Carnívoras, de Jérémie Renier, Yannick Renier
Por Pedro Fernandes
A renovação do debate feminista no início desta década tem servido para revelar
de maneira mais precisa algumas das mazelas propiciadas pelo império do macho cujos
efeitos deverão gastar – se alcançarmos – outro tempo além do já percorrido por
esta civilização a fim de serem superadas. Se algumas mudanças são sentidas
desde os primeiros momentos do levante das mulheres, outras repousam ainda num
distante horizonte de expectativas. E se lembrarmos algumas das culturas mais fechadas, as coisas são mais difíceis. Fiquemos com o Ocidente; é aqui que se acumulem gestos que apontam a permanência
de algumas condições oriundas do machismo. Nossos desafios são outros, mas não
menos grandiosos que os de outras culturas.
Um exemplo dentre as transformações colocadas em evidência para se alcançar, é
a o exercício da sororidade. O nome, apesar da aparência de novo é tão antigo
quanto a luta das mulheres pelo reconhecimento de existirem plenamente. O termo
designa a união e aliança entre mulheres, baseado na empatia e
companheirismo, em busca de alcançar objetivos em comum. Os critérios de
disputa entre elas – patente desde o senso popular de que uma mulher se arruma
para outra mulher, no sentido de competir uma com a outra – apesar de
designados como “coisa de mulher” são oriundos entretanto da mesma raiz do machismo.
A reclusão no espaço privado e logo a destituição do convívio coletivo são apenas
duas das várias possibilidades que terá contribuído para a criação de uma ordem
desagregação e de organização, males que recaíram na ausência de representação
política ou mesmo o maior dos desafios em torno das pautas dos direitos a elas.
O filme de Jérémie Renier e Yannick Renier coloca em relevo este tema ao compor
uma narrativa em que a ausência de sororidade é motivo do imbróglio narrativo e
seu desfecho trágico. Mona é de uma família formada apenas por mulheres – além
dela, a mãe e a irmã mais nova Sam. A mais velha é extremamente esforçada, dedicada
à carreira de atriz, e depois de sair do curso de artes cênicas almeja alcançar
algum papel de relevância – coisa que a outra irmã consegue sem pouco esforço,
já que antes de se dedicar profundamente ao ofício, dedicou-se a outras atividades
de ordem pessoal, como a construção de uma família.
Desempregada e interessada em alcançar o espaço conseguido por Sam, Mona
muda-se vai viver provisoriamente na casa da irmã. Os insucessos e a convivência
com a família de Sam, enquanto esta se dedica ao papel mais desafiador de sua carreira
– o de Justine, personagem central da obra do Marquês de Sade – levam Mona a
reanimar as potências da inveja em ocupar o lugar da irmã. Aos poucos, ela escolhe
dedicar-se inteiramente a Sam na manutenção da ordem e em romper com os
desafios impostos pela direção a ela que não consegue encontrar fôlego suficiente
para o papel a que foi designada. Nesse ínterim, vale sublinhar que se Sam não
é culpada pelo fracasso da irmã, ela não mede esforço algum para possibilitá-la
à ruptura do cerco imposto pelo meio artístico. Em certa passagem, a mãe das
duas critica a posição de Sam. Isto é, expõe a ausência sororidade entre as
duas, se vislumbrarmos que os problemas enfrentados por uma se repetem de alguma
maneira na outra e apenas uma delas, Mona, parece desempenhar tal empatia.
Quando Sam, casualmente demonstra algum recurso de ajudar a irmã, é da maneira
que a coloca em posição de sua submissa. Ainda que o gesto, por indelicado que
seja, pudesse surtir algum efeito no desfazimento do impasse entre as duas,
este parece alcançar Mona num estágio quando já se encontra integralmente carcomida
pela posse em ser a irmã – e o desaparecimento repentino desta só apressará o
que na narrativa de Jérémie e Yannick se demonstra como uma profecia colocada
desde o início de tudo.
Mas, além de destacar a ausência de sororidade – conceito que abrange uma
dimensão ética e prática para além de política – é preciso compreender os
papéis desempenhados pelos homens nessa trama, apesar de aparecerem,
propositalmente encobertos pelo drama das duas irmãs e o suspense que se
instala em seu redor. É simbólica a cena de abertura do filme, em que Mona é
brutalmente interrompida pelo diretor enquanto faz mais um dos testes para um
possível trabalho; também, a presença impositiva e dominadora que assume o companheiro
de Sam, além, é claro, da mesma condição impositiva do diretor de Justine. Todos eles estão marcados pelo caráter
imperativo que serviu ao homem ao longo de seu projeto cultural de cercamento
das mulheres.
A não-sororiedade, portanto, começa na atitude de Sam mas tem forte componente da
sua condição vivida entre dois homens – com quem Mona melhor se identifica, seja
porque não nutre (verdadeiramente) o sentimento de igualdade pela irmã, seja
porque atribua a ela a responsabilidade pelo drama em que se vê metido. Isto é,
friamente Mona ajuda a fortalecer os lugares dos homens que culminaria no total
apagamento da irmã.
A referência que não pode passar despercebida é a relação que a narrativa principal
mantém com a encenada (pode-se mesmo entender esta como uma forma
metalinguística daquela). No filme dos também irmãos belgas, a personagem de
Sade é colocada no meio de uma ordem de repetições – demonstrando desde a
origem uma correlação dos papéis de Sam e Mona; isto é, as características que
definem Justine, o papel encarnado por Sam, prevalecem nela se lembrarmos que a
personagem de Sade é definida como a ingênua defensora do bem que sempre acaba
envolvida em crimes e depravações. Justine também tem uma irmã: Juliette. E
esta encarna o mal, fazendo uma sucessão de coisas abjetas, como matar uma de
suas melhores amigas lançando-a na cratera de um vulcão ou obrigar o próprio
papa a fazer um discurso em defesa do crime para poder tê-la em sua cama – conforme
se define no verbete sobre o escritor francês na Wikipédia.
A relação das duas irmãs preenchem ainda uma estreita relação com o tema do
duplo e da relação dos irmãos, patente em narrativas míticas como a de Abel e Caim,
em que a inveja deste último e a competitividade entre ambos leva o fim trágico daquele enquanto é submetido à errância
e ao desterro. Em Carnívoras, estão
preservadas as mesmas instâncias do tropos
narrativo em questão, mas reservando-se a outro desfecho.
Considerando os lugares enumerados neste texto muito fica por dizer se fosse
possível compreender, cenas, fotogramas e outros aspectos de ordem semiótica
que participam ativa e articuladamente na composição da narrativa fílmica e que
realçam as questões aqui apresentadas. Fique-se então com o registro de uma
obra extremamente atual, de sentido diverso e, logo, complexo valor criativo e
artístico – como devem ser as boas produções.
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