Séries, sagas, ciclos... que tal chamá-los “romances-rio”? Um jeito diferente de pensar o narrar maximalista
Por Kent Wascom
Yukio Mishima, do culto ao corpo a autor de um romance-rio. |
Dizem que o
escopo de atenção de leitores encolheu, se não desapareceu de todo. Dos
cronicamente distraídos não se pode sequer esperar que sentem e leiam um
romance, ainda mais um romance que gera outros romances. E, no entanto, olhe em
volta na sua livraria favorita e você nos verá: os Ferrante-febris, os Knausgård-exaustos, amantes do romance em sua forma mais esgotada e
potencialmente exaurida. Aguardamos ansiosamente o último fascículo dos
romances Cromwell, de Hilary Mantel e o primeiro de Dark Star, de Marlon James¹. E nós
dificilmente somos minoria. De fato, como Alexander Chee apontou anos atrás
aqui, nossos primeiros amores narrativos são
frequentemente seriais, nossa afeição livresca nascida em Nárnia, Arrakis ou
Hogwarts. Não importa quão diminuto nosso escopo de atenção, ainda lemos (e
mesmo escrevemos ou desejamos escrever) ficções que se espraiam por múltiplos
volumes e compartilham personagens, ambientações, temas. Apenas não sabemos
direito como chamá-las.
Há o
ridiculamente específico Multi-volume novel (Romance multivolume); o sucinto Set (Conjunto), o cinemático Sequence (Sequência, como diria a Wikipédia); o comercial Series (Série); a encanecida hoary Saga; o elíptico Cycle (Ciclo); o distópico Mega-novel (Megarromance); a clássica Trilogia e sua irmã Tetralogia,
o latinizado Quarteto e o paradoxalmente diminutivo Quinteto...
(Cheguei ainda a ouvir sobre Companion volumes (volumes-Guia)², que soam como livros impedidos de transitar em público sem a
permissão escrita de um terapeuta licenciado). A lista, como os romances em
questão, continua.
Como alguém
que passou os últimos seis anos trabalhando numa dessas coisas, dei à questão
da nomenclatura um considerável grau de, digamos, atenção. Como nos principais
tópicos de taxonomia literária, classificar um livro ou um feixe de livros
dependerá dos próprios livros e de como seu autor os vê. Isso leva naturalmente
a outras questões: esses romances partilham um estilo autoral predominante, características
formais ou um ponto de vista atrelado a um personagem (Mantel), ou o estilo e o
foco mudam (Durrell)? É de fato um extenso romance que foi dividido (O senhor
dos anéis, de Tolkien, ou Seu rosto amanhã, de Javier Marias), ou trata-se de
romances separados comprimidos juntos (2666, de Roberto Bolaño)? Os livros
devem ser lidos sequencialmente ou em ordem de publicação, ou podem ser fruídos
a la carte? Uma novel-sequence (romance-sequência) é apenas uma boa e velha coleção
de histórias enlaçadas, e uma coleção de histórias enlaçadas apenas um diminuto
romance-sequência? Dá para ver onde isso vai dar. Algo me diz que não
encontrarei meu termo preferido até terminar o segundo livro do projeto, e isso
diz ainda mais sobre o processo de escrita deste tipo de romance em que o
criador do termo não o encontra até ter escrito o sétimo volume de sua própria
criação.
O Roman-fleuve,
literalmente romance-rio, foi forjado em 1909 por Romain Rolland para descrever
seu bom e velho romance-sequência, os dez volumes de Jean-Christophe
(1904-1912). Rolland buscou explicar seu projeto como expansivo, composto de
ramos aparentemente distintos que irradiavam de um trabalho maior,
generosamente ritmado, fixando, por fim, a imagem do rio. O termo pegou,
sobretudo no que se refere às narrativas divergentes do romance: quando Rolland
ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1915, a Academia Sueca descreveu o livro
como “uma série de narrativas independentes”, que, tomadas em conjunto, falavam
aos mais amplos aspectos da cultura e da sociedade. Enquanto o roman-fleuve tem
suas raízes nas obras massivas da literatura francesa do início do século XX, a
riqueza e aplicabilidade da metáfora desmentem suas origens. O rio implica
expansão e conectividade, unidade e digressão, tudo de uma vez. O
romancista-rio vai ao encontro da formulação de John Berger (desenvolvida com
brilho por Michael Ondaatje em Na pele de um leão) de que “Uma história nunca
mais será contada como se fosse a única.” Há muito o que amar no termo, mas
mais do que qualquer coisa eu amo o fato de que seu sentido, como minha vida, é
inseparável da água movente.
Sempre vivi
próximo a rios e baías. Eu respeito a água e, por viver no sul da Louisiana,
minha vida é governada por ela, desde as palafitas em que minha casa repousa
até onde estacionar o carro em cada dia chuvoso. Meus melhores e piores dias
foram moldados pela água: em um período de dois anos a cidade onde morava e
minha cidade natal foram devastadas por ciclones; minha filha nasceu durante um
dilúvio de quinhentos anos, em que tive de guiar seus avós do norte em meio a um
labirinto de estradas alagadas até nossa casa. Comparar romances a um rio não
é, para mim, exercício meramente metafórico, mas natural e verdadeiro ao meu
projeto, um quarteto de romances ambientados ao longo da Costa do Golfo dos
Estados Unidos, no que já foi chamado um dia Flórida Ocidental [West Florida].
Um lugar limitado a oeste e a leste pelos rios Mississippi e Escambia, e a ao
norte pela Interestadual 10/12. Isso começou quando estava na graduação, ao ler
pela primeira vez sobre a história de minha região e, talvez mais
significativamente, ao encontrar os livros de um notório escritor japonês do
século XX, um romancista-rio tristemente mais conhecido por sua morte do que
pelo trabalho de sua vida.
Yukio
Mishima (1925-1970) foi, em sua época, uma das mais celebradas figuras
literárias do mundo. Suas belas e quase sempre apavorantes ficções entrelaçam
violência e sexualidade, exploram as complexidades e contradições da identidade
pessoal e nacional. Sua vida foi extrema, mesmo bipolar, passando de um retraído
jovem romancista outré, cujos trabalhos iniciais digladiavam-se com sua própria
sexualidade enclausurada, para um macho fisiculturista e tradicionalista
pseudo-Bushido. Como muitos dos leitores de Mishima, para melhor ou pior, foi
sua vida que primeiro me atraiu à sua obra, o que quer dizer sua vida como que rarefeita
pela música de Philip Glass e pelo filme de Paul Schrader [Mishima – uma vida
em quatro tempos, de 1985]. Seguiu-se a leitura febril, os romances curtos, os contos,
as biografias. Então lá estava a tetralogia Mar da fertilidade, uma daquelas
raras experiências que funcionam como ponto de virada: eu não era mais o mesmo
leitor, não era mais o mesmo escritor – as vagas ideias que tinha sobre como contar
a história de minha região subitamente ganharam forma, ou ao menos um modelo.
Começando por Neve de primavera (1969), os quatro romances tratam da experiência
japonesa nos primeiros dois terços do século XX, período que viu a
ocidentalização e o declínio da aristocracia Meiji, a ascensão de um Império
militarista e o que seu autor viu como degradação do caráter nacional que
acompanhou o boom econômico do pós-guerra. Em suma, Mar da fertilidade é uma
elegia, mas uma elegia que condena pranteados e pranteadores.
O título da
tetralogia de Mishima vem de Mare Fecundatis, um dos mares lunares, negras
planícies de lava basáltica na superfície da Lua tomadas por mares pelos
astrônomos do século XVII. Este equívoco de escuridão por vida e profundeza, a
ideia de um mar vivo e fervilhante onde só há, de fato, morte abafada, deu a
Mishima a moldura temática de sua obra, de como o modo em que o Japão se via ao
longo do século XX não era o que estava provado ser, nem nunca fora. A
desilusão é corporificada no personagem central Honda, que, como se conta no
primeiro livro, vê seu amigo de infância Kiyoaki reencarnar-se subsequentemente
na forma de vários homens jovens problemáticos (no segundo e quarto volumes: Cavalo
selvagem, de 1969; A queda do anjo, de 1971), e, de modo notável, em uma jovem
mulher tailandesa (no terceiro volume, Templo da aurora, de 1970). Honda começa
como intermediário no fadado caso amoroso de Kiyoaki e o companheiro
adolescente aristocrata Satoko, e permanece um mediador entre os personagens e
o leitor. À medida que Honda envelhece e seu país passa por vitória, derrota e,
finalmente, pelo oco triunfo da ressurgência econômica, o que Honda percebe
como a essência do amigo (supostamente confirmada a cada encarnação por certas
marcas de nascença) perverte-se cada vez mais. No final, a compreensão de Honda
sobre o país, a vida e o além é destruída em uma revelação final que confronta
a crença do leitor na própria história. Deste modo, o romance-rio permite ao
autor confrontar e criticar as expectativas do leitor e, além disso, o que ele
imagina ser verdade sobre certo lugar e época.
No rio, há
também o potencial para mudança. O romance-rio permite a variação: cada volume
pode ser independente em termos de técnica quanto de enredo. (William Vollmann
faz isso nos seus Seven Dreams (Sete sonhos, sem tradução), outra cabeceira do
meu pequeno romance-rio, cada uma delas dotada de voz narrativa distinta.)
Rios, no final das contas, mudam seus cursos, inundam, alargam-se e secam, como
fazem as histórias. Esses eflúvios podem enriquecer a narrativa como a argila
do delta ou transformá-la em charco intransponível. Em meu terceiro romance, The
New Inheritors (Os novos herdeiros, sem tradução), o que começou como uma
subtrama derivada, a história do pintor Isaac Patterson e sua relação com o
mundo natural da Costa, intumesceu-se tanto que se tornou o coração do livro.
Para ser justo, isso não acontece sempre, meu processo deixa para trás muito
mais córregos ressecados e atoleiros esmorecidos. Mas para provar e escrever o
rio você precisa estar disposto a seguir essas veredas o tanto que conseguir e,
além disso, saber quando renunciar a elas e escolher seu caminho de volta em
direção ao troar da história maior.
Evitando
estes percalços, há ainda mais perigos, principalmente a tentadora noção de que
ao escrever uma sequência/ciclo/saga/conjunto o autor teria construído uma
imponente, inexpugnável afirmação de destreza. Não é fortuito, pois, que tais
livros sejam tão frequentemente descritos de modo não irônico como “ambiciosos”
ou “monumentais”, qualidades que se prestam melhor a ditadores do que a
escritores. E enquanto a noção puder ser bálsamo para egos sempre inflamados,
será uma ilusão suavemente enferma e muito enfadonha. O que Mishima fez, e o
que espero fazer, não é diverso da tarefa de qualquer outro romancista. No fim
das contas, as faltas e favores do romance-rio, não importa quão carregada a
metáfora seja para mim, são apenas aqueles do romance amplificado.
Notas:
¹ Trata-se da obra Black Leopard, Red Wolf, a ser publicada em 2019.
² O autor faz aqui uma brincadeira bem pouco traduzível com o duplo sentido de "companion": o de "companheiro", "companhia", mas também de um tipo de livro específico, os compêndios ou guias, dedicados de forma clara e abrangente um assunto específico a um público leigo.
Notas:
¹ Trata-se da obra Black Leopard, Red Wolf, a ser publicada em 2019.
² O autor faz aqui uma brincadeira bem pouco traduzível com o duplo sentido de "companion": o de "companheiro", "companhia", mas também de um tipo de livro específico, os compêndios ou guias, dedicados de forma clara e abrangente um assunto específico a um público leigo.
* Tradução de
Guilherme Mazzafera, feita a partir do texto “Series, sagas, cycles... how
about we call them ‘river novels’? Kent Wascom: a different way of thinking
about maximalista storytelling”, publicado no LiteraryHub em 19 de julho de
2018.
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