Seis lições de Doris Lessing
Por Daniel Gascón
“Manter uma
opinião dissidente, sendo parte de um grupo, é a coisa mais difícil do mundo”:
este poderia ser o tema principal de Prisões
que escolhemos para viver, de Doris Lessing. O volume recolhe cinco conferências
que autora ministrou para a Canadian Broadcasting Corporation em 1985 e uma
sexta, ministrada sete anos depois na Universidade de Rutgers. Em certa medida
é um livro sobre a independência do pensamento e suas complicações.
A autora,
galardoada com o Prêmio Nobel de Literatura em 2007, utiliza suas próprias
experiências, tanto as vividas em Rodésia (atualmente Zimbábue) como as de sua
vida de militante comunista e pós-militância. Mas não recai, nessa dissidência, nem em sua biografia, o que é muito bom, e o que não quer dizer que ela tenha
sido imune a esse impulso gregário. (Certamente, se existissem tantos dissidentes
no momento da verdade como existem retrospectivamente, não existiria
gregarismo).
O livro,
humilde e às vezes fragmentado, está repleto de intuições e observações
interessantes. Mostra um interesse pelo que chama as novas ciências: as ciências
sociais e em especial a psicologia e a sociologia. Ao seu ver, o mundo avançava
para uma maior objetividade para julgar as situações e aceitar a complexidade,
mas se via submetido a ondas sentimentais.
Sublinhava que
em todo grupo é fácil que todos se voltem contra alguém e que se a comunidade
está muito unida é fácil que o dissidente seja visto como um malfeitor ou um traidor.
Falava sobre as “certezas sentimentais” de cada grupo e sobre que conhecia mais
de perto, a esquerda (por exemplo: que todos os socialistas eram bons e os capitalistas
maus) e observava que “o adversário nunca é odiado com tanto furor como o
antigo aliado”. Na natureza dogmática de algumas ideologias detectava uma herança
cristã: o legado do cristianismo mais evidente no socialismo, dizia, é o sectarismo.
Uma boa
parte de Prisões que escolhemos para
viver é uma defesa do individualismo: não uma recusa total às proteções do
Estado ou da sociedade, mas uma reivindicação do critério particular. Às vezes,
explica, uma ideia marginal acaba se convertendo em mainstream se for sustentada com firmeza e inteligência. “Quando
falo de fazer uso de nossas liberdades não me refiro apenas a fazer manifestações,
fazer parte de partidos políticos e tudo isso, que não é mais que um aspecto do
processo democrático, mas a analisar ideias, venham de onde vier”.
Disse que
lhe surpreende certo desinteresse entre jovens pela história. Mas encontra uma explicação:
“Ninguém deseja ler nada que possa colocar em questão a visão que tem de si
mesmo como fenômeno absolutamente novo e assombroso, cujas ideias são novidades,
para não dizer que estão recém cunhadas, provavelmente por si próprio ou, ao
menos, por gente do próprio entorno ou pelo líder a quem alguém venera, esse
ser de totalmente novo e imaculado cujo destino é mudar o mundo”.
Um dos textos
mais interessantes é o último, que estuda as “Atitudes mentais que o comunismo
deixou em sua passagem”: a herança que o comunismo teria deixado em nossa cultura.
Para Lessing, teve uma influência decisiva e degradante sobre a linguagem, ao produzir
páginas e páginas dedicadas a não dizer nada. Por outro lado, teria potencializado
uma maneira de ler a arte buscando a mensagem ou uma intencionalidade: esta
ideia – que Lessing também relaciona com a religião – haveria alcançado consequências
na crítica literária que sobreviveram ao comunismo.
O politicamente correto,
dizia, não pertencia ao comunismo, mas supunha a integração de um hábito de
pensamento. “Sem dúvida há algo muito atraente em dizer o que os demais têm que
fazer”. Trata-se de “um comportamento de jardim de infância, algo muito
primitivo”. Ao seu ver, o politicamente correto tem componentes positivos, já
que nos “obriga a reexaminar posturas”. O mau é que “o setor lunático logo deixa de
ser um mero setor; o rabo começa a dominar o cachorro. Por cada pessoa que recorre
com sensatez à ideia do politicamente correto para analisar as coisas que damos
por supostas, há vinte agitadores que o que lhes movem é ânsia de poder”. Acontecia,
na sua compreensão, em todo movimento popular e o detectava no feminismo e no antirracismo.
Às vezes, sublinhava, se produzem “grupos e conciliábulos de caçadores de
bruxas” que “acusam suas vítimas de racistas ou de ser mais ou menos reacionárias”.
O que subjaz
a estes fenômenos é uma espécie de “entusiasmo”, um “gosto pelas sensações fortes,
a busca por estímulos cada vez mais intensos”. Nada existe de mais emocionante,
diz, entre os vinte e trinta anos que a sensação de estar em posse da verdade. Cita
o caso de um jovem “da estirpe de Byron” que conheceu na Espanha e lhe disse “que
o que mais lamentava era ser muito jovem e não haver vivido em maio de 68 em
Paris”. Ela lhe perguntou por que, já que a revolução havia fracassado. “Aquele
deve ter sido muito excitante”, respondeu.
Um paradoxo derivado era que os
países da Europa ocidental, “que para a gente que viveu sob o comunismo eram inalcançáveis
de liberdade e abundância” se viram “como lugares insuportáveis por jovens ocidentais
que iam em busca do bem e da verdade a outros pontos do planeta. Devido uma reconhecida
necessidade de experimentar sofrimentos, perseguições, opressão, sucessivos
movimentos políticos inventaram ou exageraram, a opressão nos países ocidentais”.
Para Lessing, é em parte um problema quase de bovarismo: gente que passou muito
tempo lendo histórias de interrogatórios e opressão, até se converter em “Walter
Mittys da revolução”. Uma consequência negativa é que os “esforços políticos
normais” atraíram menos entusiasmo que o encanto da revolução, que ao menos ia aparelhado
do “romantismo da revolução”, que admitem “o terrorismo por uma boa causa”.
A questão
final é que “a experiência soviética contaminou o imaginário coletivo do progressismo”:
se converteu numa imaginação “escrava da experiência soviética”, que na verdade
foi irrelevante para a Europa. “Não tínhamos que nos identificar com a União
Soviética, com seus sessenta e tantos anos de repressão da razão, de retórica
idiota, brutalidade, campos de concentração e pogromos contra judeus. Um fracasso atrás de outro. E o mais importante,
a partir de nosso ponto de vista, com as mil e uma retorcidas maneiras de
defender o fracasso”. Isso teria contribuído para desacreditar no socialismo.
Como acontece
à maioria dos ex-comunistas, o com quem saiu mal de uma ruptura amorosa, nem
sempre está claro que esta ideologia ou essa pessoa fosse a causa de tudo o que
se atribui, mas a análise de Lessing é sugestiva, livre e perspicaz e muitas de
suas observações nos ajudam a entender nosso tempo.
* Os excertos
de Prisões que escolhemos para viver
são traduções a partir do original em espanhol citado no texto “Seis lecciones
de Doris Lessing”; este texto foi publicado em Letras Libres.
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