O profeta James Baldwin
Por Andrea Aguilar
O improvável
sucesso de James Baldwin (Nova York, 1924 – Saint Paul de Vence, França, 1987) no
cinema chegou três décadas depois de sua morte pelas mãos do diretor haitiano
Raoul Peck. Noite após noite se esgotavam as entradas nos cinemas de Nova York
em fevereiro de 2017 e os aplausos unanimes da crítica somavam-se a ovação do
público ao final da projeção de I am not
your negro (Eu não sou seu negro), o filme que naqueles dias partia como favorito na corrida aos
Oscar como Melhor Documentário. O lendário poeta, crítico, romancista, lúcido
ensaísta e confesso cinéfilo saudou postumamente uma dívida pendente com a sétima
arte desde que trabalhou em finais dos anos sessenta num roteiro do qual acabaram
por cortá-lo.
Baldwin
golpeou a consciência estadunidense durante três décadas e expôs a ferida racial
com uma lucidez atormentadora. Criado nas ruas de Harlem, seu padrasto foi
pastor e mesmo na adolescência seguiu esse caminho (“aquela foi a época mais terrível
da minha vida e também a mais desonesta e a histeria que me produziu dotou
durante algum tempo meus sermões de profunda paixão”, escreveu em Da próxima vez, o fogo), antes de voltar-se
para a literatura e fugir para Paris aos 24 anos com poucos dólares no bolso
mas convencido de que ali não lhe esperava um destino pior do que ser negro nos
Estados Unidos.
Em seus romances
e ensaios Baldwin fala da realidade urbana, a brutalidade policial, o mal sistêmico
que lacera o solo segregado do sul estadunidense – mas também ao norte, das
avenidas às cidades. Suas palavras recolhidas em I am not your negro (“meus compatriotas eram o inimigo”; “a
história dos negros na América é a história da América, e não é uma história
bonita”; “esta não é a terra da liberdade, é o lar dos valentes”) ampliam a relevância
de sua análise certeira, transmitem uma verdade inquietante e próxima, um eco
que Peck soube modular.
Em 1970,
Baldwin decidiu escrever um libro sobre três líderes afro-americanos que conheceu
e que morreram assassinados: Martin Luther King em 1968, Malcolm X em 1965 e
Medgar Evers em 1963. O manuscrito inacabado de Remember this house (Recorde esta casa, em tradução livre) e as cartas
que enviou ao seu editor falando-lhe do projeto são o eixo central do documentário
de Peck.
I am not your negro não inclui nenhuma
frase que não seja de Baldwin; ele figura como único roteirista nos títulos de crédito.
Há fragmentos de outros dois ensaios seus: “No name on the street” (Sem nome na
rua) e “The Devil finds work” (O Diabo encontra emprego) e as imagens misturam
abundante material de arquivo – incluindo várias entrevistas e debates com o escritor
– e filmagens dos protestos de rua depois da morte de jovens afro-americanos em
Ferguson e Baltimore ou a tomada de posse do presidente Barack Obama em 2009.
O potente
roteiro póstumo de Baldwin foi publicado pelo selo Vintage International nos
Estados Unidos e sua figura recuperou um papel central na turbulenta Era Trump.
“Há um elemento profético e moral em sua escrita que tem sido redescoberto por um
público jovem”, diz o crítico e o escritor Adam Shatz. “Sua prosa tem a cadência
dos sermões, misturada com Henry James e com o blues, um elemento sagrado na
retórica negra. Baldwin insistiu que o problema dos negros era um problema dos
brancos, e aí está o auge atual da supremacia branca”. Não foi um líder dos
direitos civis, mas sim um excepcional porta-voz da causa, um intelectual comprometido
e carismático, amigo de Nina Simone e Miles Davis. “Não gostava de todo mundo,
Baldwin era uma pessoa pouco acessível, exilado, negro, escritor, gay, mas
soube converter o eu em nós. Capturou o drama dos Estados Unidos e o que estava
em jogo”, destaca Shatz e acrescenta que em sua figura conflui uma dupla luta
racial e sexual, várias identidades, essa interseccionalidade que agora se
estuda na academia estadunidense.
A obra de
Baldwin, aos poucos, começa a voltar às livrarias brasileiras, depois de ficar
há muito fora de catálogo. Ficam antes de um retorno a elas suas palavras: “Eu não
sou um nigger, sou um homem. Se você
pensa que sou um nigger é que necessita
acreditar assim, e precisa averiguar por quê”.
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