Na pureza do sacrilégio, de Carlos Cardoso
Por Pedro Fernandes
E como falar
de outra
forma?
de cortar
e reformatar
o futuro,
e assim
querer
e ser sem
par.
A pergunta
lançada pelo primeiro poema de Na pureza
do sacrilégio é capciosa: abre-se em direção a pelo menos outras duas
interrogações. A primeira delas é produto da angústia de todo poeta. Num tempo
quando perdemos as contas de vozes tão singulares e válidas por gerações e
temporalidades, o que ainda resta dizer em forma de poema? A outra, derivada
desta, como ser outra vez voz entre vozes depois de algumas largadas? Não pense
o leitor que as respostas venham logo em seguida. Nem no livro; tampouco aqui. Ao contrário, o poema abre-se
em outras indagações e finda por se constituir um canto angustiado de alguém
que parece sentir-se a esmo à procura de uma resposta, mesmo sabedor de que esta não vem ou não existe (em matéria de poesia) de forma simples e objetiva. O mesmo vale para estas notas. O bom poeta é cônscio de que a única resposta deve ser a que se constrói autêntica. “Ainda quero uma frase /
primeira, / nua, / ligeiramente inteira” – finda “Frase primeira”.
O leitor,
entretanto, é livre e pode, pelas aberturas propiciadas pelo poema, estabelecer
algumas respostas – todas elas construídas somente depois de cumprir a
travessia pelos poemas que seguem. A travessia por estas palavras é também uma tentativa de construir respostas. De maneira que o poeta se oferece, num gesto
muito humilde, inteiramente despido e sem querelas ou subterfúgios de linguagem, ao crivo do seu leitor. Mas não se insinua.
Não tem interesse, negando certo cariz sedutor da palavra, por fazê-lo seu cúmplice,
induzi-lo à resposta que seus ouvidos talvez gostassem de ouvir. Daí, poderíamos
pensar que a razão para essa atitude do poeta é resultada de uma ingenuidade: como
ter em mãos a tarefa máxima de uso da linguagem, transformá-la em instrumento
de sedução e conquista, e desfazer-se, assim tão livremente? Ou sequer usá-la para tanto?
Bom, mas, se
assim procedesse – se utilizasse do poder da palavra para induções – para provar ao leitor
que sua voz é a voz ou que justificasse, fosse pela repetição de algumas chaves
que afirmam a razão própria de ser do poeta e do poema, fosse pela criação
de novas e ousadas maneiras de dizer as mesmas chaves, não parece que faltaria
ao poeta alguma lealdade para com o seu leitor? E o poeta que procede assim é um
desleal? Nem uma coisa, nem outra. Não cair em mesmidades e não estabelecer
outras maneiras de justificar o valor da poesia não significa lealdade ao
leitor, porque omitir-se pode ser uma estratégia ainda mais ardilosa. E poeta,
sabemos desde Platão, não é uma criatura de se fiar.
Quer dizer,
as respostas precisam ser construídas pelo leitor no convívio com os poemas por
vir ou mesmo os poemas que o poeta ainda sequer tem consciência se vingarão.
Não é a abertura da primeira obra de Carlos Cardoso, mas a pergunta – ainda aquela apresentada na abertura deste texto – finda por
refundar a variedade de organização de sua própria obra. É assim com os bons
poemas. Não importam onde e quando apareçam, podem sempre estar melhores em
qualquer parte da obra e levar o leitor à estabelecer novas relações no âmbito
da criação literária do poeta.
A angústia
patente desde o título “Frase primeira” é também produto de reconciliação do
próprio poeta com o mundo que começou a engendrar desde a publicação de seu
primeiro poema. No caso de Carlos Cardoso, Na
pureza do sacrilégio é seu terceiro livro. Poderia ser o fim de uma dezena
no ponto mais elevado de um itinerário de louros e se não se deixasse tocar
pela angústia da espera pelo poema já desconfiaríamos se ainda seria o poeta um
habitado pela centelha que ilumina sua própria condição de existir. Talvez,
então, devamos substituir o termo angústia por expectativa. Todo poeta é um ser
à espreita.
Que o poeta
não é de se fiar, sabemos. E sabemos gostosamente. Como quem sabe o perigo que
pode aparecer no dobrar de uma esquina mas ainda assim continua a se entregar ansioso (sim, angustiados somos nós os leitores) pelo por vir. É possível que nada
aconteça e se for assim o poeta poderá ter fracassado com seu intento. Sim,
toda obra poética, é sempre uma tentativa – inclusive a de ser a voz entre as
diversas vozes que a circula, e não raras vezes, a intersecciona. O fracasso da
tentativa pode, inclusive, ser ainda pura estratégia do poeta para levar o leitor pela
mão às suas futuras searas. Não faltarão incrédulos a murmurarem agora que é impossível
ou mesmo vão o leitor retornar a um poeta fracassado. Para estes, algum consolo:
é de poemas ruins que se fazem os bons poemas.
Carlos Cardoso
talvez espere que os poemas que reuniu em Na
pureza do sacrilégio possam ser, eles próprios, o élan capaz de oferecer – se
não a resposta definitiva e total – possibilidades para que acreditemos ser sua
poesia a “frase primeira”, “nua” e “ligeiramente inteira”. A resposta
definitiva e total repousa apenas no interior das possibilidades; alcançá-la
seria matar o segredo que impulsiona a existência da própria poesia. O poeta
sabe disso. Por isso, o grande poema, a voz primeira é puramente “ligeiramente
inteira”. Quer dizer, só em aparên cia se tem certeza dessa inteireza. Porque, no fundo, todo poema é falta e descontinuidade. Janelas que se abrem continuamente para outras janelas.
Outra ciência
cujo domínio parece estar em toda parte neste livro – e dizemos parece porque
por mais que olhemos diversas vezes e em tempos diversos é sempre possível que
estejamos equivocados por uma via de ver as coisas – é a do mundo vazio. Daí
talvez resulte uma dentre as várias compreensões para o paradoxal diálogo proposto
entre esses dois termos (pureza / sacrilégio). O mundo vazio à primeira vista
deve se confundir com o mundo primitivo, logo, puro. Mas este novo vazio é
habitado ora por tartamudos ora de escombros. Ao poeta não resta apenas
engendrar uma voz que releve entre as outras vozes, resta ainda engendrar seu
próprio mundo com tais restos. É seu sacrilégio. O poeta contemporâneo é um bricoleur.
Mas aqui não
encontra o leitor uma voz que se compraz com os vazios, nem com os restos, ou
torne a busca pelo poema uma obsessão. Na
pureza do sacrilégio é um livro múltiplo: cabe certos impulsos da tradição
modernista brasileira; as silhuetas da memória e dos afetos; os acontecimentos
mais corriqueiros; os amores, as paisagens. Os poemas, entretanto, são, cada um,
peças tão bem polidas, capazes de nos propiciar um reencontro com nossos
próprios sentidos e sobre a poesia num mundo em desencanto, ou um reencantamento pela
própria poesia. Quer dizer, pode ser que o leitor esteja – mesmo sabendo que
poetas não são de fiar – seduzido pelo poeta. O tempo, entretanto, o mais justo
dos juízes, dirá se sim ou não. Por enquanto, deixar-se seduzir é a primeira atitude para o contato com a poesia. E a de Carlos Cardoso merece. Experimente.
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