“Andávamos sem nos procurar”, o filme de “O jogo da amarelinha”, de Julio Cortázar
Por Ivanna Soto
O jogo da amarelinha nunca foi levado ao
cinema. Mas se alguém se atreveu a render homenagem ao meio século de sua publicação
a partir de sua transformação em imagens. A encarregada da empreitada foi
Daniela Lozano com o curta-metragem Andábamos
sin buscarnos (Andávamos sem nos procurar, excerto do romance de Cortázar)
toma os capítulos 1, 2 e 7 – Do lado de
lá e 93 – De outros lados –,
alguns dos que tocam no amor entre Horacio Oliveira e a Maga e propõe um final
alternativo com fragmentos de Reino crepuscular,
de Daniela Lozano.
Dentre todas
as possibilidades, escolhe mostrar o amor entre eles e não o de Talita, Pola ou
Lilith. “Como se se pudesse escolher no amor, como se amar não fosse um raio que
quebra os ossos e nos deixa paralisados no meio do pátio. Tu dirás que eles escolhem
porque-a-amam; creio que é o contrário. Não se pode escolher Beatriz, não se
pode escolher Julieta”, escreve Cortázar no capítulo 93. Em Andávamos sem nos procurar de alguma
maneira a Maga tampouco é escolhida, porque sem ela não há jogo nem
possibilidade de ir da terra ao céu.
Geração após
geração, a emergência desse mundo Maga
baseado em modos, cerimônias e costumes continua impactando e ganhando adeptos
entre os novos leitores. Esse lugar de liberdade e intuição, menos intelectual,
que desconhece o código cultural do clã do Clube da Serpente e que Oliveira
tenta andar para poder gerar outra coisa que a Maga já tem se dá desde o princípio.
Ela está e transcorre. Mas essa não-escolha de abordar a Maga levou a outra escolha:
esse mundo-recorte de Andávamos sem nos
procurar de beijos e carícias, encontros ao acaso e passageiros em Paris,
se desentende dos planos existenciais de Oliveira, do triângulo formado por
ele, Talita e Traveler, do plano de fundo sórdido do amor e não-amor entre
eles, do lado obscuro dessa liberdade aparente da Maga, que transporta a um
desfecho em que por vezes é idiota e inconstante como um bebê Rocamadour.
E embora a gente
saiba que as imagens respondem por Maga e Oliveira e a escrita de Cortázar na
voz de Horacio Peña devolve esse ar romântico e nostálgico próprio das leituras
afrancesadas do autor de O jogo da
amarelinha, as cenas nos introduzem inevitavelmente numa relação tipo soft love que para nada expressa a complexidade
do vínculo.
É possível um antifilme?
No “Diário de
Bordo”, justamente depois do esboço do quarto em que transcorreria “A aranha” – capítulo
inicial escrito de uma sentada e que depois eliminaria da totalidade do livro
pela repetição de situações –, Cortázar escreveu “Novela” [Romance] e logo circulou
a palavra. Na página seguinte escreveu: “De nenhum modo admitir que isso possa
se chamar um romance”. Talvez o mesmo valha para sua transposição em imagens
que possa dar lugar a um filme sobre O
jogo da amarelinha.
O jogo da amarelinha não foi concebido como
arquitetura literária precisa mas como uma espécie de aproximação a partir de
diferentes ângulos e a partir de diferentes sentidos que pouco a pouco foi encontrando
forma”, explica Cortázar.
Enquanto escrevia
seu romance (ou antirromance, como logo seria caracterizado pelos críticos) foi
acumulando citações literárias, fragmentos de poemas, anúncios de jornal, notícias,
que não quis ou não pode deixar de fora da estrutura do livro. “Não queria colocar
todos os elementos no final como se fosse um apêndice porque ninguém o leria. Compreendi
que o único sistema viável era criar um sistema de intercalação desses elementos
na narrativa romanesca”. Então jogou os 155 capítulos no chão e armou a brincadeira
deixando-se levar pelo acaso que é parte de todo jogo.
Mas,
justamente esse jogo que Cortázar planeja com a estrutura – que hoje, com as
lentes da internet, se lê como hipertexto – no cinema é mais difícil de se transpor.
Não por causa do fragmento (que já foi trabalhado incontáveis vezes pelo cinematográfico)
mas pela possibilidade de passar adiante ou voltar e a eleição por parte do
espectador de seguir as duas opções propostas por Cortázar em seu “Tabuleiro de
direções” ou ainda produzir as diversas combinações que venham à cabeça.
Mas a
questão não é apenas a forma de O jogo da
amarelinha ou sua repetição de modo provavelmente degradado ou estereotipado
em sua conversão para o cinema. Para Cortázar, escrever o romance respondeu a
três motivos fundamentais. O primeiro foi as preocupações de ordem metafísica. “No
fundo, O jogo da amarelinha é uma
longa meditação – através do pensamento e inclusive através das ações de um
homem sobretudo – sobre a condição humana, sobre o que é um ser humano neste
momento de desenvolvimento da humanidade numa sociedade como a de onde
se cumpre o livro: em O jogo da
amarelinha tudo está centrado no indivíduo”, explica como leitor de si
próprio.
Tratam-se das
angústias existenciais das personagens, a partir das próprias visões e
experiências pessoais de seu autor. Por isso Oliveira existe no tanto que se opõe
à realidade como no que se lhe apresenta.
“Em O jogo da amarelinha não havia nenhuma lição
magistral mas havia por sua vez muitas perguntas que respondiam ao tipo de
angústia típico de uma juventude que se interroga também sobre a realidade em
que está crescendo”, afirma. Talvez isso é o que Cortázar consegue propriamente:
sair desse lugar erudito para questionar, com a facilidade que tinha para dizer
as coisas que alguém queria dizer.
Mas, para
questionar o mundo, Cortázar necessitava também lidar com a linguagem estabelecida.
Por isso, o segundo nível é idiomático. “Qual é o problema do escritor aí em sua
máquina de escrever frente às únicas armas que tem, que são as da escrita, as
das palavras?”, se pergunta. Daí a desconfiança de Oliveira sobre o modo de
dizer as coisas (“palavras, cadelas negras”, chama). Por isso, escreve, por
exemplo: “hodioso Holiveira hampuloso” ou mistura palavras e idiomas. Através do
humor, Oliveira mantém a linguagem sobre controle.
E estes dois
níveis são os que levam diretamente ao terceiro: o leitor ativo. Um leitor cúmplice,
que pode seguir as disposições preestabelecidas ou construir seus próprios itinerários.
Então, se se
pensa a partir destes três pontos, há dois que estão centrados em cheio no
literário. É possível extrapolar essas apostas literárias como material audiovisual?
Para Lozano, no projeto Del libro al libro [Do livro ao livro] há três
propostas. “Por um lado, nós também nos perguntamos por que as coisas são como
são, estamos em busca de uma nova linguagem – por isso a transposição do literário
e entrecruzamento entre saberes –, e buscamos um leitor ativo, porque queremos
que a partir de um texto se possa buscar e gerar outra obra”, resume. Aí é onde
faz coincidir os três componentes, que certamente, transcendem o meramente audiovisual.
Uma
aproximação sensorial
Para escrever,
Cortázar desenhava as cenas e ações. Por entre ensaios de amarelinhas, desenhos
ocasionais, narrações e planos estruturais, em “Diário” também figuram os planos como aproximações sensoriais às locações
imaginárias em que Cortázar situava suas personagens e suas relações: os quartos
unidos por um tablado de Traveler e Oliveira, o circo ou o manicômio.
Em Andávamos sem nos procurar, os esboços
tomam vida nas ruas atuais de Buenos Aires que simulam a Paris dos anos 1960 e
vemos exatamente como Oliveira encontra a Maga, pega em sua delgada cintura e
ela sorri sem surpresa. Assim, literal: quase todo o tempo, as palavras de Cortázar
coincidem exatamente com as imagens. A luta contra a univocidade dos signos
está perdida. As imagens inevitavelmente fecham as possibilidades.
Mas, como o curta
nunca se planejou ser uma versão de O jogo
da amarelinha para o cinema, mas como criação a parti do romance como
homenagem por seus 50 anos, respeitam-se as licenças poéticas e o recorta
inevitável.
Por sorte,
em algum lugar de nossa imaginação todavia sobrevivem os rostos, as silhuetas impossíveis
da Maga e Oliveira, as mechas de cabelo perfeitamente derramadas sobre seu
rosto, seu apartamento sujo de beterraba e creme, com o apoio para discos e livros
e o cheiro de algodão sujo de bebê Rocamadour enquanto o jazz soa de fundo, o
amor em gíglico, o louco encontro com Berthe Trépat, Talita no tablado com o pacote
de erva entre Traveler e Horacio, a noite de Oliveira no manicômio, o itinerário
dos fios estendidos de um móvel para outro, Talita e Oliveira no necritério,
Oliveira olhando Talita e Traveler no jogo de amarelinha do pátio a partir de alguma
janela do manicômio.
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