Promessa ao amanhecer, de Eric Barbier

Por Pedro Fernandes



Até este ano, o nome de Romain Gary deve fazer sentido para uma pequena e muito seleta parcela de leitores brasileiros; pode-se dizer sobre escritor francês que este integra a lista formada por nomes inquestionáveis da literatura amplamente lidos durante certo tempo e depois lançados a uma espécie de limbo onde repousam à espera de possível resgate. Essas afirmações encontram justificativas em vários dados: na ausência total da presença de Gary nas livrarias e na quantidade ampla de títulos traduzidos por aqui, dos quais é possível citar, Lady L., As pipas, Nas sombras do Vaticano, O rouxinol sempre retorna, O último suspiro e Luz-mulher. No Brasil, parece que, qualquer autor que tenha mais de três títulos traduzidos em pouco espaço de tempo – e estes estão entre os anos 1960 (data da publicação do primeiro título listado) e 1987 (quando da publicação do último título) – estão / estiveram no auge.

Bom, mas há uma pequena exceção capaz de contradizer as afirmativas apresentadas, embora seja possível compreender que se configure numa tentativa meio fracassada de retomada desse ponto auge da obra de Gary no país: em 2008, publicou-se a tradução de Promessa ao amanhecer. Sim, o filme de Eric Barbier é produto da adaptação de uma obra do escritor francês. Narrada em primeira pessoa, e aqui, pelo próprio criador, esta narrativa reporta seu trânsito existencial, recuperando toda a sorte de episódios históricos que planificam a atmosfera biográfica de Gary.

Ou seja, o trabalho de Barbier é o mais simples: atribuir movimento a um conjunto complexo e completo já de forte teor imagético como é o texto de Romain Gary. Na transposição de uma linguagem para outra, o cineasta vale-se da ideia de acompanhar o escritor do instante final da composição do que se configura uma de suas obras-primas fazendo-o retomar pelo material verbal todas as situações que recordam uma existência que diríamos heroica. De maneira que, em parte alguma a produção cinematográfica do cineasta autor de O último diamante, se descuida de certo ars épico que determina a trajetória de Gary.

Tal como o livro do escritor francês, este filme se constitui ora num rico painel sobre a vida do biografado, ora num não menos rico painel sobre a Europa da primeira metade do século XX; e é, a um só tempo, uma história de amor materno, uma história de guerra, uma narrativa de viagens. A partir de sua estada na Califórnia, a narrativa sobre Gary se desdobra do tempo de sua infância na Lituânia à época do Império Russo, sua juventude em Varsóvia, a chegada à França para quando vai cumprir o serviço militar na aeronáutica e tão logo eclode a grande guerra o seu périplo por meio mundo em conflito.

Se por um lado Barbier tem a facilidade de encontrar um romance que se insinua o produto final do filme, por outro precisa estabelecer rupturas com um imaginário cinematográfico já estabelecido a partir de Promessa ao amanhecer. É que, em 1970, Jules Dassin já havia adaptado a obra para o cinema, em que o escritor foi incorporado por vários atores e sua mãe vivida por Melina Mercouri – quer dizer, um desafio que se estende de maneira igual aos intérpretes do remake. No filme de 2017, Nina Kacew foi vivida por Charlotte Gainsbourg e Pierre Niney vive o escritor na vida adulta.

A biografia é de Romain Gary. Mas, ela parece inviável se não considerar a presença da figura materna. Pode-se mesmo conjeturar, e é esta afinal a leitura proposta por Barbier – possivelmente, a partir do que afirmou o escritor sobre esta obra: uma ode para sua e todas as mães – que a existência de Promessa ao amanhecer se configura numa forma de expiação do escritor da presença de Nina. Quer dizer: é, a um só tempo, uma terna homenagem à mãe, em modo de reconhecimento, como se dissesse que sem sua obsessão por tornar o filho numa importante e inestimável figura da história, ele próprio não haveria alcançado o posto que alcançou, e ainda uma maneira de prestar contas com todo esse empenho numa altura em que o escritor não se reconheceria figura de orgulho da mãe. É de se notar que, depois do suicídio da atriz Jean Seberg, com quem Gary desenvolveu intensa paixão, o escritor nunca mais foi o mesmo e caiu numa redoma semelhante que findaria por levá-lo a um fim idêntico anos mais tarde. Não sem antes investir em alguns fracassos, como a direção de dois filmes nos quais a própria Jean esteve em atuação – Les Oiseaux Von Mourir au Pérou e Kill.

A construção da persona se dá tanto pela obsessão para com a perfeição e pelo grande feito, ora no interesse em se tornar o mais reto dos homens, numa mística que inclui o zelo e o respeito para os que o reconhecem e a vingança e o vitupério para os que o desprezam; é o menino, jovem e homem continuamente assombrado pela condição do fracasso e as diminuições impostas pela história (como o impeditivo da carreira militar, primeiro por ser judeu, depois por não ser autêntico cidadão francês); e como Romain se descobre para a literatura e investe suas forças para a composição da obra máxima – estes são os tons principais que o espectador entra em contato para a construção da imagem sobre a personagem aparentemente central, diríamos, desta narrativa. A ressalva se apresenta pela contínua presença de Nina, assente em todas situações, mesmo naquelas em que sua presença se faz impossível – aquando Romain está em diáspora ou mesmo depois da morte da mãe.

No final de tudo saímos com a sensação de que as vidas de longo interesse não ficaram presas ao período das grandes dificuldades humanas – muito embora Romain atravesse um dos mais graves dele, o dos grandes horrores do nazi-fascismo; também recobra um eco, talvez influenciado por essa onipresença de Nina, sobre o que fizemos ou faremos para compor algum sentido à nossa própria existência; ou ainda, será a vida de Romain uma das últimas de feitos que o angaria para o rol do herói? Não é um mito o que, afinal, quer construir o cineasta como a nova leitura da autobiografia do escritor; é, sim, como o menino de incerta existência conseguiu ultrapassar os diversos impeditivos para se tornar o homem que se tornou. Isto é, um recobrar do modelo do Bildungsroman em toda sua inteireza. Vale como exemplo e como alternativa de descoberta sobre um escritor e uma obra que não podem permanecer no limbo por mais tempo que o já permanecido.


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