Baudelaire no século XXI
Por Andreu Jaume
No dia 31 de agosto de 1867 morreu em Paris Charles Baudelaire. Desde quando caiu
na igreja de Saint-Loup de Namur, na Bélgica que tanto detestou, não havia recuperado
a voz e só repetia “Non, crénom!”, uma contradição de “Sacré nom de Dieu”. Não
era acaso, para quem havia vivido seu catolicismo com tanta seriedade, que sua
última relação com a linguagem tenha sido uma blasfêmia, um resíduo do sagrado cuspido
para a morte como última negação. Quando o poeta saiu do hospital religioso de
Bruxelas onde foi tratado dos primeiros sintomas da afasia e da hemiplegia, as
monjas agostinianas, escandalizadas por seu comportamento, benzeram o quarto da
enfermaria. A mãe do poeta o levou para Paris, onde ingressou na clínica de hidroterapia
do doutor Émile Duval. Aí recebeu visita de alguns amigos como Sainte-Beuve ou
o fotógrafo Nadar e as mulheres do romancista Paul Meurice e do pintor Manet para
tocar ao piano fragmentos de Tannhäuser.
Quando morreu estava nos braços da mãe, que contou como ele havia rido sob suas
carícias. A imagem é uma Pietá
moderna, quase inverossímil de tão perfeita.
Em seus curtos
quarenta e seis anos de vida, Baudelaire se expôs a todos os vícios de seu tempo,
se deixou levar pelo álcool e pelas drogas, contraiu sífilis, experimentou toda
sordidez imaginável em sua relação com Jeanne Duval – a atriz mulata e provavelmente
lésbica, reverso da Beatriz de Dante – e contornou a indigência, mas a tudo isso
se opôs sempre uma terrível lucidez, tanto em verso como em prosa,
observando-se a si próprio, dissecando cada uma de suas emoções e sem deixar se
levar nunca pelo desvario, até que em janeiro de 1862 anotou em seu diário que
pela primeira vez havia sentido passar ao seu lado “o a vibração da loucura”. Só
setenta anos antes, Hölderlin escrevera que os poetas, com a cabeça nua, recebiam
o raio de deus como meninos, com corações puros e mãos inocentes. O Baudelaire
que morreu nos braços de sua mãe era todavia esse menino, mas o raio que havia fulminado
já não vinha de cima. Como observou Walter Benjamin, o crítico que nas
primeiras décadas do século XX retirou Baudelaire do panteão dos clássicos e o colocou
para mover-se a fim de entender as chaves da vanguarda e do mundo contemporâneo,
em As flores do mal, o céu está vazio,
apagado pelo brilho da cidade.
É muito
estranha a sobrevivência da grande poesia. Quase ninguém parece se importar com
ela, e quase nunca está em pauta nos debates literários, mas mantém maior capacidade
de resistência e de visão que qualquer outra forma criativa. Mantém a linguagem
em alerta e é sempre, sobretudo em tempos de miséria, um dos últimos refúgios
do pensamento. Baudelaire é já um tópico da cultura europeia e, como tal, tem
vivido centenas de vidas, desde sua consagração póstuma até sua metamorfose em
diferentes línguas ao longo do século passado. T. S. Eliot disse que a imensa
dívida que havia contraído com ele poderia resumir-se em dois versos: “fourmillante
cité, cité pleine de rêves / Ou le spectre en plein jour raccroche le passant”
(Formigante cidade, cidade cheia de sonhos / Onde o espectro em pleno dia
assedia o passante); com estes dizia que Baudelaire fora o primeiro a cartografar
poeticamente essa nova natureza que é a cidade. Toda a literatura urbana é
inevitavelmente baudelairiana, a tal ponto que nossa leitura de muitos poemas depois de As flores do mal está distorcida pelo
influxo exercido por esta obra, convertendo o que vem depois em cópia do original.
Mas, voltar à sua obra, agora que já estamos no século XXI e podemos vislumbrar
qual será o nosso horror, é um exercício de preparação imprescindível. Do mesmo
modo que Shakespeare desapareceu depois de sua morte para voltar no século
XVIII e mergulharmos na crise do romantismo, Baudelaire, encerrado no
parêntesis ilusório que se abriu depois da segunda guerra mundial, regressa
para abrirmos os olhos ao abismo de nosso tempo.
Tudo o que
viu constitui para nós uma origem, posto que desde sua morte não deixou de crescer
e expandir-se. A internet tem transformado todo o mundo numa urbe, numa imensa
paisagem, em grandes galpões cujo flâneur
– convertido, como profetizou Benjamin, em homem-anúncio – é hoje o internauta,
mercadoria de si mesmo nos mares da publicidade. As cidades são agora nossas
verdadeiras nações e a multitude que descreveu Baudelaire é o antecessor das
massas que fluem entre elas para serem vendidas ou massacradas. Quando exaltou
um pintor menor como Constantin Guys – em detrimento de Manet – estava na
verdade detectando a nova velocidade da rua, presságio da atual metástase da
imagem e da progressiva cegueira por ela produzida. Ainda mais que em seus
versos, na prosa nua de O spleen de Paris
colocou em tela os novos mitos surgidos da revolução de 1789, como a igualdade,
modelo da ditadura do politicamente correto. E seguramente foi um dos primeiros
em se dar conta de que a lei moderna só pode ser aparência de lei e portanto
inevitavelmente arbitrária e escorregadia.
Como poeta,
Baudelaire se atreveu a violar a melodia do alexandrino francês com todo o ruído
de Paris do Segundo Império, preparando a poesia para seu desterro agônico no
âmbito da prostituição, da publicidade e do jornalismo. Num de seus melhores
poemas em prosa, identificou um velho saltimbanco, sozinho à porta de sua barraca,
contemplando com olhar profundo e inesquecível a multidão que ao seu redor se
diverte, com “o velho poeta sem amigos, sem família, sem filhos, degradado pela
miséria e pela ingratidão pública”. E num parágrafo estarrecedor de seus
diários se perguntou: “O que o mundo precisa fazer daqui em diante sob o céu? A
mecânica nos terá americanizado de tal maneira, o progresso haverá atrofiado tanto
em nós toda a parte espiritual, que nada, entre as fantasias sanguinárias, sacrílegas
ou antinaturais dos utopistas, poderá comparar-se aos seus resultados positivos”.
Mais de um século e meio depois de sua morte já sabemos quais foram esses
resultados, algo que de nenhum modo deve nos impedir de manter vivo o pedido
que vez em seguida: “peço a todo homem que pensa que me mostre o que subsiste
da vida”. Isso continua sendo, hoje talvez mais que ontem, a arriscada função
da literatura.
* Este texto é uma tradução de "Baudelaire en el siglo XXI", publicado no jornal El País.
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