Félix Krull e o jogo de identidades
Por Rafael Kafka
Thomas Mann é um autor que muito agrada ao meu existencialismo. Há nele uma grande atenção às manifestações de ser mais elementares e minuciosas do ser humano. Para focar em tais manifestações, Mann se utiliza de uma narrativa focada no romance de formação e em elementos de contraposição entre escolhas do eu e do ambiente circundante. Nesse sentido, podemos dizer que em seus romances mais célebres o autor alemão coloca como protagonista a indefinição da condição humana e a consequente angústia daí oriunda.
Em alguns
textos como Sua Alteza Real, Mann mostra como elementos da liberdade humana
são sacrificados aos poucos no sentido de construção da identidade de dado
complexo existencial. Para a construção do ser-para-reinar é necessária a morte
do ser-para-si com sua liberdade de escolha e projeção dentro da mundanidade
cotidiana. A contraposição entre a subjetividade e a objetividade do indivíduo
gera uma dimensão de existir puramente voltada para o mundo externo, para o
outro.
Se em seu
clássico maior, A montanha mágica, o tema da experiência temporal já era
muito marcante, a subjetividade do ser real sendo morta por conta de um mundo
de aparências é uma outra temática existencialista forte dentro dos romances de
Mann. O existencialismo é uma corrente de pensamento que muito focou nos textos
literários e teóricos o modo como o ser humano lida com uma experiência marcada
pela imprecisão. A única certeza de nossas pequenas vidas é a morte, que a
qualquer momento pode nos apagar ao mesmo tempo em que afirma a plena
individualidade de nosso viver.
Se em Doutor
Fausto temos a assinatura de um pacto com o demônio do fascismo para anulação
dessa incerteza em forma de náusea, em Confissões do impostor Félix Krull percebemos um Mann já em final de vida
brincando consigo mesmo, com seu estilo quase sempre ensaístico e sóbrio. Krull
é um narrador em primeira pessoa, repleto de paródia em si mesmo, como os bons
narradores de Nabokov, e que assume o próprio papel da indeterminação a qual
parece tanto perturbar demais personagens e célebres de Mann.
Krull é um
pobre com desejo de aristocracia e que assume a identidade de outro ser para
tentar fugir de sua existência tediosa e miserável. Desde criança, quando
servia de modelo a um tio, vê na arte justamente esse poder de paródia e
transcendência retratado por Bergman em alguns filmes seus. Enquanto as pessoas
em geral se sentem nauseadas pela falta de definição do existir humano, Krull
brinca com isso e faz de sua liberdade a plena essência de sua condição,
brincando em um mundo de aparências.
Enquanto os
seres reais tiveram de morrer para se tornarem o que são, Krull vive como
aparência sem remorso algum. O existir para ele é uma escolha de máscaras
conforme a circunstância vivida e cada um de seus gestos parece ser uma grande
piada voltada para o terror sentido por nós diante do simples ato de estar no
mundo.
Heidegger
fala em Ser e tempo acerca do conceito de autenticidade. Muito problemático
segundo a visão de certos autores, esse termo se liga à ideia de uma existência
concreta plenamente dona de si, a enfrentar sem temor a angústia de existir, a
reconhecer sua essência como transcendência na imanência. Um ser autentico é
aquele que vive sem desculpas o projeto de vida por ele desenvolvido e
escolhido.
O grande
problema desse conceito é a falta de um critério claro para definirmos o que é
ou não autêntico. No senso comum de nosso cotidiano, vemos como inautêntico o
ser que escolhe uma existência a qual julgamos como sendo pura aparência. Todavia,
cada vez mais em nosso mundo líquido percebemos a realidade como um conjunto de
aparências as quais se sucedem sem parar. Não temos mais uma existência
estanque, duradoura e mesmo Sartre em O ser e o nada fala de como o caráter
mais angustiante da liberdade humana é justamente a possibilidade de daqui a
alguns minutos aquela decisão irrevogável tomada por nós ser deixada de lado.
Ou seja, nem em nosso querer temos a certeza da estabilidade, da duração.
Assim, o ser
que julga o outro como não autêntico por sua suposta falta de córnea e raízes
ignora que autenticidade está ligada talvez mais à liberdade de escolha do que
à pureza de convicções e projetos. Para muitos, Krull seria portanto
inautêntico por seu desejo de ser o que não é e por brincar com diversos papéis
ao longo deste belo romance inacabado.
Mas Félix
escolheu seu caminho de paródia. Como George Martin, de Cidade pequena, cidade grande, ele se depara com uma nova ordem mundial pós-moderna líquida e difusa.
Mas Martin chora diante disso, lamenta a quebra das velhas instituições e dos
antigos papéis sociais bem definidos; já Félix passeia livremente, dançando
sobre os escombros de um mundo antigo que buscava arremedar a firmeza das
antigas construções gregas.
Prestes a
morrer, Thomas Mann levou seu experimentalismo existencialista a níveis mais
abissais. Se antes havia a análise estética de modos de ser puramente aparência
os quais matavam a liberdade humana, agora temos um ser que é pura contingência
e sente isso em todo o seu pulsar existencial. Krull é o anarquismo em forma de
poesia romanesca, é a arte tornando-se dona de uma nova realiza de a qual ainda
aterroriza muitos de nós pela sua falta de respostas e receitas lê prontas.
O curioso
fato de não ter um final por conta da morte do autor, torna de forma estranha a
existência do protagonista algo mais autêntico ainda se olharmos que o seu
caráter anárquico se eleva com o final indeterminado. Krull é o típico cidadão
de mundo experimentando diversas formas de ser a todo instante, explorando sua
sexualidade sem receio algum. É um grito de liberdade em forma de escrita
pícara. Pois sendo um cidadão de um mundo difuso e alquebrado, Krull fez sua
angústia virar uma estranha felicidade que muitos de nós ainda precisamos
aprender a sentir para sermos realmente autênticos.
Comentários