Naipaul, o primeiro escritor



Por Carlos Manuel Álvarez Rodríguez



O olhar constrito e áspero de V. S. Naipaul em qualquer de suas fotografias da maturidade é o olhar do velho insuportável a alguém que vem-lhe roubar maçãs ou morangos do seu quintal enquanto prefere que apodreçam a dá-los.

Sua misantropia e crueldade proverbiais pareciam fascinar, talvez assustar, não tanto já pela misantropia e crueldade propriamente ditas, mas por seu reconhecimento pleno de ambas. Naipaul não ocultava seu sadismo, o reivindicava e permitia logo sua aparição em biografias autorizadas.

No ensaio As trevas de Conrad [tradução livre], publicado originalmente em The New York Review of Books no outono de 1974, Naipaul disse que o interesse pela obra de um autor leva indefectivelmente ao interesse por sua vida. Não é verdade. Mas, tudo isso se torna a mesma coisa – a vida, a obra, o escritor cindido entre sua matéria e o que escritor é – em O enigma da chegada, um romance que não é de ninguém, escrito “com a sensibilidade à flor da pele de meus nervos [os de Naipaul] de estrangeiro”.

Na mesma ocasião, Naipaul disse que “realmente lemos para descobrir o que já sabíamos”, o que explica não só por que pensava que não devia nada a ninguém, mas também, presumivelmente, a maneira como aspirava ser lido. Há um risco nesta aposta que ele próprio detecta: “Quando a arte imita a vida e, por sua vez, esta imita a arte, a originalidade de um escritor pode muitas vezes passar despercebida”.

A originalidade que Naipaul guarda para si reside basicamente em não ceder como romancista à tentação da experimentação formal, um desafio imposto pela tradição que elude as “verdadeiras dificuldades” da escrita: dirigir o romance à função interpretativa do artefato que examina e medita sobre a realidade, que é sempre nova; e dinamitar o que se reconhece como estilo, como palavras, esse mudo que obstrui a relação direta que devem ter os dois elementos fundamentais da literatura, a saber, o leitor e a verdade.

Dentro de seu sistema Naipaul admite a influência decisiva de Conrad, quando disse que se trata de um escritor que, cinquenta ou sessenta anos antes dele, refletiu sobre seu mundo, um mundo que Naipaul reconhece.

Também costumava citar Proust porque soube distinguir e fixar a relação entre o escritor e o indivíduo social. Este dilema é fundamental em Naipaul, e ele o expressa tantas vezes, e de modo sensível todas essas vezes, que sua clareza não me permite compreender totalmente que coisa é que Naipaul conclui a respeito do assunto: se por fim o escritor e o sujeito são uma mesma pessoa ou não são.

Talvez esteja apenas se referindo que sobre essa questão é preciso sempre tê-la muito em conta, ou se bem o escritor e o sujeito são pessoas distintas, em algum momento o escritor tem que fazer o possível por encontrar um tema nessa ruptura, plasmar no corpo da obra essa ruptura, não a expandir ou renegá-la.



Em O enigma da chegada se lê: “Homem e escritor eram a mesma pessoa; mas nisso radica a maior descoberta de um escritor. Levou tempo – e muito escrever – para chegar a essa síntese”*. O romance, modelar, in media res, realmente começa nesta confissão, pertencente ao segundo capítulo do livro, denominado “A viagem”.

Naipaul viaja em princípios da década de 1950 de Trinidad a Oxford para licenciar-se em Arte. Faz uma escala em Nova York, onde sua visão de aspirante a escritor recusa e suprime de seu diário, redigido com seu contundente lápis de ponta, o “taxista loquaz” que lhe cobra caro e o “negro de fala típica” que espera uma gorjeta e Naipaul não pode ser, isto é, não pode representar por uma noite o pequeno papel assinado para ele no teatro nova-iorquino.

“Escrevi em meu diário sobre as grandes coisas”, diz mais adiante, “sobre as coisas que convinham a um escritor. Mas o escritor do diário estava acabando o dia como um camponês, como um homem retornando às suas origens, que comia furtivamente num quarto e depois não sabia onde esconder fedorentos restos da comida”. A honestidade, e não a literalidade, como uma estética mais potente que a retórica.

No primeiro capítulo do livro, “O jardim de Jack”, há uma descrição de umas vacas deformadas que é a típica demonstração de músculo e de pulso do escritor moderno e maduro: engenhosa, imaginativa, surpreendente, nova à sua maneira. Sublinha a paisagem imediatamente, em automático, mas Naipaul não está buscando esse leitor-tipo, nem vai dar ao leitor outros momentos assim. É quase como uma mostra do que ele não está disposto a fazer. Logo vêm sua sensibilidade rampante e sua clareza e lucidez sustentadas, como estrangeiro que era de todas as coisas.

Fiel à premissa de que “realmente lemos para descobrir o que já sabíamos”, mas acrescentando que se não lemos não saberemos, O enigma da chegada confirma que “as febres dão uma sensação de lar e proteção”; que grande parte da educação em lugares pobres e anônimos se produz de modo abstrato, é “uma prova de memória: como uma pessoa que, ao negar-se a oportunidade de visitar cidades famosas, se apropria dos mapas de suas ruas”; que o peregrino é sempre um intruso na memória do outro, e mais detalhes relacionados com essa união civil entre juventude e sofrimento – a dor precoce, a descoberta antes do tempo da finitude do homem – que não faz muito sentido explicar.

O enigma da chegada inclusive nos fala, mesmo de modo mais indireto, sobre a pertinência e a dignidade do silêncio, mas como um estado que só se pode alcançar depois de haver dito algo. O silêncio, anterior ao dito, é talvez a prova de coragem mais extrema que exista, mas talvez, também, de que simplesmente não exista nada por trás.

Em março último visitei Puerto España. Pensava encontrar – sem muito esforço, é verdade, mas sim expressado como um pensamento ressonante – alguma pegada de Naipaul, determinada característica mais ou menos visível ou sugerida sobre o autor bastardo do Caribe, cujo caráter prepotente a mim me parece profundamente anticolonial. Não de alguém em favor da metrópole ou que justifica o colonialismo, como se disse, mas do sujeito que recusa o “convencimento quase religioso de que a opressão pode se converter num recurso, a raça em dinheiro”. Era um pouco como buscar um autor onde um autor não quer ser encontrado.

Não o encontrei. Mas se tomo as ruas sujas e poluídas de Trinidad que atravessei, do posto administrado por venezuelanos onde comi hot dog e tomei uma soda de uva, da igreja em que entrei numa tarde sem interesse por nada nem por Deus, do monte de lixo ao lado das barracas de comida rápida e os cheiros terríveis da umidade e da decomposição, da fachada ordinária do supermercado Yee’s Family, número 96 de Charlotte Street, se tomo todas essas coisas tal como são, através do olhar direto, então já começa a se delinear a cara de poucos amigos de V. S. Naipaul, o rosto implacável do mestre brâmane.


* As traduções de excertos da obra de V. S. Naipaul são a partir do original em espanhol citados no texto apresentado, “Naipaul, el primer escritor”, publicado em Letras Libres.


Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #610

Boletim Letras 360º #601

Seis poemas de Rabindranath Tagore

16 + 2 romances de formação que devemos ler

Mortes de intelectual