instâncias que constroem os sentidos da indeterminação e da dúvida sobre o que
se narra no romance, algo presente desde o título. Após uma série de romances
que estampam na capa o nome ou alcunha de seus protagonistas (Helena, Iaiá
Garcia, Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro), Machado instaura no título
uma matriz narrativa que se projeta sobre outras sucessivamente. Ao feixe
alegórico do Antigo Testamento que remete à disputa pela primogenitura entre os
irmãos Esaú e Jacó sucede o verniz cristão do nome dos personagens centrais, os
gêmeos Pedro (monarquista) e Paulo (republicano), nomes fundamentais dos
inícios do cristianismo e que efetivamente protagonizaram divergências sobre a
inclusão direta dos gentios no seio do cristianismo nascente (posição de Paulo)
ou sobre a necessidade da conversão anterior ao judaísmo para tomarem parte,
posteriormente, nas comunidades cristãs (posição de Pedro).
O
deslocamento de referenciais continua no próprio eixo familiar. O nome da mãe
dos gêmeos, Natividade, remete ao nascimento de Cristo; o do pai, Agostinho, a
um dos nomes fundamentais da Patrística, enquanto o sobrenome, Santos, à
diferença, à pluralidade e à reversibilidade dentro de um mesmo veio religioso.
No entanto, a despeito da ambiência católica, as incertezas sobre as disputas e
sobre o futuro dos gêmeos levam os pais a recorrerem a meios alternativos de
religiosidade, como a consulta à cabocla do Castelo por parte da mãe no
capítulo de abertura, e à doutrina espírita de Plácido, por parte do pai, sem
respostas definitivas. Por fim, o interesse amoroso simultâneo dos rapazes,
Flora, evoca o nome da deusa romana das flores e jardins, remetendo, portanto,
a uma cultura pagã e politeísta, em que a pluralidade é dado constitutivo.
Ao mesmo
tempo em que reforça a porosidade das posições e, “guardadas as devidas
proporções”, sua permutabilidade – a mudança de regime político, do Império
para República, expressa pelo pesar financeiro de Custódio na troca do escrito
da tabuleta de sua confeitaria –, o romance faz com que a reversibilidade se
afigure tão intransponível que Flora, “inexplicável” segundo a importante
definição do Conselheiro Aires, é incapaz de optar exclusivamente por um dos
gêmeos. Em seus sonhos e devaneios, cuja descrição se aproxima em alguma medida
dos conceitos de deslocamento e condensação de Freud, a moça almeja um
fusionamento impossível entre Pedro e Paulo: fusão, difusão, confusão –
transfusão. Sua morte aparentemente eficaz em termos narrativos – já que
poderia pôr fim à disputa dos dois – acaba se revelando, em certa medida,
reforço da mesma. Nem mesmo a morte consegue estabilizar sentidos (Brás Cubas
já nos provara isso), pois não é possível se deslindar ou sair daquela
etimologicamente descrita como inexplicável – “Custou-lhes sair do cemitério.
Não supunham estar tão presos à defunta. Cada um deles ouvia a mesma voz, com
igual doçura e palavras especiais”.
Em um
interessante movimento narrativo, ao propor uma entre muitas interpretações da
natureza do dissídio fraterno, o narrador fala da observação de Natividade
sobre uma possível “troca de inclinações”, em que Paulo passara a atacar o
regime republicano enquanto Paulo o defendia. O que parecia à mãe “propósito”,
desvela o narrador ser “naturalíssimo”, o que nos dá a deixa para completar tal
raciocínio. No entanto, tal lacuna é completada pelo Conselheiro Aires, que
indica em Paulo “um espírito de inquietação” e, em Pedro, “de conservação”.
Tais espíritos, em sua leitura, pairam acima dos regimes, posicionando-se
sempre em face do movimento geral da sociedade: “que fique firme [Pedro] ou se
atire para diante [Paulo]”. No mesmo capítulo em que parece definir o cerne
espiritual dos gêmeos, todavia, Aires fala a Natividade sobre a importância de
um “deus avulso”, o imprevisto, que acaba por postular uma equivalência geral:
“Como nas missas fúnebres, só se troca o nome do encomendado – Petrus,
Paulus...”. E, como dirá o narrador mais tarde sobre uma percepção de Aires, se
os túmulos nada dizem, “Não é virtude, é falta de novidade”.
Mas isto são
só notas, especulações de (outra) pena – ou tecla – vadia. Vá lá, leitor; melhor
é ler com atenção.
Nota 1:
estas linhas foram escritas livremente a partir das estimulantes leituras e
debates do excelente curso de pós-graduação “A obra de Machado de Assis”,
ministrado pelo Professor Hélio de Seixas Guimarães na FFLCH-USP no primeiro
semestre de 2018. Entre as muitas leituras importantes, destaco aqui os próprios
estudos do Professor, que ficam como sugestão: Os leitores de Machado de Assis
(Nankin/Edusp, 2011) e Machado de Assis: o escritor que nos lê (Unesp, 2017).
Nota 2:
todas as citações dos romances foram retiradas do altamente recomendável
repositório virtual Machado de Assis.net, que permite buscas rápidas e oferece
importantes notas explicativas.
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