O garoto do riquixá, de Lao She
Por Pedro Fernandes
Possivelmente
este romance se integra na ampla lista das produções literárias no Oriente que
receberam os refluxos das desse lado do globo. O tema e a escrita de Lao She em
nada deixa a desejar do exercício de um Émile Zola, um Balzac ou mesmo um
Charles Dickens, para citar três importantes nomes da literatura Ocidental que
elegeram a periferia o reduto principal para os dramas de seus romances, descortinando
a miséria e a luta do homem por driblá-la em oposição ao mundo mais ou menos
fixo de uma elite burguesa. E com um feito: apesar de a narrativa de O garoto do riquixá se desenvolver na Beijing
de início do século XX, os conflitos ajustam-se perfeitamente a qualquer contexto
ou temporalidade, se observarmos que os quadros de exploração do homem sobre o
homem só se mantiveram quando não se agravaram no decorrer da modernidade. Embora,
é claro, o interesse do romancista é por estabelecer um retrato vivo e comovente
sobre as transformações sociais e o agravamento da periferia quando da entrada
de seu país nesse tempo cujas forças ainda não amainaram.
Isso é muito
perceptível na maneira como engendra sua personagem. Xiangzi é o trânsito entre
o protótipo do homem não corrompido, marcado ora pela ingenuidade ora pela honestidade,
elementos determinantes da moral do homem interiorano ou do campo, e do homem corrompido
pelo ambiente urbano, tornando-se homem entre homens e entregue às condições
oferecidas no seu novo habitat. Embora pouca coisa se saiba sobre o seu passado,
porque o narrador começa a acompanhá-lo já entre a numerosa ordem dos puxadores
de riquixá, símbolo também de um passado marcado pela subserviência de classes, este rapaz é todo para sua obsessão, mas a princípio desprovido de quaisquer
ambições pelo dinheiro fácil, mal do qual padecem todos aqueles que cruzam seu caminho:
o patrão Liu; a filha dele com quem Xiangzi se envolve, a avarenta Tigresa; e a
pobre Xiaofuzi, que encontra como única opção de consolo dos irmãos para a miséria
onde estão metidos vender o corpo – estes são alguns dos exemplos.
O retrato construído
por Lao She é um bocado fatalista e parece se alimentar de um olhar desencantado
para o encanto com que o Oriente olha para o modus vivendi ocidental; não é gratuito, portanto, o discurso em
favor dos menos favorecidos, dos gestos de solidariedade entre eles, das alternativas
encontradas, mesmo fora da considerada ordem mas afeito a uma honra individual,
em não perecer na miséria. De modo que não seria exagerado dizer que O garoto do riquixá constitui-se num só
tempo numa ode aos menos favorecidos e uma denúncia contra a condenação de uma classe
que não pediu para engrossar as filas da miséria. Ou ainda, outra maneira de
revigorar a compreensão do bom selvagem: o homem é bom, a cidade (o meio) é que
o corrompe. No caso dessa personagem criada por Lao She, ainda notaremos o seu
total encantamento pela cidade que o impede de em todas as situações de pior
desfavorecimento a sair para outro lugar; a obsessão pelo lugar só perde para a do trabalho como puxador de riquixá, assinalando assim uma dupla dimensão da identidade do indivíduo: o lugar onde vive e o trabalho.
Mas, se
deixarmos um pouco em suspenso o argumento de matriz social para observarmos a
transformação das qualidades individuais de Xiangzi poderemos encontrar neste
romance uma potente fábula que desmistifica outro ideal moderno, o do
indivíduo. Isso porque, o que define a personagem no alvorecer da sua juventude
é a certeza que pode, sozinho, por seus próprios méritos, alcançar o sonho básico
de viver. Para isso, observa-se sempre em vantagem sobre os demais: seja porque
não se envolve com os vícios dos homens de sua classe; seja porque se vê indiferente
às forças do amor, então tudo que ganha é para si e prover seu sonho; seja
porque se considera homem de bom porte físico, modesta saúde e capaz de executar
a tarefa de sua paixão de maneira única e melhor que os demais. A contínua
referência às qualidades do corpo, capaz de ser “homem e máquina como uma só coisa”,
nos faz perceber que, uma das qualidades principais do protagonista é certo narcisismo,
capaz de cegá-lo do futuro, da visão segundo a qual nada nem ninguém está a
salvo da força indelével do tempo ou ainda do imperativo dos acasos.
Xiangzi precisará
perceber ao longo de seu itinerário que a força e a beleza irreparável da
juventude servem a dois deuses: pode significar sua salvação ou sua condenação.
Porque a ambição e a necessidade de acúmulo se constituem nos elementos que colaboram
na construção desse narciso urbano, todas as situações que significarão alguma
possibilidade de colocá-lo acima dos demais farão com que ele prove o contrário.
Muito ingenuamente acreditaríamos com ele que a impossibilidade de realizar
plenamente seus desejos constitui um azar ou a condenação segundo a qual
nenhuma alegria de pobre dura por muito tempo e mesmo o destino se coloca em
favor de uns e escolhe a outros para testar todos os castigos que traz no
alforje. É possível que tal fatalismo se apresente como uma norma entre os que como
Xiangzi não percebam quais os principais elementos que estão por trás da má
sorte.
No caso da
personagem de Lao She, é o proposital distanciamento que esta constrói dos
outros, como se para existir no mundo o homem bastasse a si, a avareza do capital
– ter para acumular ao ponto de desprezar que o corpo não é uma máquina –, e a
impressão de que com toda a força da juventude pode-se ainda calcular e controlar
tudo como se faz com os centavos que recolhe, contabiliza e guarda para comprar
sua liberdade: ter o próprio riquixá e o que ganhar das corridas continuar a
alimentar seu estar-indivíduo-no-mundo. Xiangzi só perceberá muito tardiamente
que ele não está acima de todos como supõe e nem o dinheiro constitui-se na força
capaz de comprar e manter toda existência.
Embora a todo
tempo essa personagem nos pareça ser dotada de uma ingenuidade tacanha, não é
possível desconsiderá-la enquanto vítima de seu próprio reflexo que em contato com
um mundo que só na aparência garante a possibilidade de plena realização do
indivíduo garante-lhe a falsa sensação de que tudo é nosso basta querer e
esforça-se para ter. Preso na armadilha do ser e do ter sobra-lhe pouco ou
quase nada sobre como a realidade de fato se constitui: um grande carrossel e o
agora não corresponde em nenhuma medida ao futuro. Agora, enquanto para uns
esta compreensão da existência se manifesta desde sempre (e são raríssimos) a
outros, como Xiangzi, só resta uma alternativa de descobri-la: vivendo. Ainda considerando
apenas os elementos inerentes ao indivíduo em relação as determinantes sociais
é possível dizer que esse encantamento exacerbado em torno da força física, da
beleza (e extensivo à beleza do primeiro riquixá adquirido por Xiangzi) constituem-se
em apelativos a uma diversidade de coisas ruins: da cegueira sua à inveja do
outro. A vaidade é, portanto, o pior de todos os vícios – esta parece ser a
tese levantada por Lao She em O garoto do
riquixá.
Ao acompanhar a vida de Xiangzi, o escritor
chinês recupera ainda – e agora voltamos ao fator social – a lenta transformação
de uma compreensão cuja força paira numa sentença singular neste romance: “Um
homem sozinho não aguenta o peso do céu!” Comprova-se que o destino está sempre
contra nossa possibilidade de liberdade, logo o que nos resta, é, para garantir
alguma soberania sobre tal fatalidade, irmanar-nos. Quando descobre as muitas
histórias e lamúrias compartilhadas entre os puxadores – coisa que sempre o
protagonista ignora ao longo de seu périplo – ele pode perceber que o que dizem
é pouco ou quase tudo de si. A narrativa, aliás, não deixa isso em suspenso nas
filigranas dos sentidos do texto mas afirma claramente o que podemos chamar de
viragem na vida de Xiangzi: “Hoje era a primeira vez que percebia que aquilo
não era papo de pobre”.
Ou seja, é
necessário voltar a ideia primeira aqui apresentada, a que dizia sobre uma
transição entre o homem bom e o corrompido pelas forças do seu ambiente, porque
este não é o trânsito que se confirma neste romance de Lao She, ou, se se confirma,
não é exatamente com o sentido do antagonismo assumido pela expressão Ocidental.
Mesmo desacreditado na possibilidade de que os honestos não conseguem outra coisa
que servir de achaque para os espertos, as qualidades negativas assumidas pelo Xiangzi
de meia-idade, totalmente opostas as do Xiangzi jovem imprimem uma compreensão de que
o homem está fadado ao que o mundo lhe oferece. Isto não o constitui,
entretanto, em bom ou mau. Quando passa a comportar-se como os outros esta
personagem não despreza uma condição pela outra, mas, finalmente, compreende-se
homens entre os outros e reconhece que nenhuma perseverança é garantia suficiente
capaz de elevá-lo acima dos outros. A perda da inocência de Xiangzi, portanto,
é a aquisição de uma visão mais loquaz sobre a existência e seu lugar nela.
Nisso, o romance de Lao She se aproxima daqueles clássicos que investiram em criar
um retrato acerca do homem preso entre o destino e a luta de não perecer ante
ele; luta que, depois dos embates entre classes passou a ser entre o homem e ele
próprio, o destino responde por um aqui e agora determinado em grande parte
pelas relações construídas no interior da história.
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