A única história, de Julian Barnes
Por Pedro Fernandes
“Romance: uma pequena história, geralmente de amor.” Não é um exercício
gratuito o de Julian Barnes estabelecer como epígrafe de A única história, esta definição de Samuel Johnson encontrada em A dictionary of the English language, de
1755. Embora seja apenas uma entre as várias proposições cunhadas em quase
quatro séculos de história, a essencialidade do romanesco jamais perdeu essa
pitada adquirida no momento glorioso da forma. Não apenas por isso; o escritor
inglês contorna com as tintas do tempo o tema do enlace amoroso, do seu nascimento quase sempre ao acaso à ruína, quando o sentimento, paredes-meias com o ódio a abjeção, ganha
caminhos inesperados para os amantes.
Em A única história reforçam-se mesmo
alguns estereótipos da narrativa clássica: o amor impossível, a dedicação exacerbada
dos amantes e a renovação da ideia de que mesmo ante a possibilidade de amar
mil vezes, uma só experiência é a que marca em definitivo a vida dos amantes. Desses
três elementos, o último é o que prevalece de alguma maneira irretocável e é
uma condição justificável desde o título do romance. Os outros dois são
passíveis de questionamento; constituem o exercício de aparente contínua revisão impressa no correr da narração.
É que a impossibilidade do amor só se revela ao amante depois de superadas as
razões que poderiam constituir impedimento se estivéssemos num história clássica:
a repulsa da família de Paul pelo envolvimento de um jovem de 19 anos com uma
mulher de quase cinquenta, casada e mãe de duas filhas; ou o embate entre o
marido de Susan e o rapaz que, de uma hora para outra, passa a compor continuamente
a presença na vida doméstica dela. Embora, as suspeitas do relacionamento recaiam
no tratamento violento entre Gordon e a mulher, abrindo a oportunidade para
Paul refletir como a violência entre casais é coisa sutil e velada mesmo nas
esferas onde se acredita, ingenuamente, que as agressões de homens contra
mulheres residem apenas no plano verbo-psicológico.
Além disso, enquanto nas histórias tradicionais o enlace amoroso geralmente é
vivido por ambas as partes, no romance de Julian Barnes prevalece a ideia de
que é num polo específico onde reside de forma mais luminosa a sede pelo outro.
E porque, de alguma maneira A única
história não se constitui numa mera retomada dos mesmos planos e motivos
narratológicos do romance romântico, nota-se que o exercício de reescrita por uma definição de amor, atribui a esta obra uma natureza que é muito mais a de uma paródia
daquelas histórias passadas, sobretudo da sua constituição, embora sem a tonalidade do riso.
Isso quer dizer que aí vigoram os lances da subversão, como tem sido recorrente
quando a literatura recorre a formas narrativas mais ou menos estáveis.
Mas, tudo é muito sutil – certa força fabricada na atmosfera cultural inglesa,
isto é, algo que inerente ao ser e estar do inglês toma forma na tessitura das criações
artísticas. A narrativa de Paul – é a personagem principal que no alto da sua aparente maturidade se permite a dar
ouvidos à sua memória para o vivido com Susan – se tece de silêncios, de conjecturas.
Talvez porque no gesto de revelação de situações passadas numa intimidade tão
estreita signifique mesmo certa audácia se considerarmos que essa mesma
atmosfera de sutilidades é produto de um império de pudores e cerceamentos. A
própria Susan é quem se distingue uma frígida, porque se vê em parte responsável
pela frustração de um casamento que resultou em vivências semindependentes que inclui
camas separadas e mais de vinte anos sem sexo. Possivelmente, é esse pudor que
faz se sentir impossibilitada de romper em definitivo com o marido e que lança
a personagem num torvelinho no qual se percebe a mulher improvável para acompanhar
o fôlego ritmado de um jovem da idade de uma de suas filhas. Essas duas
possibilidades, entretanto, não aparecem na superfície da narrativa de Paul, que
se assume de alguma maneira como uma tentativa de compreender o que se oculta
em Susan que a arrebata violentamente para mais distante dele, quando passam a
viver juntos, e a compartilhar do mesmo vício do marido (e, pior, nela sem
qualquer controle).
Julian Barnes é uma delicadeza pura. Emoldura silenciosamente – e nos arrebata –
o que é uma história de amor vivida por um jovem impetuoso entre uma complexa tessitura
de violência doméstica causada pelo imperativo do machismo e as imposições
simbólicas que um sujeito dilacerado finda por atingir a quem lhe diz com todas
as forças nutrir um amor verdadeiro. E nesses planos de sentimentos tão próximos
do arrebatamento trágico, transparece uma leveza, que, se à primeira vista é um
contraste um bocado alterado, no todo da composição é de um equilíbrio fundamental
ao ritmo da narração.
À medida que Paul assume-se enquanto interventor no processo de libertação psicológica de Susan é cada
vez mais arrastado para um mundo onde nele se percebe estrangeiro e alheio,
embora tenha consigo a necessidade de viver até ao ponto final o que escolheu
viver. Essa decisão não tem nada de caridade, nem de puro amor (já que este é continuamente
toldado pelos ímpetos de Susan), nem é compreendida pela personagem como um curso
do destino que lhe obrigou a passar por todas as consequências de sua escolha.
Quando Paul conhece Susan é num sorteio de duplas para um torneio de tênis no clube
da pequena cidade do interior da Inglaterra para onde vai viver com a família. Nessa
ocasião, o jovem se vê, pelos imperativos dos pais aos amigos, entregue ao
embate de deixar de lado os modos que o determinam inconsequente (embora não receba
diretamente dos pais essa cobrança) para entrada na maturidade do universo adulto.
O envolvimento com Susan, assim, é o que desencadeará, de maneira brusca
(portanto imperceptível), essa transição. Ao remontar as situações desse
período o intuito é de se perceber como o passado de uma maneira nem sempre coerente
terá contribuído para o sujeito que é no presente.
As duas situações – a amorosa e a descoberta de si – poderão parecer lances fatigantes
pela contínua repetição de uma toda uma longa tradição do romance, mas estas
são, afinal, agora não uma, mas duas das principais preocupações do romanesco.
A pergunta que fica é: com que propósito repetimos as mesmas ou a única
história? Logo à entrada de sua
narrativa, o narrador de Barnes denuncia isso que dissemos e, de alguma
maneira, responde nossa pergunta: “Se esta é a sua única história, então é uma
história que você já contou e tornou a contar, mesmo que tenha sido – como é o caso
aqui – principalmente para si mesmo. A questão então é: todas essas repetições
nos levam para mais perto da verdade do que aconteceu, ou para mais longe? Não
tenho certeza. Um teste poderia ser se, com o passar dos anos, você sai melhor
ou pior na foto da sua história. Sair pior pode indicar que você está sendo mais
verdadeiro. Por outro lado, há o perigo de ser retrospectivamente anti-heroico:
apresentar-se como tendo se comportado pior do que realmente se comportou por
ser uma forma de autoelogio”.
Quer dizer, aí parece residir o tom que justifica a razão deste romance e de
toda a literatura. Contamos de nós para sabermos melhor de nós – independente
do resultado final, cada história, mesmo repetida, é única.
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