Anna Akhmátova. Anna de todas as Rússias

Por Lara Moreno



“Quem é essa mulher sobre a terra com esse rosto fechado, nublado?”
(Marina Tsvetáieva)

Nasceu em 1889, numa noite de São João, próximo a Odessa, às margens do mar Negro. Contam que inventou a si própria. Substituiu o sobrenome de seu pai, Gorenko, pelo de uma antepassada sua, uma princesa tártara. Akhmátova veio ao mundo na noite em que os poderes do bem e do mal se radicalizam, atravessando o solstício de verão. Pode ser por isso que Nikolái Gumiliov disse que havia convivido “com uma feiticeira, não com uma esposa”. Era sonâmbula e seu pai teve que resgatá-la do telhado numa madrugada. Talvez essa doença da noite manifestava um grito de solidão, ou talvez simplesmente era um de seus poderes: há seres que não dormem. Também quando criança, no parque chamado O Jardim do Czar, de Kiev, encontrou um prendedor em forma de lira e sua cuidadora lhe disse que aquilo era um sinal de que seria poeta. Mas possivelmente Akhmátova já sabia disso. Escreveu seu primeiro poema no inverno de 1900, com onze anos, depois de uma longa enfermidade. Seu pai a chamaria depois de poeta decadente e ela sempre relacionou o despertar da poesia com a enfermidade. Começaria por conta própria, como todos os poetas começam. Mas, Anna Akhmátova, Anna de todas as Rússias, acabaria por ser a palavra da dor de seu país, que não é uma dor qualquer.

A cidade que a viu erguer-se foi São Petersburgo, o sonho descomunal de Pedro, o Grande. Milhares de trabalhadores morreram escravizados enquanto a levantavam. Uma cidade construída abaixo do nível do mar e assolada por constantes inundações, onde os lobos famintos varavam as noites.

A primeira vez que me encontrei com o nome de Anna Akhmátova foi na Livraria de Lavapiés, há quase dez anos. Eu percorria as seções de poesia das livrarias buscando iluminações ao acaso. Numa edição da Galaxia Gutenberg, me chamaram a atenção esses dois nomes russos de mulheres que não conhecia: Anna Akhmátova e Marina Tsvetáieva, El canto y la ceniza. A tradução e a seleção dos textos são de Monika Zgustova e de Olvido García Valdés. Levei o livro comigo e de alguma maneira sutilmente mudou minha vida, porque sempre tive que percorrer a diferença entre as duas, uma lacuna em minha voz e em minha busca.

Akhmátova, Pasternak, Mandelstam, Tsvetáieva. Grandes poetas russos do século XX. Dizer grande poeta russo do século XX é falar de um tamanho especial. Uma concreta grandiosidade. Encontro na identidade dos escritores russos uma consciência de sublime, algo forjado que é imbatível. Sua selvagem e imponente história, a infinitude de seu tamanho. Anna de todas as Rússias é o epígono com o qual Marina Tsvetáieva batizou sua camarada. Marina, a exilada, a quase sempre estrangeira. Anna, a resistência. A que permaneceu, viu e envelheceu ao ritmo desolador da história dos seus. Olvido García Valdés diz no prólogo da antologia que um mito é um ser no qual se fixam aspectos de uma época que toma a imagem desse ser. Akhmátova, com seu infinito poder simbólico de poeta, tinha em sua própria percepção as dimensões de um mito. Akhmátova ampliou sua vida política, literária e amorosa entrelaçada com o pulso da própria história. O pessoal, o político e o místico. Assim, sua grandiosidade é a de um herói trágico que luta contra um destino com apenas a arma de sua expressão. Akhmátova é a que subiu à torre, com o corpo já cansado, para observar as ruínas de seu século XX. Resistiu, penou e envelheceu: viu morrer seus amigos pelas forças do regime, fuzilaram seu primeiro marido, seu filho foi preso e levado para os campos de trabalhos forçados, foi censurada, sobreviveu à miséria. Mas, amou este gentio e este sangue. Escreveu. Como disse García Valdés: “Um poeta não pertence ao seu tempo, dá nome ao seu tempo”.

O primeiro fragmento que escreveu para “Réquiem”, poema no qual trabalhou entre 1935 e 1940, poderia ser dedicado a Punin, seu amor de então, ou ainda a Mandelstam, que foi preso. “Levaram-te embora ao amanhecer. / Atrás de ti, como quem acompanha um carro fúnebre, eu segui”. Akhmátova dormia na cozinha dos Mandelstam numa noite de maio de 1934. A polícia secreta chegou a uma da manhã para levar seu amigo. Anna disse aos homens que esperassem, que antes de ir, o amigo precisava se alimentar. E lhe entregou um ovo que havia cozido para ele. Tinha pedido esse ovo na tarde anterior aos vizinhos. Ele se sentou, jogou um pouco de sal e comeu. A maior parte do poema está escrita entre 1939 e 1940. Akhmátova tinha então cinquenta anos. “Réquiem” é um excelso poema da maturidade. É testemunho. E a poeta escreve debaixo de seu próprio céu, sem país estrangeiro que a ampare.

Em 1957, escreveu o texto que hoje abre o poema, “No lugar de um prefácio”:

“Nos anos terríveis da Iéjovshtchina, passei dezessete meses fazendo fila diante das prisões de Leningrado. Um dia, alguém me ‘reconheceu’. Aí, uma mulher de lábios lívidos que, naturalmente, jamais ouvira falar meu nome, saiu daquele torpor em que sempre ficávamos e, falando pertinho de meu ouvido (ali todas nós só falávamos sussurrando), me perguntou:
– E isso, a senhora pode descrever?
E eu respondi:
– Posso.
Aí, uma coisa parecida com um sorriso surgiu naquilo que, um dia, tinha sido o seu rosto.”

Acredito que toda a força de Anna Akhmátova reside nesse “posso”. Todo seu poder. “Réquiem” é uma celebração fúnebre e é também uma via crucis composta por catorze estações. É um poema cheio de sofrimento e de mistério, mas se ergue magnânimo em toda sua beleza e forma firmemente concebidas. “Réquiem” é o poema de um povo humilhado e de uma mulher humilhada. A Revolução Russa, os anos do terror de Stálin, a Segunda Guerra Mundial. Akhmátova decidiu ficar nessa Rússia convertida em miséria e em crueldade e pode contá-la. Reli não sei quantas vezes esse “No lugar de um prefácio” e quando Anna diz “posso”. Porque não é apenas uma formulação verbal, nem um consolo, nem o adiantamento de uma possibilidade, é a declaração de intenções da própria literatura, que serve e é guerra contra a guerra e é palavra na dor, memória, lamento, grito, porque é sussurro numa ordem de oprimidos, luminosidade na escuridão, e é tão forte esse poder, tão justo, que tem todo o sentido, o signo, a existência própria da literatura. O que vem depois é a constatação de que toda palavra escrita a partir de um lugar como esse (com a consciência verdadeira da palavra) é válida para o outro, vai muito além do eu do poeta, está justificada, é palavra destino, porque se “uma coisa parecia com um sorriso surgiu naquele que, um dia, tinha sido o seu rosto”, um sorriso num rosto sem rosto, um sorriso num rosto nu, vazio; se um “posso” coloca um sorriso num ser sem feições, as portas de uma prisão ou um precipício, ou a beira de um leito de morte, ou no centro mesmo de uma revolta, é o que, efetivamente nos salva.

“Réquiem” foi escrito, parte a parte, cada poema datado, e depois destruído por sua autora já que corria perigo se fosse encontrado. Assim, Akhmátova memorizou seus poemas, compartilhou com os amigos que a amavam e amavam sua poesia para que também eles memorizassem e não os perdessem. A poesia transmitindo-se pela velha tradição oral, sobrevivendo a todos os terrores. A palavra na boca, escondida, preservada, para ser lançada mais tarde no papel, quando os lobos já não viessem mais comê-la, não na lama.

Meses depois de encontrar El canto y la ceniza, decidi seguir as pegadas. Deparei-me com a biografia de Akhmátova escrita por Elaine Feinstein e com as Confesiones de Marina Tsvetáieva; li estes livros com alguns anos de diferença. É curioso: a biografia de Akhmátova li enquanto começava a escrever meu primeiro romance, no mesmo tempo que lia outros livros, mas sem pausa. As Confesiones de Marina li nos primeiros meses de escrita do segundo. Akhmátova, num verão radical em meio do mar e do deserto, ao sul da Espanha; Tsvetáieva, outro verão longo e fresco, e anos depois, num moinho francês, rodeada de vespas, vacas e os verdes mais delirantes e bonitos. O caso é que estas duas mulheres, estas duas poetas russas, me acompanharam na escrita de meus livros. O que buscava nelas não sei. O que encontrei: uma selvageria de identidades, duas rochas volúveis em sua permanência, vulcânicas em seu apegar-se à literatura, à vida que não entendiam de outra forma, duas mães hipnóticas em sua fortaleza de mães, em sua frieza de mães, duas amantes terríveis capazes da paixão mais obscura e ardente, blindadas ambas numa potência devastadora e devastada de escritoras, acima de tudo; levantando-se, livrando-se dos sapatos quando os pés inchados não cabiam neles, mas esse pescoço alto, sempre erguido, como para subir na torre e olhar: Marina sempre longe e sempre profunda, Anna fazendo-se com a voz dos seus, sendo já a voz dos outros, mas tão própria a partir desse centro que era incólume; “eu estava bem no meio de meu povo, / lá onde o meu povo infelizmente estava.”    

Antes que tudo fosse destruído existia O Cão Errante. Era um dos poucos locais noturnos de São Petersburgo que funcionava como um clube ou um cabaré; havia exposições, recitais, concertos. Os atendentes assinavam num grosso volume encadernado em pele de carneiro. Para entrar, apenas os cidadãos comuns precisavam pagar; os artistas tinham as portas abertas. O local se encontrava na esquina da Rua Italiánskaia e era preciso descer por umas escadas de pedra e atravessar uma estreita porta. As janelas estavam fechadas, as paredes e o teto pintados com flores e pássaros de cores brilhantes mas apagadas, obra do pintor Sudeikin. Bebia-se Chablis frio, conversava-se até ao amanhecer. O Cão Errante ia se enchendo de fumaça de cigarro e de cristais manchados. Anna Akhmátova, por volta de 1913, era frequentadora assídua. E escreveu “Aqui todos somos bebedores, todos nos deitamos / com todos. Juntos, formamos uma gangue / de desesperados. Inclusive as flores e os pássaros / pintados nas paredes parecem ansiar as nuvens.”* 

Feinstein conta que sempre estava numa das mesas laterais, vestida com uma saia ajustada, um xale sobre os ombros e um colar de ágatas negras. Blók pensava que sua beleza era estranhamente aterradora. Para Mandelstam, era como um anjo negro com a marca de Deus na fronte. Adamóvich disse dela: “As pessoas, ao evocá-la, sempre dizem que era bonita. E não é verdade: era algo mais que bonita, algo melhor que bonita”. A companheira de Mandelstam conta: “Mandelstam dizia [...] que olhando seus lábios se podia ouvir sua voz, que sua poesia estava feita de sua voz e era inseparável dela. Dizia que os contemporâneos que a ouviram eram mais sortudos que as gerações futuras que não a ouviram.”

Não consigo imaginar Akhmátova sorrindo desbragadamente ou jogada num riso. O que fosse irradiar, a brutal impressão e o magnetismo de sua alvura e seu mistério vinham de outro mundo. Mas devia ser feliz, num lugar distante, como Marina Tsvetáieva escreveu: “Com tua figura esbelta, / como de estrangeira, reclinada / sobre alguns escritos, / e esse xale turco que te envolve / como um manto real, // conformas uma só linha / quebrada e negra / mantendo o mesmo prumo / na coquete alegria / e na infelicidade.” Amou tanto que houve lugar para a entrega, para a noite eterna, trazida de O Cão Errante à Casa Fontanka, onde viveu com Punin, seu pouco convencional amor nos anos trinta (também a mulher deste vivia ali). Anna deve ter amado até à loucura, em várias ocasiões, e então teve que rir, quando a rendição sem ameaça, antes de jogar as lanças. Shileiko, companheira anterior a Punin, lhe escreveu: “De algum modo conseguimos nos separar / apagar de uma vez o odioso fogo. / Meu velho inimigo: é hora de aprender / a amar como se deve. Agora sou livre, / tudo me parece divertido.” Dizem que sim, que Akhmátova sorria com um gesto irônico, sutil, talvez zombeteiro, não se sabe se amável de verdade, mas quando lia seus poemas não havia rastro disso, porque tudo era entranha e palavra.

“Poema sem herói” é um texto, dentro da produção da autora, de outra categoria. É um extenso poema no qual esteve trabalhando durante vinte e dois anos, de 1940 a 1962; tem uma concepção polifônica e a intenção de ser um afresco da história da Rússia do século XX, ao mesmo tempo que o traço da jornada pessoal da poeta. Nele vão aparecendo seus amigos e contemporâneos e seus próprios desdobramentos. Tem a atmosfera de um baile de carnaval povoado de fantasmas. Isaiah Berlin registrou sua preocupação de que o “Poema” caducasse com os anos, de tão referencial e memorialístico: “Quando aqueles que sabiam sobre o mundo de qual ela falava eram vítimas da velhice e da morte, também o poema morreria; ele seria enterrado com ela e com o seu século; não foi escrito para a eternidade, nem mesmo para a posteridade.” Anna Akhmátova dedicou este poema “a memória de seus primeiros leitores — meus amigos e concidadãos que pereceram em Leningrado durante o estado de exceção. Eu ouço suas vozes e relembro deles quando leio o poema em voz alta e para mim este coro secreto tornou-se o motivo essencial para esta obra.” O poema começa na festa de fim de ano de 1913, na Casa Fontanka. Chegam sombras disfarçadas de máscaras. Os hóspedes do futuro. “E uma vez mais, da Gruta do Fontanka, / de onde vêm langorosos gemidos de amor, / alguém, andrajoso e de rubros cabelos, / sai, guiando uma ninfa com pés de bode, / através dos portões espectrais.” E depois de uma aluvião de mortes, de espelhismos, de perdas, de bailes, de sonhos, em 1942, em Tashként. “e, abrindo-se diante de mim, lá estava a estrada / que tantos trilharam, / pela qual levaram meu filho, / e era longa essa procissão funerária / em meio ao festivo e cristalino / silêncio / da terra siberiana. / Tomada por um medo mortal / de tudo aquilo que se convertera em pó, / reconhecendo ter chegado a hora da vingança, / baixando seus olhos secos / e torcendo as mãos, a Rússia / corria à minha frente indo para o leste.” 

Quem é Anna Akhmátova? É a que, antes de se casar pela primeira vez, escreveu: “Quero morrer.” É a que teve com Nikolai Punin “uma intimidade inumana”. É a esfinge, a relíquia do passado, a que criticava Maiákovski. É a que, num quarto frio, durante uma conversa literária que durou uma noite inteira, mudou a vida de Berlin: “Tu e eu somos como uma montanha. / Jamais voltaremos a nos ver neste mundo.” É a amiga de Lidia Chukóvskaia. É quem lamentava seu filho Liev, “Mamãe não me escreve, e isso me aflige” [...] não pensa de modo algum nem se preocupa comigo, já que se considera um anjo”. É a enferma, a faminta. É a orgulhosa. A que disse: “Acreditávamos que éramos pobres, / que não tínhamos nada, / até que fomos perdendo / tudo, uma coisa após outra.” É a proibida, a que memorizou. A que bebia vodca com Brodski em Komarovo. É a resistência. É a poeta. É que Naiman levou um ramo de narcisos no sanatório Domodedovo, próximo de Moscou, no dia 5 de março de 1966, e já a não encontrou; seu corpo branco e grande estava debaixo de um branco lençol, sua voz já quieta.

* Tradução a partir do original em espanhol. As traduções de “Réquiem” e “Poema sem herói” apresentadas aqui são de Lauro Machado Coelho, em Antologia poética (L&PM Editores, 2018). Este texto é uma tradução de “Anna Ajmátova. Anna de todas las Rusias” publicado aqui em Letras Libres.

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