Companheiros de viagem: J.R.R. Tolkien e C.S. Lewis: "O dom da amizade", de Colin Duriez
Por Guilherme
Mazzafera
Ainda que a
ominosa sombra do clichê paire constantemente sobre os resenhistas, digo sem
peias que o lançamento de J.R.R. Tolkien e C.S. Lewis: o dom amizade, de Colin
Duriez, pela HarperCollins Brasil, é um acontecimento. Não pelo livro em si,
que já havia sido lançado pela Nova Fronteira em 2006. É um acontecimento por
ser o primogênito de uma enorme lista de livros de e sobre Tolkien que a HarperCollins
promete lançar ao longo dos próximos sete anos, incluindo a obra completa do
autor, que continua a expandir-se quase anualmente. Nesta primeira publicação, nota-se
o empenho em um belíssimo projeto editorial de ar austero, quase clássico (mas
com toques modernos), atendendo à demanda do público por obras em capa dura,
com tamanho padronizado e preço acessível. O que é verdadeiramente importante,
no entanto, é que o leitor tem em mãos uma tradução de altíssima qualidade feita
pelo principal tradutor de Tolkien entre nós, Ronald Kyrmse, amparada por um
serviço especializado de revisão, com profissionais versados na dupla de
autores contemplados pelo livro. E este parece ser o padrão que a Harper
procurará seguir nos próximos lançamentos, como no já publicado J.R.R. Tolkien:
uma biografia, de Humphrey Carpenter (também com tradução de Kyrmse e que
resenharemos em breve), e nos anunciados A queda de Gondolin, o novo livro de
Tolkien, que será lançado em português de forma simultânea com a versão inglesa
em 30 de agosto, com tradução de Reinaldo José Lopes (especialista em Tolkien
já encarregado das traduções de O silmarillion e O hobbit), e, para novembro, Beren
e Lúthien, lançado originalmente no ano passado, também com tradução de Kyrmse,
que agora dedica seus esforços à nova versão brasileira de O senhor dos anéis.
Além de
funcionar como importante rito de passagem para a Harper brasileira, que
adquiriu no ano passado os direitos sobre as obras de C.S. Lewis, tendo já
lançado cinco de seus livros pelo selo Thomas Nelson (Cartas de um diabo a seu
aprendiz, Os quatro amores, O peso da glória, Cristianismo puro e simples e A
abolição do homem) e prometido mais dois para setembro (Sobre histórias e A
última noite do mundo), o estudo de Duriez me parece cumprir outra função
importante em seu relançamento programático: o de tirar Tolkien de certo
isolamento literário, percebido tanto na constante rejeição acadêmica que suas
obras ainda sofrem no Brasil, quanto, no espectro oposto, na sua fruição de
sabor secreto-clandestino por devotados grupos de leitores, fenômeno presente por
aqui desde ao menos desde o final dos anos 1980 e do qual Kyrmse – exímio
tradutor sem filiações acadêmicas – dá notícia em seu livro Explicando Tolkien
(2003), tendo sido ele mesmo um de seus mais destacados partícipes.
Creio ser
justo dizer que um dos objetivos centrais da editora é o de que Tolkien deixe
de ser um escritor de nicho e passe, cada vez mais, a frequentar os diversos
espaços de sociabilidade literária – simpósios, colóquios, revistas, clubes de
leitura, redes sociais em geral e, quiçá num futuro não tão distante, programas
de disciplinas universitárias. A prova deste intuito se faz notar no apoio da mesma
à realização de diversos eventos: um curso de difusão na USP em agosto deste
ano; um painel sobre Tolkien na FLIP e outro na Bienal do Livro de São Paulo; um
debate sobre O dom da amizade no dia do amigo, em julho; além do
estabelecimento contínuo de um bom diálogo com importantes canais do youtube
como o Tolkien Talk. A criação dessa ponte entre o público já fidelizado, que
bravamente vem produzindo conteúdo de qualidade (seja na internet ou na
academia, onde resistem com coragem), e um público mais amplo de literatura, de
modo que Tolkien possa conviver com outros escritores, canônicos e
contemporâneos, é passo fundamental para a democratização de sua obra e para
uma melhor compreensão de seus alcances e limitações. Não é outro o intuito
desta resenha, publicada aqui no Letras, e das outras por vir.
Nada é mais
ficcional que uma biografia, a não ser a autobiografia. Quando se trata de um
objeto duplo, mediado pela escolha de um fio condutor ostensivo – a amizade
entre Tolkien e Lewis, percebida por Duriez como “extremamente forte e
persistente” –, muito do que já foi devassado por outros estudos é retomado,
outro tanto ignorado e, essencialmente, as novas descobertas do biógrafo devem amalgamar-se
em liga orgânica com seu projeto de livro (voltaremos a esse ponto). Duriez
está perfeitamente consciente de tais questões, indicando de modo bastante
geral suas principais fontes e débitos bem como a não pretensão de responder a
todas as perguntas, postura expressa de modo bem humorado: “Ainda não sei se
balrogs tem asas, a despeito da bela visualização no filme A Sociedade do Anel,
mas acho que descobri porque os hobbits comem fish and chips.”
O método
adotado é descrito na introdução. Cada capítulo é iniciado por uma “vinheta” (e
outras podem aparecer de entremeio) em que o biógrafo encarna de leve o
ficcionista e recria cenas fundamentais das vidas em questão. Não há maior
elogio ao poder da ficção como via de acesso e conhecimento do mundo do que tal
contaminação ficcional pelo gênero biográfico. Além disso, não deixa ser uma
bela homenagem do biógrafo a seus biografados, marcados pela crença da via
imaginativa como modo privilegiado de amplificação da experiência e pela
partilha de infâncias “surpreendentemente marcadas pela imaginação”. A primeira
destas vinhetas, por exemplo, leva-nos à estação King’s Heath, em Birmingham,
onde vemos Tolkien aos nove anos, acompanhado do irmão Hillary, observando com
fascínio as inscrições no flanco dos vagões de carvão vindos dos vales de
mineração de Gales do Sul, reconhecendo, talvez pela primeira vez, a beleza dos
nomes ignotos que o impulsionaria mais tarde a criar todo o contexto necessário
para que nomes como estes pudessem existir in natura: “Dê-me um nome e ele
produz uma história, não o inverso.”
Tanto pela presença
das vinhetas, em geral imersivas, quanto pela escrita como um todo, a leitura é
extremamente agradável, um verdadeiro convite a devassar um pouco da intimidade
dos escritores para, ato contínuo, refletir sobre seus anseios e posições – e
mesmo suas contradições, em especial nos anos finais, de amizade mais dura –,
sem jamais descambar para o gozo voyeurístico irrestrito. Embora não seja um
livro longo, a abrangência de informações e questões que sua leitura nos coloca
é imensa, o que obriga o resenhista a optar por alguns pontos nodais para
traçar um possível mapa da leitura. A minha foi feita de modo bem lento e
anotado e, como não poderia deixar de ser, com algumas inquietações.
J. R. R. Tolkien. Foto: Camera Press /Bill Potter |
Um leve
incômodo que tive, como pesquisador acadêmico que precisa dar recibo de tudo
que lê – mas também como curioso que se depara com pequenas joias e quer
desesperadamente o endereço do ourives –, é que nem sempre as referências das
citações são tão claras, constando apenas a lista bibliográfica no fim e um
quase inexistente sistema de referências no interior do livro, de modo que não
é possível ter certeza sobre as contribuições de facto originais do biógrafo.
Há algumas notas esparsas do autor, bem como notas da edição e do tradutor.
Estas, além de clarificarem alguns meandros linguísticos, acabam, quando
necessário, por melhor precisar e até mesmo corrigir algumas impropriedades do
texto original, o que é um ganho para o leitor brasileiro. Originalmente
lançado em 2003, ainda no boom das primeiras adaptações cinematográficas de
Peter Jackson, não se trata de um livro propriamente acadêmico, mas sim voltado
para um público mais amplo, e que mais repõe questões do que necessariamente
faz as suas próprias. Imagino que o leitor nacional poderá experimentar uma
forma anacrônica de déjà-vu quando se lançar à biografia oficial de Carpenter,
publicada originalmente em 1977 e já disponível por aqui, texto de apoio basicamente
canônico do qual Duriez se vale copiosamente.
Parte dessa
sensação remonta, a meu ver, à própria escrita de Duriez, que busca a fluidez
comunicativa em meio à mobilização de uma grande massa documental, e ao seu
próprio histórico de escritor, desvinculado da academia, marcado por alguns
anos de trabalho jornalístico e que se construiu por meio de livros dedicados
mais a divulgar e explicar seus objetos do que a interpretá-los criticamente,
como se dá nos handbooks, (The Inklings Handbook, The J. R. R. Tolkien
Handbook, C. S. Lewis Handbook, The Tolkien and Middle-earth Handbook), nos “field
guides” ou “manuais práticos” (como um deles foi traduzido por aqui) sobre
Nárnia e Harry Potter e também na The C. S. Lewis Encyclopedia e no The A-Z of
C S. Lewis. Duriez também escreveu livros menos “práticos” como Bedeviled:
Lewis, Tolkien and the Shadow of Evil e The Oxford Inklings: Lewis, Tolkien and
their Circle, ambos lançados em 2015, mas imagino que seu pendor não divirja
muito do que vemos em O dom da amizade, escrito com a consciência de “não
sobrecarregar meu livro com detalhes que pertencem com propriedade a um estudo
especializado”.
No caso
específico deste último, movido pelo anseio de promover um convite a Tolkien e
Lewis, a escolha editorial me parece bastante acertada, abrindo possibilidades
que o leitor pode explorar por sua conta. A bibliografia elencada por Duriez, consideravelmente
alentada, é mais incorporada do que ostensivamente citada, o que é um ganho
para o leitor em geral. Não me parece haver uma tese a que se quer provar
aguerridamente, mas uma percepção inicial sobre o caráter complexo e duradouro
de uma amizade construída pela partilha de um pathos, uma verdadeira disposição
do coração em que a amizade não emerge inexoravelmente como necessidade vital,
mas, talvez como percebe Lewis em Os quatro amores, citado por Duriez, uma
instância em que “ninguém reivindica ou tem qualquer responsabilidade com o
outro, mas todos são pessoas livres e iguais, como se tivessem se encontrado há
uma hora, ao mesmo tempo que uma afeição enternecida pelos anos nos envolve.”
A noção de fellowship,
enquanto junção da amizade filial e do vínculo acadêmico, é o termo chave para
se pensar O dom da amizade. Uma rápida consulta ao Oxford English Dictionary
nos leva à noção de “associação entre amigos com interesses em comum”, seguida
por “guilda ou corporação” e, por fim, o “status de alguém que é membro uma
faculdade (college) ou sociedade (society)”. O Merriam-Webster acrescenta
opções mais modernas, incluindo 1) a posição ocupada por um membro (fellow) em
determinada universidade; 2) o salário recebido por um fellow; 3) uma fundação
provedora de tal montante. Em outras palavras, o aspirante a fellow solicita
uma fellowship (salário, algo como uma bolsa de estudos, mas não só) que pode
vir a ser paga por uma fellowship (fundação). Embora se possa entender fellowship
no segundo caso como bolsa de estudos, há diferenças entre este termo e outro
mais corriqueiro, scholarship: o segundo sempre implica ajuda financeira,
enquanto o primeiro remete sobretudo à posição a ser ocupada pelo pesquisador
agraciado dentro da estrutura universitária, que pode ou não ser acompanhada de
auxílio financeiro e que traz outros benefícios como acessos a acervos e
bibliotecas. Além disso, o primeiro geralmente exige do pesquisador uma espécie
de retorno à comunidade que lhe facultou o benefício, seja por meio de
estágios, aulas ou algum outro tipo de serviço.
Evidentemente,
a fellowship vivida e estimulada pelos autores – eles mesmos fellows de
diferentes colleges oxfordianos – , assim como a que consta no título da
primeira parte do romance de Tolkien, remete especialmente à noção de irmandade
(como consta na tradução portuguesa e na sueca), uma afinidade de espírito
transformada em convivência física e intelectual, algo que reaparece em outras
traduções como companhia (italiano), comunidade (espanhol e francês), fraternidade
(tradução francesa recente de Daniel Lauzon) ou mesmo, num desses casos curiosos,
como os companheiros (Die Gefährten) na tradução alemã, elidindo-se, inclusive,
a referência ao anel, e, de modo ainda mais preciso, Os companheiros de viagem (De
reisgenoten) no caso da tradução holandesa feita por Max Schuchart nos anos
1950, que exemplifica bem as nuances dessa convivência.
C. S. Lewis. Foto: Time & Life Pictures/Getty Images |
Um aspecto
que sempre me chamou a atenção na biografia de Tolkien, e que Lewis partilha
entusiasmadamente, é a procura contínua por espaços informais de sociabilidade
literária, como evidenciados na experiência do T.C.B.S. (Tea Club Barrovian
Society), no Apolausticks, no Clube
Viking, nos Coalbiters e, sobretudo, nos Inklings, “círculo indeterminado e não
eleito de amigos que se reuniram em torno de C. S. Lewis”, de modo geral
“cristãos críticos”, encontrando-se semanalmente nos aposentos de Lewis no
Magdalen College e no já lendário pub The Eagle and Child, para ler em voz alta
e comentar diversas criações ficcionais in progress. Boa parte de O senhor dos
anéis teve sua primeira recepção neste restrito ambiente de solidariedade
literária e não à toa a primeira impressão de A sociedade do anel contava com
uma dedicatória ao grupo (que deveria ser mantida pelo lastro histórico que
carrega). Os Inklings tinham em seu núcleo quatro nomes: Lewis, Tolkien, Owen
Barfield e, posteriormente incorporado, Charles Williams, adição que incomodou
a Tolkien pelo interesse entusiasmado de Lewis pelo novo membro. As reuniões
duraram mais ou menos de 1933 a 1949 e encontraram seu fim de um modo
consideravelmente desolador, como o leitor poderá descobrir. Segundo Duriez, “a
experiência da T.C.B.S. deixou uma marca permanente no caráter de Tolkien, que
ele capturou na ideia de ‘sociedade’ com a Sociedade do Anel.” A amizade com
Lewis e a busca constante por tais espaços comuns não deixam de se relacionar
também à experiência precoce da orfandade dos pais e, mais tarde, de dois
amigos da T.C.B.S. ceifados pela máquina da guerra, a mesma que conduzirá
Tolkien ao hospital com febre das trincheiras e ao provável início de sua
mitologia, composta na convalescença.
Vale lembrar
que tais modalidades de fellowship eram essencialmente masculinas, algo típico
da época e que explica a exclusão meramente formal de Dorothy L. Sayers,
escritora cujo pensamento era profundamente afinado com os Inklings. Além
disso, como lembra Duriez em nota, Tolkien e Lewis pareciam concordar naquele
momento que “para os homens as amizades profundas só eram possíveis com outros
homens”. Se pensarmos na importância da amizade, da fellowship nos escritos
ficcionais de Tolkien, os laços de afeição que unem a companhia do anel em sua
demanda e que, em grande medida, tornam possível seu sucesso, faz-se inevitável
a seguinte pergunta: seria a amizade assim pensada um elemento de experiência
acessível também às personagens femininas ou uma exclusividade dos personagens
masculinos? Em caso afirmativo, como ela se dá nas relações entre personagens
femininas (elas efetivamente existem para além do círculo familiar?) e nas
relações entre personagens femininos e masculinos? Trata-se de uma pergunta
complexa que deixamos registrada por aqui para sondagens futuras.
Vista de
hoje, a existência de tais grupos informais nascidos no seio universitário soa
quase como uma idílica isla de sanidade em face de uma época dominada pelo
mantra acadêmico do publish-or-perish, em que grupos se formam para obter
financiamentos que deverão resultar em publicações, livros, congressos, mas não
para ler de forma desinteressadamente apaixonada, de viva voce e sempre que
possível no original, a trilha de sangue dos Volsungos e as peripécias de
Väinämöinen, ou mesmo testar, diante de um público intimista, suas criações
literárias. Tolkien, procrastinador nato, detalhista e movido pelo fogo secreto
da obra interminável, dificilmente sobreviveria neste modelo acadêmico
utilitarista. Lewis se adaptaria melhor, antes pela livre expressão de uma
natureza inquieta e móbil do que pela conformação aos editais de bolsa e
produtividade.
Talvez se
possa ver aí uma das principais divergências entre os autores e seus métodos.
Tolkien era o escritor da concentração absoluta, do refinamento progressivo e
dedicado, de poucas publicações, o que ajuda a explicar o efetivo caráter
póstumo de sua obra, editada majoritariamente por seu filho Christopher. Ela se
divide basicamente entre as não muito frequentes publicações acadêmicas (em que
se destacam o parco volume de ensaios de 1983 Beowulf: The Monster and the
Critics and Other Essays, A Middle English Vocabulary e as traduções e
comentários de textos em Inglês Antigo e Inglês Médio como Ancrene Wisse,
Exodus, Beowulf, Finn and Hengest, Sir
Gawain and the Green Knight, Pearl e Sir Orfeo); a ficção curta (Mestre Gil de
Ham, Roverandom, Ferreiro de Bosque Grande, Sr. Bliss, As cartas do Papai Noel);
as recriações criativas de algumas de suas fontes prediletas (mitologia nórdica
– The Legend of Sigurd and Gudrun; matéria arturiana – The Fall of Arthur; o Kalevala
finlandês – The Story of Kulervo; baladas bretãs – The Lay of Aotrou and Itroun)
e o massivo volume de escrita dedicado à
composição do seu Legendarium, ou seja, a matière da Terra-média, cuja
publicação póstuma supera e muito o pouco que Tolkien viu impresso em vida.
Lewis, prolífico e eclético, atuou em diversas frentes: crítica literária (Alegoria
do amor, A imagem descartada, Um experimento na crítica literária e muitos
outros), ficção infanto-juvenil (As crônicas de Nárnia, escritas de modo quase
serial entre 1949 e 1954), ficção científica (Trilogia Cósmica), diversas obras
de apologética cristã (Cristianismo puro e simples, Deus no banco dos réus, O
peso da glória etc.), além de incursões pela poesia (Spirits in Bondage, Dymer)
e outras modalidades narrativas (O regresso do peregrino, A torre negra e
outras histórias). Uma boa síntese desta diferença encontra-se na percepção de
Tolkien sobre o vestuário de Lewis como “desleixado”, algo que se refrata
também em sua visão geral da produção literária do amigo, marcada, a seus
olhos, pelo excesso alegórico nos livros de Nárnia e pela vulgarização presente
na apologética cristã. A essa feição mais direta e ostensiva, indica Duriez a
preferência e busca de Tolkien por uma “abordagem muito mais alusiva do artista
criativo”, viés que se alicerça na complexa visão ético-literário-filosófica de
seu ensaio mais famoso, a profissão de fé “Sobre estórias de fadas”.
A natureza
mais aberta e receptiva de Lewis também ressoa na maleabilidade com que
absorvia as ideias do amigo, incorporando noções, perspectivas e mesmo termos
especificamente tolkienianos em sua obra (como ‘numinor’, ‘Númenor’ em Tolkien,
contrabandeado por Lewis para Uma força medonha possivelmente após ouvi-lo na
leitura feita pelo amigo de “The Lost Road”). Essa troca de gentilezas
apresenta momentos interessantes, como a provável homenagem à voz grave de
Lewis na criação do ent Barbárvore, em O senhor dos anéis, enquanto Lewis dá
vida ao filólogo Elwin Ransom, protagonista da Trilogia Cósmica, bastante inspirado
no amigo hobbit. Além disso, Lewis dedica as Cartas de um diabo a seu aprendiz
a Tolkien que, é verdade, parece não ter entendido muito o motivo. Se o termo
dupla influência pode ser enganador, já que Tolkien não parece ter absorvido ideias
e convicções literárias de Lewis, sendo excessivamente crítico e mesmo chato
com o amigo, pode-se falar, talvez, em uma troca mais sutil e profunda, uma compensação:
“A amizade com Lewis compensa muita coisa”. Desta, Tolkien muito se beneficiou graças
ao apoio irrestrito de Lewis durante a composição de O senhor dos anéis e de
sua apaixonada defesa pública das obras do amigo em excelentes resenhas de O
hobbit e d’O senhor dos anéis, textos reunidos em Sobre histórias.
Como conta
Duriez, Lewis, que crescera numa casa repleta de livros que pareciam compor o
próprio alicerce da habitação, era leitor ávido e eclético, afeiçoado a
bibliotecas, defensor de escritores “menores” como Rider Haggard e para quem a
leitura, da qual a escrita se fazia ato contínuo, é constitutiva da existência:
“Era a leitura, ainda mais do que o debate intelectual e a amizade (apesar de
ansiar por esta), que alimentava sua mente e imaginação e o mantinha
mentalmente vivo. Via o mundo com a ajuda de textos, como parte de uma
percepção simbólica da realidade.” Segundo Tolkien, Lewis era um “ouvinte
compreensivo”, alguém que “gostava que lessem para ele” e que reagia de modo
entusiasmado mas também crítico ao que escutava, como atesta sua longa análise
por escrito de uma das primeiras versões da “Balada de Leithien” composta pelo
amigo. Se o ensaio de Tolkien sobre Beowulf tornou-se canônico e incontornável
para futuros estudos do poema, a produção acadêmica de Lewis não fica atrás,
seja com o importante Alegoria do amor: um estudo da tradição medieval, seja,
como indica Duriez, por ter antecipado em certa medida noções mais tarde
desenvolvidas teoricamente pela Nova Crítica e, uns anos depois, pelo destaque
conferido à “recepção da literatura” e à figura do leitor em Um experimento na
crítica literária (1961), dimensões estas que ganhariam proporções fundantes ao
longo dos anos seguintes nos estudos de Wolfgang Iser e Hans Robert Jauss, os
mais destacados partícipes do nicho teórico que se denominaria estética da
recepção.
O sentido de fellowship se articula também com
os inícios da amizade entre os autores, engatilhada por uma conversa sobre o
plano de Ensino da Escola de Inglês de Oxford. Tal conversa fomenta a ação
decisiva da dupla, buscando romper a cisão e o antagonismo entre Língua e
Literatura em prol de um viés mais integrativo, sem o qual uma obra como O
senhor dos anéis jamais se realizaria, algo percebido pela costumeira agudeza
de W. H. Auden, outro grande defensor das obras de Tolkien – “Ninguém a não ser
um filólogo e um poeta poderia ter escrito O hobbit e O senhor dos anéis”. Como
informa Duriez, o plano pensado pelos amigos dava destaque para o estudo da
literatura medieval (abarcando o Inglês Antigo e o Inglês Médio), cujo treino
linguístico seria importante porta de entrada para a literatura moderna,
ressaltando “o senso de continuidade da literatura inglesa”. O ensaio de
Tolkien de 1930, “The Oxford English School”, dá o tom da discussão.
No entanto,
talvez a dimensão mais profunda da noção de fellowship entre Lewis e Tolkien seja
a partilha de uma atitude criativa, ficcional, alimentada pela imaginação e que
tem em seu âmago a recuperação de uma “consciência unitária perdida”,
localizada, em especial, no “esplendor imaginativo da Idade Média” (mas não
só). Tolkien e Lewis se viam como “adversários do espírito moderno”, reagindo
ao modernismo como estética e dogma intelectual, reação que gestou uma espécie
de projeto literário comum – ainda que com realizações marcadamente
idiossincráticas – que tinha por horizonte a escrita de “contos de fadas para
adultos”. Um dos momentos mais expressivos deste anseio mútuo é a amigável
aposta discutida em 1936 em torno da escrita de narrativas de viagem: a Lewis
caberia viagem pelo espaço; a Tolkien, viagem temporal. Como de costume, Lewis
responderá rapidamente ao chamado com sua Trilogia Cósmica (Além do planeta
silencioso, Perelandra e Uma força medonha), enquanto Tolkien comporá o esboço
de uma primeira estória, “The Lost Road”, abandonada e retomada mais tarde em
outra chave em “The Notion Club Papers”. Os dois textos foram publicados,
respectivamente, nos volumes V e IX da série History of Middle-earth.
Essa busca
de unidade manifestava-se não apenas nas obras ficcionais dos autores, mas
também comparecia em suas contribuições acadêmicas, por meio de uma apreensão
da unidade como soma das partes, de modo análogo ao que Tolkien propunha para o
entendimento dos mitos: “Pois o mito vive ao mesmo tempo e em todas as suas
partes, e morre antes de poder ser dissecado”. É este o espírito que anima o
poderoso ensaio de Tolkien a que pertence esta citação, “Beowulf: The Monsters
and The Critics” (1936), em seu anseio pela fruição de uma “obra de arte
unificada”, e que se faz sentir, no caso de Lewis, em English Literature in the
Sixteenth Century e em Alegoria do amor, no qual a alegoria se faz conceito chave para pensar
diversas obras em suas diferenças como também para caracterizar um modo
específico de pensamento literário medieval.
O leitor há
de notar que optei por não mencionar diversas passagens “canônicas” das vidas
em questão. Para quem as conhece, seria enfadonho; para os que não, seria um
esbulho. A intenção desta resenha foi tríplice: sopesar a importância da
publicação neste momento histórico, de pregnante renovação de Tolkien e Lewis
no Brasil; avaliar, de modo sucinto, as opções do biógrafo, seus alcances e
limites; e, por fim, perseguir, a partir do texto de Duriez, um fio condutor
que procuramos corporificar na complexa noção de fellowship, palavra em grande
medida intraduzível neste contexto. Cabe talvez especular que este anelo
recuperativo – lembremos que recuperação é uma das funções essenciais das
estórias de fadas para Tolkien – de um sentido unitário se espraia, a meu ver,
para muito além da dimensão mais imediata da “ortodoxia imaginativa” ou da “renascença
cristã” que Duriez dá notícia, encontrando algum eco nas observações daquele
que foi o maior crítico literário do século passado, Erich Auerbach, cuja obra
principal, Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental (1946)
compõe, ao lado de Literatura europeia e Idade média latina (1948), de Ernst
Robert Curtius, e da História da literatura ocidental, do austríaco-brasileiro
Otto Maria Carpeaux, a tríplice aliança do anseio recuperativo evidenciado no
pós-guerra por críticos literários em exílio a partir da escrita de poderosas
obras de síntese em situações de dificuldade. Auerbach, cujo método é
essencialmente filológico, ao procurar pensar tal disciplina em âmbito global,
diz-nos em “Filologia da literatura mundial”:
“Já agora
somos ameaçados pelo empobrecimento ligado a uma formação cultural a-histórica,
que não apenas já existe como procura a cada dia afirmar seu domínio. Aquilo
que somos, nós o somos por nossa história, e só dentro desta podemos conservar
e desenvolver nosso ser; tornar isso claro, de modo penetrante e indelével, é a
tarefa da filologia de nosso tempo.”
Esta tarefa
não implica, no entanto, uma redução ou especialização obtusa, marca precípua
do academicismo de hoje; pelo contrário, o ensaio deixa claro que se o ângulo
de pesquisa precisa ser bem delimitado, “nossa pátria filológica é a Terra – a
nação já não pode sê-lo”, lição imanente ao livre trânsito de Tolkien e Lewis
pelos textos e culturas literárias que os interessavam, recompostos, na obra de
cada um, em síntese própria.
Se
retomarmos a opção do tradutor holandês para o título de A sociedade do anel,
creio estarmos diante da melhor forma de compreender as obras de Tolkien e
Lewis conjuntamente: Os companheiros de viagem. Movidos por anseios comuns, mas
tomando por vezes estradas diversas, subjaz à realização literária dos amigos a
crença profunda em um sentido unitário de experiência, em que os caminhos de
Nárnia ou da Terra-média, a despeito de suas diferenças, constituem-se como
“pano de fundo variado para um destino comum”(1), destino esse que ainda nos cabe.
(1) Expressão
retirada do ensaio “Filologia da literatura mundial”. Ver: AUERBACH, Erich. Ensaios
de literatura ocidental. Organização de Davi Arrigucci Jr. e Samuel Titan Jr.
Tradução de Samuel Titan Jr. e José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo:
Editora 34, 2007.
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