O retorno do herói, de Laurent Tirard
Por Pedro Fernandes
Este filme é
uma leve, descontraída e doce comédia de época que está distante da
bestialidade das comédias de entretenimento de cariz hollywoodinesco, mesmo
aquelas espécies de cópia desnecessária realizada pelo cinema francês contemporâneo.
Ou seja, o espectador tem a possibilidade de saborear uma história à maneira do
jeito de fazer cinema da terra dos irmãos Lumière.
Em parte,
não é apenas o retorno a um modelo de riso que cada vez mais tem descambado
para o bestial porque alimentado pela piada de mau-gosto ou preso no acentuar
do traço caricaturesco cujo propósito finda por se constituir quase sempre num
sublinhado à técnica do preconceito e do estereótipo. Em parte, porque este
retorno parece se reapropriar de um riso um bocado caro para a boa comédia: o
do destronamento de um ideal substituindo pelo que, no mais íntimo, é a sua
verdade (ou ao menos a possibilidade, diríamos, mais coerente).
No caso do
filme de Laurent Tirard, a figura destronada está visível no próprio título da
obra: o herói. E seu retorno assume pelo menos duas vias: o retorno da volta de
alguém e o retorno a uma questão ou tema, que com este alguém parecia estar
sepultado num passado distante. Passado em 1809, durante o meio do conflito
militar entre o Primeiro Império Francês e os seus aliados do Império Espanhol contra
a aliança do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda e do Reino de Portugal e
Algarves pelo domínio da Península Ibérica, durante as Guerras Napoleônicas, o
filme está marcado por dois momentos: o de partida do capitão Neuville (o
herói) para o campo de batalha, isso tão logo depois de seu casamento; e o de
seu retorno.
Entre um momento
e outro se constrói todo o imbróglio que resultará numa sucessão de
mal-entendidos (os desencontros favoráveis ao riso) e, logo, na diversidade de
subversões que a história de Tirard deposita sobre a figura do herói – e consequentemente
sobre o tom elevado e pungente do discurso histórico. Isto é, não é apenas uma
imagem que é colocada sobre a caldeira da desfiguração, mas, todo um discurso
que o determina.
Sim, porque
se a princípio pareceu que a narrativa do herói é constituída pelo fôlego da ficção
(basta lembrar desde a epopeia clássica de Homero), a história mais tarde, ao
que parece, alimentou-se continuamente dos seus princípios constitutivos, quais
sejam os do grande feito, o da honra em defesa de seus ideais, a integridade destes
ao corpo coletivo ao qual pertence, ou ainda, a diversidade de conquistas alcançadas
depois do merecimento pela luta incansável pelo bem comum.
A partida do
capitão Neuville coloca a jovem recém-casada no domínio de uma profunda tristeza,
cujo fim aparentemente inevitável é a morte. A irmã mais velha, avessa ao
efeito romântico que tolda a existência de todos numa casa em que as atenções
passam a ser devotadas a uma sorumbática, resolve então, escrever uma carta na
qual se tenha notícias sobre o desaparecido cunhado. O gesto, logo se vê,
resulta na escrita de um milheiro de outras missivas que dê contas de alimentar
as esperanças da irmã, o que, tanto tempo depois, sem quaisquer notícias sobre
o retorno do capitão leva à inventora a conceber uma possível morte.
Preso à condição
que sempre foi sua – de pobre sem destino – o retorno de Neuville levará ao
prolongamento quase infinito (qual as narrativas de herói) das mentiras, convertendo-o
integralmente numa farsa cujo enredo é ditado criativamente por Elizabeth. Ao
passo que ele sempre ganha, cada vez, o mérito das atenções de todos para com
suas aventuras inventadas, mais alimenta-se o ódio da autora, podemos assim
dizer, por sua personagem, e se multiplicam as alternativas de encontrar uma
saída capaz de revelá-lo em sua íntegra sordidez, como a personagem de uma
fábula que ela própria forjou e depois de ganhar vida própria perde o controle sobre
seus desígnios.
Entre idas e
vindas – e depois de um casual sucesso que mais corrobora que entrega o
estatuto de bufão de opereta que é no se converte, aos olhos do espectador, o capitão
Neuville – ninguém deixará de não resistir aos seus encantos. Nem mesmo, sua
autora, que depois se percebe enovelada nos próprios desvãos das histórias que
fomentaram a existência do herói. Quer dizer, há diversas estratégias
interessantes nesta narrativa: a primeira delas é a substituição de quem promove
os grandes feitos do herói, uma mulher, contribuindo para um debate segundo o
qual a figura heroica só se constitui enquanto tal porque pacto assumido entre
acontecimentos realizados e justificados historicamente por um mesmo ponto de
vista.
A segunda
parece ser a de que, a farsa do herói é participativa nas necessidades humanas
de fabulação da existência: a mentira que a alimenta, a alenta contra a secura
e aridez da realidade e do descolorido da objetividade, como se perceberá a
própria Elizabeth no caso de um apagamento total da sua criação ou mesmo a
percepção de que esta se conforma noutra ordem para o sem-sentido da verdade.
Quer
dizer, o rebaixamento da figura do herói não ocorre nessa narrativa com o mero
intuito de apagá-lo do rol das existências (fabular ou histórica); seu destronamento
é, inclusive, para percebermos a inteireza com que determina nosso imaginário e
a relação que mantemos com a nossa história. E esta, por sua vez, deve primar
pela renovação das presenças do falso
enquanto substrato para as verdades que julga contar destituídas de todo
apanágio da mentira e apegadas ao documental.
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