Ler para ver
Por Justo Navarro
De dentro do carro não entende o que vê: em Bab el Khemis, Marraquexe, um camelo
corre sobre três patas com a quarta atada ao corpo. Elias Canetti olha os camelos.
Pela cara, todos parecem o mesmo e todos são diferentes. Parecem velhas damas
inglesas entediadas em torno do chã e Canetti descobre alguém que lembra um
parente próximo. As cidades que não são estranhas se tornam em situações de encontros
imprevistos. Estou em 1954, em Vozes de
Marraquexe, que Canetti publicou em
1968: ler é um modo sedentário de visitar outros lugares e outros tempos, inclusive do futuro.
Quando o viajante não sabe o idioma do lugar, necessita, desemparado, de um
mediador, um guia. Olha sem entender os mendigos cegos que murmuram à sua comum
litania de pedinte. Não deixa dinheiro ao catador de esmolas, e logo se dá conta
de que é o mais observado dos presentes na cena, “criatura assombrosa a quem
havia que explicar tudo”. Mas lhe atraem sem necessidade de intermediários as
mercadorias expostas presididas por uma dança de carteiras exibicionistas de
sua promessa de prosperidade e o poder de fascinação dos contadores de história
nas ruas: sem entender o que dizem, Canetti se mostra um tanto encantado com o
resto do público. Viajava com uma equipe de cineastas britânicos.
Agora viajo a 1971. Vou à Los Angeles do arquiteto Reyner Banham, papa do pop
inglês nos anos cinquenta do século passado, amigo da tecnologia, da ficção cientifica,
da publicidade, do mercado de descartáveis, dos Estados Unidos. Em Los Angeles,
“fábrica de sonhos do Ocidente”, o aguardava “uma arquitetura do presente numa cidade
do presente”, muitos estilos diferentes, copiados, importados, explorados,
abandonados no espaço que abarca a memória de uma pessoa. Se os encontros de Marraquexe
encantaram Canetti, Banham é enfeitiçado pela floração do pop das arquiteturas
efêmeras: fachadas comerciais, estradas de asfalto, construção inexistentes
para quem só entendem de obras assinadas e fiéis a algum estilo catalogado. Até
no hambúrguer intuiu uma arquitetura fantástica, “apoteose simbólica”: numa cidade
em que a mobilidade sobrepõe-se à monumentalidade, o que corre pode se comer
seu hambúrguer com uma só mão. Mas, se parar e colocá-lo num prato, a carne e
as demais guarnições comporiam ainda uma obra de arte visual, gastronomia decorativa.
Como quem aprende italiano para ler Dante, Banham aprendeu a dirigir para ler
Los Angeles, “primeiro monumento ao automóvel”. Distinguiu quatro ecologias na cidade:
Surfurbia, The Exiles, Foothills e Plains
of Id. A primeira seria a cidade-praia, com surfistas e música dos Beach Boys,
vida passageira, “onde alguém lava consigo tudo o que possui”, bermudas e
biquínis. Aos pés das colinas se acolhem a vida grandiosa, a fat life, o que se vê na televisão e os
filmes, ficção real, Hollywood. Nas planícies se encarnariam os desejos: a vida
cômoda, familiar, feliz e com dinheiro. Em The Exiles seria o vínculo entre as
outras três ecologias: as estradas asfaltadas que transpassam a cidade,
monumentos que levantam contra o céu, antecipando-se, diríamos, os automóveis
voadores de Blade Runner.
Se, movido por Banham ou Canetti, fôssemos agora a Los Angeles ou a Marraquexe,
veríamos suas cidades como quem compara duas imagens – presente e passado – num
desses passatempos em que preciso distinguir sete erros. Quando Mike Davis escreveu
nos anos noventa o seu Cidade de quartzo:
escavando o futuro em Los Angeles, The Exiles de Banham sofreria um colapso,
a região havia passado por um apagamento da indústria e o lugar agora se
tornaria o da vida dos latinos e negros e ser pobre em Los Angeles (“o Grande
Gatsby das cidades estadunidenses”) é delito. Na cidade politécnica proliferava
uma maioria de latinos, afro-americanos e asiáticos, dominavam bancos e
monopólios tecnológicos com sede em outro lugar, os capitais fluíam do Japão e Canadá,
e a maioria anglo-americana se especializava no consumo de luxo e em defesa de
seus territórios.
Vista através do espelho retrovisor da história a cidade que veio com Davis é diferente
da de Banham. A construção de Los Angeles se dirigia – desde o encontro entre o
mundo espanhol-mexicano, católico, e inglês, protestante – a cidade pós-industrial
do presente: competições, super-catedrais, visitas papais, shoppings centers como
catedrais, arquitetura espalhafatosa, eliminação do espaço de livre acesso, lojas
com aspecto de fortaleza penitenciária e cárceres desenhados por celebridades
arquitetônicas. A bordo da Hollywood Freeway, na 635 North Alameda Street,
Davis nos ensina a prisão projetada por Welton Becket Associates, hotel
futurista ou bloco de escritórios para a “managerial elite of narco-terrorism”,
ampliação industrial-imobiliária da War on Drugs.
“Para ter confiança numa cidade estrangeira é necessário um espaço fechado
sobre o qual se pode ostentar certo direito e onde se possa estar sozinho
quando o barulho de vozes novas e incompreensíveis aumente”, dizia Elias Canetti
em Marraquexe. Walter Benjamin buscou esse espaço numa biblioteca e, entre 1927
e 1940, vislumbrou as origens de nosso presente na Paris do século XIX e suas
paisagens, esses nobres antepassados do centro comercial. Sigamos o Livro da passagens como um plano para
ver a cidade do século XXI na Paris de há quase um século e meio, quando as
medidas do barão Haussmann para o controle policial das ruas antecipavam os
dias de vigilância eletrônica e armada como atração turística, e percorrer a cidade
para comprar numa passagem, palácio das mercadorias de luxo fabricadas em
série, se transformava em entretenimento e evasão.
Então se construíam as passagens em ferro e cristal espetaculares como hoje os
novos edifícios comerciais se remodelam infinitamente em fachadas e interiores
mutantes. E quando no desejo de um espaço íntimo, próspero e seguro em que se
apoiar se imprimia o desejo pessoal em móveis, bolsas, jarros, prata, cristal e
almofadas (Benjamin viu aqui a origem dos romances policiais), talvez se pressentisse
nossa ansiedade deixar rastro no celular e outros tipos de cérebro eletrônico.
Buscando Paris num livro, acabamos na cidade universal que conhecemos, um composto
de cidades que, ao contrário dos camelos de Canetti, parecem distintas e talvez
sejam a Cidade Única.
Serge Gruzinski conta sua Cidade do México viajando, ida e volta, do presente
ao passado, a partir do “gigantismo de fim de século” às origens pré-colombianas.
Propõe uma maneira de se aproximar do lugar que assumiríamos em todas as cidades:
“abordar o complexo partindo das coisas sensíveis”. Por exemplo: o restaurante
Sanborns de los Azulejos na avenida Juárez, com suas colunas de pedra e seu
pátio barroco, onde todavia repousam as sombras da burguesia modernista, os
europeus de passagem por vontade ou por exílio, Rivera e Khalo, María Callas e
a Beat Generation, “oásis para turistas cansados”, segundo Gruzinski, mas
também para os empregados da região e os nostálgicos dos tempos em que a cidade
teve um centro. E outra cidade se mostra em sua dilatação hipertrófica: México D.
F. se torna irreconhecível de geração para geração. Para buscar a cidade dos
anos cinquenta é preciso ir a algum filme dos Estúdios Churubusco, Hollywood e
Cinecittà à mexicana, onde Buñuel rodou O
anjo exterminador. Quem reconheceria na Zona Rosa do consumo recreativo de
hoje a velha cidade residencial de vocação europeia? A modernização parece
equivaler sempre a depuração e ocultação (pode ser exibicionismo policialesco)
da cidade de castas e classes sociais, através, entre outras coisas, da
ostentação turística do passado pré-colombiano e colonial.
Em Praga mágica, de Angelo Maria
Ripellino, Praga é antigo fólio de páginas de pedra, cidade-livro, “sempre por
ler, sonhar e interpretar”: um dia alguém vai andando por Roma ou Paris, tanto
faz, e de repente acredita desembocar outra vez numa eterna praça de Praga.
Todas as épocas confluem neste instante, assim parece entender Ripellino a
história, embora, talvez porque escreva pouco depois da invasão soviética de
1968, relaciona o caráter da cidade com os traumas do passado: Praga se
metamorfoseia e esconde-se ante os aventureiros de todas as partes que ao longo
dos tempos a saquearam e cantaram, seja a soldadesca e burocracia do Sacro
Império Romano Germânico, do III Reich ou do Pacto de Varsóvia.
Ripellino avisa: seu livro-cidade não é um guia de viagem. Parece-se um
caprichoso projetor de imagens que funde as gárgulas da catedral de San Vito,
as visões dos alquimistas e astrólogos da corte de Rodolfo II, os monstros
antropomórficos do pintor Arcimboldo, os robôs e salamandras de Karel Čapek, o
Golem do rabino Löw e o inventado por Gustav Myerink e Paul Wegener, “as larvas
grotescas e inquietantes da literatura de Praga”. Mas o enciclopédico Ripellino
confessa seu “infinito remorso de não conhecer tudo, de não abarcar tudo” e
ainda mais: vê, refletida nas águas do rio Moldava, uma cidade subaquática
habitada por hominídeos subaquáticos, ou propõe, se alguém quer ir buscá-los
uma noite, uma lista dos espectros de Praga, bairro por bairro, antecipando os
que hoje exploram em viagens turísticas o interior da tumba de qualquer cidade com
história. Que o visitante, previne por fim, não fique preso na deslumbrante
superfície óptica de Praga. “Uma cidade é uma coisa complicadíssima”, diz.
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* Este texto é uma tradução de "Leer para ver" publicado no jornal El País.
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