Ler literatura pode ser literatura
Por Manuel Vilas
Com um
título um tanto provocativo, El derecho a escribir mal [O direito de escrever
mal, sem tradução brasileira], acaba de ser publicada uma antologia dos ensaios
do crítico estadunidense Lionel Trilling (1905-1975). Nela se encontram artigos
sobre Liev Tolstói, Mark Twain, Rudyard Kipling, Hemingway, Scott Fitzgerald, Isaac
Bábel, Vladimir Nabokov, Gustav Flaubert e Edith Wharton, sobre a função social
da literatura e, como não, sobre a morte do romance. Em seguida é preciso dizer
que Trilling é um ensaísta que eleva a crítica literária a uma categoria
próxima à da filosofia moral. Seus interesses são muito variados, mas quase
sempre prevalece nele uma interpretação da literatura que une idealismo e
sociologia.
O ponto de
vista de Trilling sobre a literatura envelheceu um pouco e nota-se, com certa
melancolia, que estes ensaios foram escritos no meio do século em uma época
desapressada; como denota certa ingenuidade do mundo teórico anterior ao
advento das tecnologias da informação e especialmente da internet. Ler Trilling
é ler um mundo espiritual já desaparecido. É ler uma história romântica do
espírito, da inteligência ética aplicada à leitura dos escritores modernos.
Trilling gosta de utilizar o sintagma “literatura moderna”. Enquanto lia este
livro invadiu-me certa nostalgia por este momento da história do século XX em
que a literatura era a protagonista do mundo espiritual das sociedades
ocidentais. Nostalgia de quando o pensamento era tolerante, delicado e ao mesmo
tempo ambicioso.
Trilling é
como um Gay Talese da cultura, o último clássico da reflexão literária de altos
voos e que considera a literatura como arte independente, insubmissa e desobediente
a qualquer conveniência política. O que o leitor não encontrará é qualquer
referência para além de Cervantes e de um San Juan de la Cruz citado com
urgência; nenhuma alusão à literatura em espanhol, algo a que já nos
acostumaram os críticos anglo-saxões. O livro se abre com requintadas
observações sobre o mundo criativo de Tolstói, por vezes um tanto lendárias. A
equalização entre natureza e literatura em Homero e Tolstói é uma ideia
sedutora e provavelmente certa; é uma ideia que vem de [Alexander] Pope. Como
também é iluminadora a ideia de que Tolstói não construiu enredos em seus romances;
simplesmente permaneceu atento ao misterioso fluir da vida. A parte mais
convincente do pensamento de Trilling se evidencia em sua decidida união ou
síntese entre literatura e vida. Para Trilling está claro que a literatura
serve à vida e à sua complexidade, ou que a literatura é capaz de engendrar
grandes símbolos, como o do rio Mississippi na obra de Twain, que é quase como a
representação de todo um país, neste caso, os Estados Unidos. E recorda como o
autor de As aventuras de Huckleberry Finn forjou a prosa narrativa
estadunidense, e o fez em fala coloquial. Foi o pioneiro de um estilo e de uma
forma naturalista de ver a vida, um naturalismo que acabaria por forjar o
caráter americano. Hemingway recordará precisamente a enorme dívida com Twain.
É também brilhante a descida às profundezas da mente de Scott Fitzgerald e sua
interpretação de O grande Gatsby, que alia autobiografia e romantismo.
Trilling tem
clara consciência de que um grande crítico literário deve seduzir a
inteligência e a emoção de seus leitores. Este é um livro sobre literatura
escrito com muita literatura, repleto de um senso sério sobre a identidade da
arte. Destaca-se a marginalização do humor nestes ensaios, como se este não
existisse enquanto fundamento da literatura moderna. O que atrai Trilling é a
crítica das ideias de seus autores favoritos. É verdade que Trilling aspira à
objetividade e tudo quanto afirma o faz com essa prudência do homem de letras
bem informado.
Mas há mais
estilo que verdade científica ou objetiva no que Trilling afirma. A crítica
literária como um gênero a mais da literatura encontra em El derecho a escribir
mal um de seus momentos estelares. E é assim que se deve ler Trilling, como um
escritor que escreve sobre outros escritores a partir de um humanismo clássico,
pedagógico e indagador. Indagar sobre a verdade humana da literatura é
geralmente o modo que o próprio Trilling se constrói como escritor. O ensaio
sobre a Lolita de Nabokov afirma que neste romance, mais do que a entomologia
de uma depravação, há uma história de amor. E que se Lolita nos perturba ele o
faz na medida em que situa o amor no lugar da condenação radical. Literatura e
moralidade são, para Trilling, almas gêmeas.
O ensaio
sobre Isaac Bábel tem seu protagonismo nesta antologia uma vez que Bábel
representa o exercício da liberdade da literatura sob o totalitarismo, neste
caso sob o stalinismo. Trilling sente uma admiração especial por ele porque
simboliza os valores irredutíveis da fusão entre vida e literatura. Em 1934, no
primeiro Congresso de Escritores, Bábel disse com ironia que “o partido e o
Governo nos deram tudo sem tirar mais do que um privilégio: o direito de
escrever mal”. Recordar que esse direito havia sido perdido, e fazê-lo diante
do olhar atento de Stalin, foi a desgraça de Bábel, que acabaria fuzilado em um
dos expurgos do stalinismo. A leve ironia de Bábel enfureceu Stalin, uma ironia
que, no entanto, ao mostrar-se de um ângulo inesperado do pensamento, humilhava
todo o aparato ideológico com que o comunismo sentenciou a literatura. E
mostrava o stalinismo e suas ideias sobre literatura como realmente eram: lixo
vulgar que só admitia a piada como crítica fundamentada.
* Tradução
livre de Guilherme Mazzafera a partir do texto original publicado em El País em
23 de julho de 2018
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