A arte do romance

Por Antonio Muñoz Molina



Terminei de ler The other house e fiquei um tempo com o livro nas mãos, sem fazer nada, deixando que o romance se fixasse em mim, como quando termina um filme no cinema e alguém ainda está tão tomado pelo que viu que não se move do seu assento e não tem vontade de se levantar nem de sair logo à rua. (Deveria existir momentos assim num concerto, ao final de uma obra, parêntesis respeitosos de silêncio, antes do frenesi algo exibicionista dos aplausos). Depois de terminar Ther other house e de ficar paralisado por um tempo voltei ao começo e me concentrei de novo na leitura, agora com a clareza da segunda vez, que me permite dar conta de todos indícios que Henry James vai insinuando desde a primeira página. Sempre se está distraído quando se começa um romance. É como entrar da rua num lugar em penumbra. Há pormenores fundamentais que não se ver logo de primeira: motivos que se enunciam rapidamente, mas que o ouvido não sabe distinguir. Por isso um romance que mereça ser lido é preciso que se leia ao menos duas vezes, e se possível sem pausa, para não dar tempo ao esquecimento.

É na segunda leitura quando me dou de verdade de como está organizado o romance. Talvez eu goste ainda mais porque demorei muitos anos até chegar a ele. Alguns romances nos esperam. Esperam que alcancemos o grau necessário de maturidade ou que encontremos um período de sossego ou que dominemos melhor o idioma em que estão escritos. Sei que comprei The other house há 13 anos porque encontrei entre suas páginas o recibo de uma livraria de Nova York que já não existe, Crawford Doyle, com seu mostruário à sombra de um toldo azul numa rua da parte luxuosa da Madison Avenue. É uma dessas edições atrativas da The New York Review of Books. Atrai ao tato da mesma maneira que ao olhar. Talvez tenha começado na época, mas deixei de lado porque me exigia uma atenção da qual não era capaz naquele momento. Não o li, mas seguiu comigo em mudanças diversas, em minha biblioteca errante que ia crescendo ou reduzindo segundo o espaço de cada morada e segundo a necessidade de aliviar-se de alguma parte da vida e desprender-se do peso morto então acumulado.

É bom que os livros ocupem um lugar à vista no espaço. Numa nova estante, noutra cidade, do outro lado do oceano, o que resta da biblioteca resume uma parte do melhor daqueles anos de minha vida. Resgatados dos baús onde permaneceu quase um ano, retirados das caixas, os livros são ao mesmo tempo uma chave de recordação e um projeto, o testemunho do já lido e a promessa sedutora de tudo o que ainda me falta ler. Noutra casa de outra cidade o primeiro livro que comecei a ler foi The other house, talvez mais induzido por seu título, que em sua simplicidade misteriosa contém cifrado a narrativa inteira do romance. Comecei a leitura na cama e embora o tom me seduzisse desde a primeira frase com essa música sinuosa de James, não me importava muito porque tinha sonhado e no dia seguinte não conseguia me recordar de nada.

É preciso estar muito acordado e muito lúcido para ler um romance. E o grau de concentração exigido é maior quando se trata de um romance de Henry James, porque suas histórias tratam do que se passa por baixo das aparências e do que permanece oculto sob as palavras que as pessoas dizem umas para as outras, e o que estão dizendo sem dizer, e o que nunca contam e quase não chega a se saber, o que é possível adivinhar ou intuir, sem conseguir nunca uma certeza, ou descobrindo de imediato algo inaudito ou atroz: uma frase trivial segrega o veneno que intoxica uma vida; em uma tarde de verão, num jardim inglês, pode irromper um fantasma ou se cometerá um crime.

The other house começa parecendo uma comédia inglesa de costumes e se torna gradualmente numa história de terror. Só ao lê-la pela segunda vez é possível se dar conta das passagens que levam como por acaso da claridade a negrura, com uma naturalidade semelhante à da passagem das horas num só dia, da manhã à noite, da cotidianidade trivial à desgraça, dos bons modos ao crime. The other house começou sendo um esboço de uma obra teatral que James não chegou a escrever. Seu infortúnio como autor dramático foi uma vantagem para nós, seus leitores futuros. A forma teatral determina o limitado dos espaços da história e a compreensão do tempo, como também a polifonia do diálogo e a sensação de simetria. A primeira parte se passa num só lugar, numa manhã; o romance continua e alcança quatro anos depois, da manhã à noite. O fluir do tempo se faz todavia mais visível nas cenas finais, quando ao entardecer dá passagem à noite e as personagens falam sem se dar conta de que está escurecendo e ficam caladas quando alguém entra trazendo uma lamparina. Há duas casas, próximas mas separadas por um rio, unidas pela ponte que vai de um jardim a outro. Há um narrador que parece se movimentar invisivelmente entre as personagens porque não está de fora à espreita, mas no mesmo cenário, de modo que pode se aproximar como em primeiros planos do cinema ou ainda observar desde um lugar, ou espiar pelas janelas abertas o que se passa do outro lado, na outra casa, e também detrás dessas portas teatrais que não chegam a se abrir ou nesse fundo que poderia ser uma paisagem pintada. Como no teatro, as personagens são mensageiras que chegam para contar o que não é lícito que vejamos em cena, o que é tão espantoso que nos faria retirar os olhos sem que pudéssemos ver.

Há uma sensação de plenitude ao terminar a segunda leitura. Valeram a pena os anos de espera. Não há arte narrativa como a dos romances. Escrevendo-os alguém está refém de suas próprias limitações, seus enganos, suas angústias, suas incertezas. É em ler os melhores romances dos outros onde está a felicidade.

* Este texto é uma tradução de “Arte de la novela” publicado no jornal El País.

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #610

Boletim Letras 360º #601

Seis poemas de Rabindranath Tagore

16 + 2 romances de formação que devemos ler

Mortes de intelectual