O Cofre de Guma e o discurso de um presidenciável em House of Cards: Mar Morto e Pesquisa Eleitoral
Por Wagner Silva Gomes
Joana de Oliveira Guerreiro |
A geração
modernista de 1930, marcada pelo romance social, legou ao país obras em que
protagonizam personagens marginalizados mas que, de uma autenticidade popular foge ao padrão classe mediano da língua portuguesa tipo roupa social, que
cabe bem em qualquer formalidade e informalidade. Da boca de personagens de
pouca fala, muita reflexão, e muito vagar silencioso na procura de si, na
alienação sincera; deles saíram frases lapidares que paradoxalmente podem se passar
por pensamentos filosóficos.
Indivíduos
protagonistas de suas vidas, ao contrário da sociedade brasileira atual, em que
é visível a existência de um bovarismo de classe, seja pela cultura
eurocêntrica e estadunidense abrir um guarda-roupa de vestes, máscaras, frases
e jeito de se portar, seja pelo sujeito não se ver na plenitude de si, no mais
simples de seu ser, por baixa estima de etnia e de classe, por conteúdos de
identidade que ao longo do tempo foram escondidos, ocultados, diminuídos pela
cultura dominante.
Em Vidas
secas (1938), de Graciliano Ramos, ao falar sobre um sujeito que lia muito, o
personagem Fabiano o censura porque segundo ele para quê ler tanto se na hora
que vem o infortúnio todos se dão mal. No entanto, diz o narrador de modo
indireto livre: “Em horas de maluqueira Fabiano desejava imitá-lo: dizia
palavras difíceis, truncando tudo, o convencia-se de que melhorava. Tolice.
Via-se perfeitamente que um sujeito como ele não tinha nascido para falar
certo.” Fabiano desistia de melhorar, desistia do empoderamento do discurso. Seu
Túlio, que lia muito, mesmo não sabendo mandar pedia e todos faziam o que ele
queria.
Macabéa, em A hora da estrela (1977), de Clarice Lispector, obra já do fim da chamada terceira
geração modernista e início da literatura contemporânea, ao invés de pedir,
mente ao patrão porque o patrão não iria acreditar que suas costelas doíam de
tanto datilografar. “Então valeu-se de uma mentira que convence mais que a
verdade: disse ao chefe que no dia seguinte não poderia trabalhar porque
arrancar um dente era muito perigoso. E a mentira pegou. Às vezes só a mentira
salva.” Como uma imigrante nordestina que sobreviveu ao trajeto percorrido
sabia ela como sobreviver à vida urbana carioca.
Como um
peregrino da floresta moçambicana, entre guerrilheiros que lutavam em prol da
independência nacional de Angola contra a colonização portuguesa, no livro Mayombe (1980), de Pepetela, em uma discussão sobre a importância do estudo e
o trabalho de guerrilha, tendo quem só queria guerrear e nada estudar, diz o
personagem Sem Medo: “- Tu, Lutamos, és um burro!(...). - Quem não quer estudar
é um burro e, por isso, o Comissário tem razão. Queres continuar a ser um
tapado, enganado por todos... As pessoas
devem estudar, pois é a única maneira de poderem pensar sobre tudo com a sua
cabeça e não com a cabeça dos outros. O homem tem de saber muito, sempre mais e
mais, para poder conquistar a sua liberdade, para saber julgar. Se não percebes
as palavras que eu pronuncio, como podes saber se estou a falar bem ou não?
Terás de perguntar a outro. Dependes sempre de outro, não és livre. (...)”.
Porém, Mundo Novo, outro guerrilheiro diz que o interesse no estudo no futuro
vai servir a quem quer cargos de direção do país, logo após a independência,
sendo também algo de interesse pessoal, e que o interesse revolucionário, que
vem da vontade do povo, com sua afirmação de vida e cultura depende dos
sinceros como Sem Medo, porque é dos que estudam muito assimilar a cultura do
outro a substituindo pela sinceridade de povo que o norteou inicialmente.
Considerando
que uma das formas de manifestação do bovarismo é a pessoa se ver de uma forma
diferente do que ela é, negando sua identidade, projetando nela um ideal que a
substitui, e que a síntese saudável dele é como a antropofagia, isto é,
deglutir a identidade do outro de forma crítica, adaptando-a a própria, no
livro Mar morto (1936), de Jorge Amado, Guma, personagem principal, marujo
baiano, fica na dúvida se manda a carta para a mulher que ama do jeito que
tinha completado a parte que um profissional informal tinha escrito (na época
existiam pessoas que escreviam cartas encomendadas), que está destacada em
negrito, ou se mostrava a dona Dulce, uma amiga, para ela consertar os erros.
No entanto, enviou a amada do jeito que estava. Segue abaixo a carta e o
contexto que envolve a sua escritura:
“Minha
estimada L... de toda pureza dalma.
Saudações.
É com a mão
pesada e com o coração louco e apaixonado por ti que escrevo essas mal traçadas
linhas.
Lívia meu
amor peço minha filha que você leia esta carta com atenção para poder me
responder com urgência, mas quero uma resposta sincera saída do seu coração
para o meu.
Lívia você
sabe que o amor cresce de um beijo e termina numa sentida lágrima? mas minha
filha eu penso que se você me responder que o nosso vai ser ao contrário, já
nasceu de um olhar, há de crescer mais, de um beijo e nunca mais terminará não
é assim meu amor? Peço que me responda todas as perguntas que lhe faço já
ouviu? Minha filha eu penso que o teu coração é uma concha doirada aonde se
encerra (guarda) o nome BONDADE.
Lívia meu
amor já nasci te amando não podendo mais ocultar esse segredo e não podendo
mais suportar essa dor imensa que meu coração sente declarei a verdade meu anjo
adorado, já ouviu?
Tu será para
mim a minha única esperança, entrego a você meu coração para seguir o teu
destino, penso que você não gosta de mim mas meu coração em tuas mãos sempre
esteve e estará até meus últimos momentos.
Quando eu vi
você meu anjo mais louco e apaixonado por ti eu fiquei quase que lhe declarava
a confessar até que chegou o momento de você ouvir as minhas súplicas (meus
sentimentos).
Escrevi para
você para poder desabafar meu coração, não amo a ninguém a não ser você,
estimo-te e quero-te, para a minha eterna felicidade.
Peço agora
um grande favor que não mostre a ninguém esta carta para não servir de chicanas
(zombarias) de um coração apaixonado que eu sou capaz de rebentar o leme de um
que se rir de mim. Assim como tenho esperanças de você responder
satisfatoriamente não mostrarei a ninguém ficará entre nós dois este segredo.
Peço
resposta urgente para eu saber se você corresponde um coração apaixonado, mas
quero uma resposta sincera saída do seu coração para o meu já ouviu?
A tua
resposta servirá de bálsamo para o meu coração dolorido, já ouviu?
Desculpe os erros
e a letra.
Você há de
reparar a mudança de letra é porque eu troquei de pena (caneta) já ouviu? Fiz
esta cartinha sozinho em casa te escrevendo e pensando em você já ouviu? Sem
mais aceite um abraço do teu G... que tanto te quer e te estima de todo o
coração já ouviu?
Gumercindo
Urgente.
A verdade é
que essa carta quase dá em briga, em barulho grosso. (...)
(…) A briga
saiu quando ele escrevia aquele trecho: “ Minha filha eu penso que o teu
coração é uma concha doirada aonde se encerra o nome bondade”. Porque ele (o
profissional que escreve cartas encomendadas) escrevera que o coração era um
cofre doirado. Guma discordou do cofre e propôs concha. Achava que não havia
nada mais bonito que concha. Cofre é uma coisa feia. Ora, o doutor (o
profissional que escrevia cartas) não admitia discussão. Disse que ou ia cofre
ou não ia nada. Ele não escrevia a epístola (carta). Guma arrancou a carta das
mãos dele, arrancou também a caneta e o tinteiro e foi para o saveiro (barco de
grande porte). Riscou cofre e botou concha. Depois escreveu ele mesmo, com uma
grande alegria, todo o resto da carta. Quando chegou ao fim fez aquela
explicação sobre as duas letras diversas e voltou para o doutor:
- Tome seus
negócios...
- Não quer
que eu continue?
- Não. Mas
pago... - e deu oitocentos réis.
O doutor
botou o dinheiro no bolso, fechou o tinteiro e espiou para Guma com um olhar
sério:
- Você já
viu um cofre?
- Até já
levei um verdão no meu saveiro pra Maragogipe...
- Mas nunca
viu um cofre doirado (dourado)?
- Não.
- Por isso é
que você diz que concha é mais bonito. Se tivesse visto um cofre doirado nem
discutia. (...)”.
Como Guma,
os presidentes normalmente têm cada qual um profissional que escreve para eles
o discurso que eles devem falar, como o Guma tinha o escritor da carta. Na
série House of Cards, por exemplo, o presidente dos Estados Unidos contrata
um escritor de ficção para escrever suas falas e se dá muito bem, o mesmo
compreende suas propostas, seu jeito, e assimila toda a sua vontade de
governar, de convencer e de ser empático.
Em um
momento de propostas eleitorais de candidatos presidenciáveis, os perfis
listados acima fazem refletir em busca de uma opinião própria sobre cada um
deles. Que candidato age com o discurso como o Fabiano agiu, desistindo de
convencer e melhorar sempre? Que candidato mente como a Macabéa por que sabe
que às vezes tem que mentir para conseguir o que quer? Que candidato é fruto de
um debate entre trabalhadores braçais em prol do social e trabalhadores que
lidam com o intelecto em prol do social? Terá mais inclinação para que lado? Podendo
ter um presidenciável para cada tendência, se se seguir a lógica de Mayombe.
Que candidato, como o Guma, faz uso de um profissional que prepara o que o
público quer ouvir e depois faz as interferências e complementações dele, não
abrindo mão de sua autenticidade?
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