Breve elogio do sexo
Por Carlos Mayoral
La Nouvelle Justine ou Les Malheurs de la Vertu, de Sade |
Como alguém
tende, comumente, a buscar na literatura o que não encontra na vida, é muito comum
que o leitor (ou o escritor, se é que não é o mesmo) idealize a página por
sobre suas possibilidades. A arte é uma vida hiperbolizada. O amor é mais amor
se o descobres num soneto medieval, como a amizade é mais amizade se serve para
que cavaleiro e escudeiro lutem com gigantes ou a infidelidade é mais
infidelidade se aparece num romance russo. Também Londres é mais Londres se
narrada sob a pena de Dickens ou, a vida em um mosteiro dos Apeninos é atrativa
se a descreve Umberto Eco. E este exagero não tem por que ter somente um tom alegre.
Também o medo é o mais medo sob as letras de Maese Pérez, o assassinato dói mais
nas linhas de Capote que durante os trinta e cinco minutos do jornal e a agonia se saboreia com mais amargura se é Ivan Ilitch
que a padece. Até aqui, tudo bem. Agora, e o que ocorre quanto ao sexo? Bem, se já é
o motor das fantasias do ser humano, tem que ser necessariamente o leitmotiv da criação literária. E, como
na vida, nas páginas há expressões sexuais sujas, animais, furtivas, elegantes,
anódinas, turbulentas, fugazes... Ali onde o desejo passa a ser o tema principal
da obra, haverá sexo, real ou imaginário.
E não pense
o leitor que isto é coisa da contemporaneidade. Desde a Idade Média que se nota
o ponto dos prazeres carnais que marcam o ser humano. Boccaccio, no século XIV, desenha
em seu Decameron o retrato da
luxúria. Ainda estava longe o Renascimento, mas o narrador florentino sabe que se
acabaram os preceitos da Igreja e que a vida terrena é muito mais importante do
que queriam nos fazer acreditar. Além de uma ponte até a eternidade, esta vida terrena
deve ter algo para levar à boca. Ou ao menos isso pensa Boccaccio, que lança
suas personagens à vida licenciosa esquecendo-se das obrigações morais marcadas
por Roma e alude em várias passagens ao desfrute carnal de todos. Em breve,
apenas alguns decênios mais tarde, o marquês de Santillana, um dos faróis da
literatura medieval espanhola, preso de tudo o que contara com um aroma
italianizante, teve que subir ao carro da liberação artístico-moral com suas célebres
Serranillas. Nelas, além do tema clássico
do elogio lírico da serrana, se dão cenas de sexo onde o marquês (ou a primeira
pessoa que fala por ele) acaba brincando com a mulher em questão. Este modus operandi abraçam também outros
ilustres poetas medievais, com o grande Arcipreste de Hita, quem deseja que
suas personagens deem rédeas soltas à paixão amatória escondida entre bosques
reais e fauna.
Se no Medievo, época de recato ao furor interior, já entreabria as portas a uma
aceitação dos prazeres sexuais, o Renascimento, mais aberto e hedonista, não
podia ficar para trás. A celestina,
obra de tom renascentista apesar de muitos incluírem esta entre a opacidade da
Idade Média, é encarregada de segurar os pontos. A velha anima Calixto a confundir
sexo e amor, algo comum hoje, inimaginável então. Também são carne do
imaginário os célebres duplos sentidos que os místicos, comandados por Santa
Teresa, lhe dão amor e inclusive o gosto que proporciona o amor. Não devemos
esquecer que atravessamos esse século, o XVI, que viu nascer as teorias de
Erasmo. Se a religião havia sido o principal dique para conter a maré sexual
que repousa dentro do ser humano, as teorias erasmistas supõem uma respiração
espiritual para o ser renascentista. Europa dobra-se ante esta espécie de
alívio moral (Espanha nem tanto, sujeita pelo peso da espada contrarreformista),
e se sucedem as agulhadas sexuais em cada texto. O próprio Maquiavel havia sugerido
em seu O príncipe, esse guia do governante
que regeu as condutas dos chefes durante muitos anos. Ali, separando a moral e
a política, fala do sexo como medida de poder, único objetivo do italiano. De
fato, em sua literatura, o sexo não tem nada de transcendente e só busca o
interesse próprio (qual prazer não é interesse próprio?). Em seu “Mandrágora”,
por exemplo, a personagem feminina inventa uma porção para praticar o sexo com diversos
homens. Já se via a luz do fim do túnel.
A chegada do
Barroco só acentua a tendência. A obra maior dentre todas, Dom Quixote, de Cervantes, está repleta de cenas de velado
erotismo. Desapontadas como Leandra, incontroláveis como Maritornes, sugestivas
como Altisidora, onanistas como Vicente... O jogo com que Cervantes escapa da
recatada censura do século XVII é extraordinário. Mesmo simbolismo podemos encontrar
em seu irmão shakespeariano, e esse erotismo difuso se mascara em cada obra.
Desde a elegantemente sexualizada morte de Romeu e Julieta (o cálice, símbolo
vaginal por excelência; a espada de Romeu penetrando a carne de Julieta) até o
volume bruto entrepernas de Sir Falstaff. Esse erotismo é transposto pelos grandes
dramaturgos do teatro espanhol. De Lope, que não só levou esse erotismo ao teatro
como também à poesia e mesmo à vida; ou Tirso no celebérrimo Don Juan, galanteador
maior de Sevilha.
O século
XVII é o século de Sade no que se refere à matéria sexual até o ponto de incluir
hoje característica nos dicionários. É este século que continua com a tendência
de abertura que vinha acontecendo, embora essa abertura não fosse suficientemente
ampla para deixar passar um gênio intelectual da categoria do Marquês de Sade. Mais
que seu polêmico discurso, sua figura molestava a moral para conseguir que o
leitor repensasse até a última das suas certezas morais. Neste plano, claro, inclui-se
o sexo. Já se disse neste parágrafo: Sade molestava. E como molestava, foi
preso em mil e um manicômios primeiro; ao esquecimento mais triste depois. O
que não puderam parar foi seu legado, que recolhido por penas tão majestosas como
as de Flaubert, Dostoiévski ou Simone de Beauvoir, foi elevado e colocado para
sempre no centro do imaginário universal. Há um antes e um depois na percepção
da vida sexual depois de Sade.
Com este
impulso, as aberturas do século XIX se converteram de imediato num grande
feito. É todavia um erotismo velado, uma paixão clandestina que faz muito bem
ao fragmento, distante dessa luxúria do século XXI que se gravam entre a
pornografia de pichação e os livros que lançam mais sombras sobre a libido.
Este século XIX, por exemplo, é o século XIX de Baudelaire e de suas flores do
mal, esse tratado sobre o vício e a degeneração que foi proibido por medo da
reação popular. Pelo mesmo preço se censura a Madame Bovary, de Flaubert, porque tem certa liberação feminina que
mais tarde guiaria a Kariênina de Tolstói ou a Ozores de Clarín. A carruagem em
que Emma e Leon dão renda solta aos seus instintos carnais é já um símbolo da
literatura universal. Nota-se como esta liberação feminina só se mostra a partir
do olhar do homem. Se bem que algumas pioneiras como Rosalía de Castro na
Espanha, as Brönte no Reino Unido, Aurore Lupin na França ou Louise Aston na
Alemanha tenham conseguido desnudar espíritos sobre o papel, mas restariam décadas
para fazer o mesmo com o corpo feminino. O século XIX, entretanto, avançava. Os
românticos, como Byron à frente, elevam a luxúria ao papel central da vida. Na
Espanha, os Bécquer retratam e cantam a rainha Isabel rodeada de sua corte
praticando o sexo em todas as formas. No romance, o século vai consumindo-se com
bordeis de Sawa ou López Bago. Na poesia, Darío coloca o ponto final rimando, friamente,
o “sagrado sêmen”. Dorian Gray esconde no sótão o resultado de todos os impulsos
sexuais. O seu criador, Wilde, para findar o século com vergonha, acabam encarcerando-o
precisamente por suas inclinações amatórias.
O tom sexual
de uma narrativa ou de um discurso poético já é capaz de mostrar todas as
vergonhas sem pudor e sem recato no outro lado século XX. E foi Freud, quem em
princípios do século falava da natureza humana como um impulso com dois caminhos:
a besta selvagem ou eros. Para o primeiro caminho define o século da infâmia: cem
anos de guerras mundiais, civis, frias; cem anos de holocaustos, de bombas nucleares,
de muros, de terrorismos. Para a segunda linha, a do erotismo, os escritores já
caminham sem que nada nem ninguém tomem fé da libertinagem alheia, tentando
aplacar os horrores da natureza animal freudiana. Joyce relata as virtudes de
uma boa bronha no livro que mudaria o destino da narrativa mundial. A Lolita de
Nabokov radiografa a lasciva de um monstro. Não menos escandalosa é a Lady Chatterley
de D. H. Lawrence, quem antepõe o sexo à razão. Bukowski relata em seus contos,
em primeira pessoa, com tudo o que isso supõe a partir de um ponto de vista emocional,
o sexo a partir de todas as suas possibilidades. Marguerite Duras projeta sua
via em O amante, onde o sexo é quase
o protagonista principal da sua obra. Henry Miller também descreve os hábitos
sexuais com franco detalhe no seu Trópico
de câncer, o que o levará aos tribunais para escárnio à liberdade de
expressão. Propor-se a compor aqui uma lista de autores que recorram ao sexo em
suas páginas durante estas últimas décadas é impossível: ninguém pode esculpir
uma carreira literária em condições sem que o erotismo e a palavra se fundam.
* Este texto é uma tradução de "Breve elogio del sexo", publicado em El País.
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