Nísia Floresta: itinerário de uma viagem à Alemanha
Por Márcio
de Lima Dantas
Para Zelma, guardiã de Nísia
Em agosto de
1856, Nísia Floresta, com 46 anos, empreende, junto com sua filha Lívia, uma
viagem por uma região chamada por ela de “velha e poética Germânia”. A
escritora, com as impressões dessa estada, em todo o seu vigor físico e sua
maturidade intelectual, publica um livro em francês, intitulado Itinéraire d’un
Voyage en Allemagne (Itinerário de uma viagem à Alemanha. Trad. Francisco das
Chagas Pereira, Natal: EDUFRN, 1982).
O livro, organizado em forma de epístolas e diário, resguarda forte poder evocativo
das paisagens, dos castelos, cemitérios, estátuas, ferrovias e museus visitados
por uma senhora poliglota e detentora de grande distanciamento crítico em
relação aos objetos, à história e aos fenômenos que vão se apresentando a sua
vista. Polidez e requinte são o que não falta a Nísia, inclusive no registro
linguístico nervoso de alguém que parece não permitir a Cronos devorar as
lembranças, eivadas de pathos, provindas durante uma viagem deliberadamente
planejada, bem ao estilo europeu.
Os textos são direcionados àqueles que permaneceram no Brasil, habitantes do
espírito da escritora: seu filho, sua irmã, seus irmãos. O gênero
epistolografia não é novidade no vernáculo:lembremos de Pe. Antônio Vieira,
Sóror Mariana Alcoforado, Mário de Andrade e a da correspondência entre
Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. Todos produziram grande quantidade de
cartas, nas quais não apenas discorriam acerca de temas íntimos, mas versavam
sobre filosofia, religião, poética ou algo mais pontual, como uma viagem ou assuntos
ordinários, por exemplo. No que concerne ao gênero diário, Nísia parece
enquadrar-se no modo “diário íntimo”, que se caracteriza por ser o registro de
acontecimentos sucedidos no arco de um dia.
Dito isso, vejamos como nossa feminista avant la lettre plasmou suas impressões
sobre uma de suas mais importantes viagens. Nísia não viajava como turista, mas
como uma viajante intelectualizada, espécie de arqueóloga do mundo das ideias e
da história, permitindo-se uma curiosa liberdade de aprofundar conhecimentos
sobre o que contemplava, tocava e sentia, proclamando, via escritura, seus
pontos de vista, plenos de acuidade e sede de saber mais.
Detentora de uma prosa ágil, precisa e arguta, escorreita, plena de
encadeamentos discursivos e lógicos, como se fosse uma cientista das ciências
naturais a descrever um objeto, Mme. Floresta A. Brasileira consegue impregnar
dois gêneros caracterizados universalmente pela ausência de intermediação –
pelo menos, pretendem - entre sentimento e escritura, a epístola e o diário, de
um tônus poético de grande intensidade imagética, haja vista a quantidade e a
qualidade das metáforas empregadas para dar conta dos lugares que visitava.
Quero dizer com isso que a memórias é o lastro no qual se constrói o texto
literário, numa equação que é mais ou menos esta: o concreto vivido deposita-se
na memória como representação para, finalmente, o escritor erguer os pilares do
discurso literário. Portanto é necessário sempre a intermediação da deusa
Mnemósine, mãe das musas, como etapa para a consecução do objeto artístico.
Com efeito, Nísia consegue deixar transparecer todo esse processo, numa atitude
metalinguística de quem revela os meios e marcas de alguém consciente do ofício
de escrever como algo que está em um lugar para além do tangível a que chamamos
de realidade. Tenho para mim que uma certa pressa em redigir as cartas e os
diários para seus entes queridos funciona como espécie de atitude distanciada
face a reelaboração dos eventos acontecidos em um dia Muitas vezes ela escreve
a altas horas da noite, encerrando a jornada, como se sentisse alívio por um
dever cumprido.
Destarte, o cansaço é apreendido como dádiva para afugentar as sombras e as
tristezas da saudade advinda do aniversário de um ano de morte de sua mãe, bem
como as lembranças de pessoas caras que estão distantes. No fundo, a escritora
parece reter uma ansiedade em relação ao tempus fugit ou a marcha inexorável
para a morte, na medida em que busca, por meio da escritura, cristalizar o
vivido junto a sua filha Lívia.
Ora, desde sempre a arte funcionou como triunfo de alguns indivíduos sobre o
poder destrutivo da morte, espécie de artifício para ludibriar o fato de sermos
morituros, como se o sofrimento provindo da condição humana de sencientes não
pudesse ficar impune, transformado que é em objeto de apreciação estética. E,
em assim sendo, uma experiência singular, dotada de inúmeras particularidades,
vem a ser algo universal, na medida em que os homens não somente são munidos de
faculdades assemelhadas, mas também possuem traços arquetipais que os nivelam,
por assim dizer, como capazes de formular as mesmas fábulas a partir de
elementos previamente existentes em toda e qualquer cultura.
Voltemos nosso olhar, ainda, para Nísia Floresta. Vejamos um trecho do livro:
“As águas deste rio, rolando no silêncio da noite, são um espetáculo
melancolicamente poético. Fiquei algum tempo em profunda contemplação das
coisas passadas e das presentes” (p.71). Bem claro que o gênero lírico, com
seus paradigmas enformadores de metáforas, suplanta qualquer outro gênero. Era
de se esperar que traços do épico, com sua denotação e metonímias, achegassem
ao texto com mais precisão e impusessem seu julgo sintático de encadeamento
lógico-discursivo, contudo, não é o que sucede.
Com efeito, a apresentação, por meio da mímesis calcada na vida interior da
mulher de Papary, por meio de suas paixões, do caráter profundamente literário,
de seu comportamento livresco e ilustrado, engendra um texto na qual a função
poética da linguagem busca sobrepujar a função denotativa, enformando uma
escritura no qual se mesclam de maneira natural e elegante a poesia e a prosa.
Em suma, tanto as cartas quanto as notas para um eventual diário são de uma
beleza plástica ímpar, pois a mathésise a mímesis estão soldadas de tal maneira
a construir um texto de rara fatura, a um asemiosis na qual o signo literário
está contaminado pelo conhecimento histórico, pelo discernimento estético e
pela requintada escrita. Nísia nada fica a dever a ninguém, porque cultivadora
da arte do bem escrever.
Refoge, portanto, das claves patriarcais que visualizam as mulheres somente
como objetos sexuais para o desfrute de seus egoísticos prazeres físicos ou
para a procriação mecânica de rebentos que irão assumir, por sua vez, o papel
do macho autoritário e dono da situação. Em suma: desdenhou dos papéis
previstos desde sempre às mulheres: rainha do lar, mãe e esposa.Nesse sentido,
há algo bastante interessante na existência e obra de Nísia, uma
existencialista que traçou um projeto de vida que era bem mais condizente com
seus pendores: poeta, ensaísta, educar filhos seus e dos outros, pedagoga,
revolucionária, - não somente teórica, mas demonstrando, por meio de uma
prática cotidiana, como a vida de uma mulher não estava associada a um destino
ou a uma natureza dita feminina, contudo é algo construído historicamente por
uma sociedade na qual prepondera o mando e o julgo de um discurso
falogocêntrico.
Com efeito, a mulher de Papary inscreve-se como sujeito desestabilizador, pois
sua destoante história de vida, seu comportamento livre das amarras
institucionais, encontra-se em um lugar com fronteiras não rigidamente
delimitadas: aquele lugar no qual os gêneros são questionados, são indagados
dos motivos pelos quais as linhas dos estereótipos engendram tanto preconceito,
tanta discriminação que recaem quase sempre sobre o lado do gênero feminino.
Parece que Nísia pouco estava interessada em linhas de fronteiras, queria mesmo
era estender sua alegria pela vida e sua liberdade interior às outras mulheres.
Quanto às condições históricas nas quais o livro veio a lume, não podemos
esquecer o regime escritural do tempo: o Romantismo, com seu forte pendor a
sagrar o subjetivismo como a nova comarca da literatura, até então dominada
pelos preceitos universalistas da tradição clássica. Eis que o mundo interior,
os preceitos do sonho, enfim a subjetividade do escritor passam a protagonistas
da cena dos modos de representar a realidade, formatados que são nos inúmeros
gêneros que a literatura manuseia. Muito do que o Romantismo propugnou
encontra-se dissolvido nas entrelinhas do texto de Nísia, tais como: culto ao
nacionalismo (alemão), elementos conformadores de uma nacionalidade (elogio a
Carlos Magno e outros que edificaram a moderna Alemanha), interesse pela Idade
Média (visita a ruínas, abadias, catedrais, cemitérios), sacrifício e sangue de
muitos por seu povo (visita a túmulos de poetas, sábios, estudiosos das
ciências naturais).
Outro componente integrante do Romantismo diz respeito ao culto à natureza. Os
românticos enfatizam a oposição entre natureza e cidade, como se, ao
supervalorizar aquela, como lugar de fuga e refúgio, conferissem à cidade o
caráter de lugar contaminado pelos vícios humanos. É o que ficou conhecido como
locus amenus. Toda a viagem de Nísia pela Alemanha é pontuada pelo ensejo de
valorizar a natureza, os parques floridos, as ruínas, em detrimento da cidade,
detendo-se em cada detalhe, numa ânsia de nada perder, ela chega a afirmar:
“Como as cidades me interessam menos que as ruínas e as paisagens das margens
do Reno...” (p.48).
Quem sabe, possamos dar conta desse entusiasmo pela profunda meditação quando
ela se detém sobre o rio Reno, descrevendo o entorno deste em um crepúsculo
chuvoso:
O sol, prestes a desaparecer no ocidente, doura o cume das montanhas, encimadas
de velhos e magníficos castelos ou de ruínas. Grossa chuva cai, neste momento,
nas águas do Reno, sem nos disfarçar os raios do sol. Que espetáculo soberbo
produzido por este fenômeno! Como a alma se eleva às regiões desconhecidas, em
que brilha este astro, entre essas duas cadeias de montanhas, entre essas duas
margens ataviadas de mil belezas, sobre as águas que o barco sulca com rapidez,
impulsionado pelo vapor. (p.50)
De espírito vivo e perspicaz, Nísia não deixa nada passar a sua frente sem que
trace um perfil etnográfico dotado de criticidade e análise, cotejando os
costumes que vigoram em seu país com os daquele onde visita. Se compara o
espírito oportunista do parisiense, que procura tirar proveito do estrangeiro
ou de quem se aproxime dele, contrastando com a inexistência desse traço no
ethos teutônico, também compara a prática da liturgia católica no Brasil,
desprovida de contrição, com a maneira como se participa do ofício numa igreja
em Heidelberg, por exemplo.
Há um outro aspecto bastante interessante na escritura de Nísia. É a quantidade
de tiradas filosóficas e máximas enxertadas em seu livro as quais nos conduzem
a refletir sobre a condição humana, tendo como olhar um espírito desconstruidor
do modus vivendi, do feitio que, ao invés de ser compreendido como produto
histórico, é tido como natural ou inerente ao comportamento dos homens em
sociedade. Só alguns exemplos: “... as duas grandes virtudes que mais elevam o
coração do homem: a generosidade e o reconhecimento”; “... os homens não têm
pressa em reconhecer o verdadeiro mérito...”; “Não se abusa impunemente das
forças físicas que a boa natureza nos deu”; “Não será a espada, mas o amor que
regenerará o homem.”; “...em uma sociedade onde o pedantismo e as nulidades em
mérito real sabem, melhor que os gênios, brilhar...”
Nísia, como cronologicamente integrante do movimento romântico no Brasil, está
impregnada do mesmo ar do tempo, que possibilitou produções românticas seus
ostensivos traços de ruptura com a tradição clássica,a qual nunca deixou de
obcecar os escritores, sendo o movimento árcade o estilo histórico mais
próximo no tempo, anterior ao Romantismo, o melhor exemplo de vinculações para
com o legado greco-latino.
Não podemos esquecer a importância do Romantismo, visto que, ao proclamar a
liberdade de criação, com seu apelo ao subjetivismo, já estava anunciando as
veredas da modernidade, no qual a literatura não estaria mais presa a um cânone
ou formas e ditames pré-estabelecidos para a arte de representar estados de alma,
fenômenos ou paisagens.
Para encerrar, há muito que ainda dizer sobre Nísia Floresta, polígrafa dotada
de uma mundividência que a fez dedicar toda uma vida à arte de escrever, de
viajar, apreciar a arte e conviver com as pessoas, para além de preconceitos
que julgam as gentes por seu conhecimento livresco. Essa mulher, dotada de uma
sensibilidade ímpar, registrou e contemplou tudo o que viu, e estabeleceu juízo
de valor sobre o que se apresentou a sua frente, quer seja das coisas humanas,
numa etnografia arguta, quer seja do âmbito da arte, reconhecendo e proferindo
relações acerca de um objeto de arte isolado, detectando, por meio de categoria
da teoria da arte, a qual ou tal movimento pertenceria um fenômeno.
Enfim, os livros nos quais a escritora formatou suas impressões, com forte
pendor ao subjetivismo - apesar de toda a sua obra ser marcada por um caráter
ensaístico, ou seja, uma tendência a atribuir um cariz subjetivo à realidade e
aos juízos de valor acerca do que se apresenta a sua frente, o que já conduz a
uma expectativa da expressão de uma subjetividade, são: Itinéraire d’un Voyage
en Allemagne (1857), Scintille d’un’Anima Brasiliana (1859), Trois ans en Italie,
suivis d’un Voyage en Grèce (1864) e Fragments d’unouvrage inédit – notes
biographiques (1878) os quais manifestam essa pertença ao movimento romântico,
sem tirar nem pôr. À parte habitar ancha o território do espírito de época que
engendrou o romantismo, não podemos deixar de olvidar a singularidade de uma
persona extremamente fascinante, visto que dotada de uma versatilidade
escritural, capaz de exercitar com maestria múltiplos gêneros que integram as
letras.
Malgrado sua alegria de viver, Nísia não fica imune ao desencanto e ao niilismo
tão caro aos românticos, manifestando-se, aqui, por um ceticismo de alguém que
dedicou sua vida a lutar pela educação e pela emancipação feminina. Em algumas
passagens, deixa entrever seu franco desencanto para com as gerações vindouras:
“...e eu tinha ainda grande fé no futuro!” (p.37).
Uma coisa muito interessante a ressaltar sobre Nísia Floresta é a profusão de
pseudônimos com que assinava seus livros: Mme. Floresta A. Brasileira, Nísia
Floresta Brasileira Augusta, Telesilla, B. A., B. Augusta, “une Brésilienne”,
F. Brasileira Augusta, Mme. Brasileira Augusta. Deixando registros com
assinaturas diferentes, ela não apenas referendava uma desterritorialização
física, mas se colocava como figura cambiante capaz de desestabilizar as
fronteiras bem delineadas, em sua época, dos gêneros masculino e feminino.
Para sua época, Nísia foi bastante longeva: falecendo em 1885, aos 74 anos,
deixando claro seu apego à vida. Sua energia vital, alimentada pelo amor aos
parentes e à humanidade, aos livros e ao saber e à arte, produziu um vigor
físico capaz de fazer durar seus dias. Viveu exclusivamente - pois podia, era
rica - administrando suas terras e seus bens. Curioso é que ela mesma
autofigurava-se com esse perfil: [...]misto de sensibilidade e energia que
vocês tantas vezes admiraram em mim (p.107). O que não se pode dizer de Nísia
Floresta é que não tinha um bom astral, começando a partir de si mesma, da
maneira como se via, se autorrepresentava: Minha boa estrela me tinha reservado
essa caridosa companheira de viagem (p.115). Eis a mulher de Papary, ainda, de
longe, nos falando, numa atualidade que só não nos causa espanto por se tratar
de um espírito elaborado e com grande vivência interior: Meu espírito ama as
viagens, meu ser físico nelas se compraz, mas meu coração nunca será viajor
(p.58).
Referências
AUGUSTA, Nísia Floresta Brasileira. A lágrima de um Caeté (Org. de Constância
Lima Duarte). 4 ed. Natal: Fundação José Augusto,1997.
AUGUSTA, Nísia Floresta Brasileira. Fragmentos de uma obra inédita. Brasília: Editora da UNB, 2001.
DUARTE, Constância Lima. Nísia Floresta: vida e obra.Natal: EDUFRN, 1995.
FLORESTA, Nísia. Itinerário de uma viagem à Alemanha. Trad. Francisco das
Chagas Pereira, Natal: EDUFRN, 1982.
FLORESTA, Nísia Opúsculo humanitário. São Paulo: Cortez, 1989.
FLORESTA, NísiaCintilações de uma alma brasileira. Florianópolis: Editora Mulheres,
1997.
FLORESTA, Nísia Três anos na Itália seguidos de uma viagem à Grécia. Trad. Francisco das
Chagas Pereira, Natal: EDUFRN, 1998, v. I.
MARIZ, Zélia M. Bezerra. Nísia Floresta Brasileira Augusta. Natal: Editora
Universitária, 1982.
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