Testemunha da glória e da tragédia
Por Ibon Zubiaur
Ilustração: Raúl Arias |
Federico García Lorca foi talvez o maior talento lírico e dramático do século
XX na Espanha. Apesar da lenda que durante muito tempo quis apresentá-lo como
um gênio inspirador, popular e espontâneo, seu estilo é altamente elaborado:
revisava constantemente seus trabalhos, demorava-se muito neles antes de
entregá-los para a impressão e nunca deu um discurso sem ter cuidadosamente escrito
o que iria falar. Sua maturação literária é lenta; e embora já em suas obras
da juventude mostre uma voz singular, pode trabalhá-la e modificá-la sem
grandes pressões. Isso porque, não é possível esquecer, Federico viveu quase
toda sua vida sob as asas dos pais.
Isto não é um motivo de vergonha. Constitui, sensivelmente, um privilégio que o
poeta granadino soube aproveitar para seu crescimento. Sua dedicação à escrita
foi empenhada e contínua; sua fidelidade a esta vocação o faz admirável e o
redime de outras características suas com frequência sublinhadas, como certo
infantilismo e uma vaidade reconhecível. Seja como for, a dependência econômica
foi um fator que marcou a vida de Lorca. Na correspondência com sua família o
tema reaparece de maneira regular e obsessiva, e alcança, em certas ocasiões dimensões
desmesuradas. Dotado de uma simpatia natural que parece ter sido arrebatadora,
Lorca consolidou sua carreira, quando apenas havia publicado e nem estreado, através de uma política de relações públicas tão sinceramente escolhida como calculada.
Uma carta de 1927, antes da estreia de Mariana
Pineda, justifica assim seus vultuosos gastos em Madrid: o autor está
fazendo vida de teatro, que “não é passatempo mas necessidade” (os sublinhados são de Lorca). “O dinheiro escorre de
minhas mãos como água. Eu não sou desperdiçador. Eu tenho que fazer agora por necessidade estas coisas”.
Todos estes gastos necessários se
deram até próximo ao início dos anos trinta e estavam a cargo de Federico García
Rodríguez, latifundiário de muitas terras e pai do poeta. Nascido em 1859 e
hábil capitalista, carregou também até sua máxima expressão um talento liberal e
solidário que vinha de família: generoso com todos, atento às necessidades de
seus trabalhadores, conquistou o carinho de seus vizinhos humildes na mesma
proporção que a inveja dos grandes caciques granadinos. Preocupou-se
demasiadamente e sempre que seus filhos (e suas filhas) estudassem; a vocação
artística de Federico não o agradou muito, mas nunca se opôs a isso e financiou
todos os seus passos. Pagou integralmente as primeiras edições dos primeiros
livros de Lorca, estabelecia relações com amigos cultos que o convenceram dos
dotes artísticos do rapaz. Consentiu que Federico passasse várias temporadas na
Residência de Estudantes em Madri enquanto continuava matriculado na Faculdade
de Letras de Granada. Inclusive em data tão tardia como 1929, alarmado pelo
estado anímico de seu filho, perguntou aos amigos sobre pela conveniência de
uma troca de ares: terminou pagando-lhe uma viagem a Nova York tão proveitosa
no sentido poético como devidamente inútil em sua recusa declarada (que era
aprender inglês). Só em 1934, na Argentina, e graças à estreia de suas obras,
que Lorca começa a ganhar dinheiro: envia então aos seus pais cifras
elevadíssimas e se apressa em dizer, com clara complacência, que “este dinheiro
podem, naturalmente, dispor dele, porque é de vocês, e mamãe e papai podem
gastá-lo todo se tiverem interesse. Mais que isto têm gastado vocês por mim”.
Os dois últimos anos da vida do poeta estão marcados pela crescente bonança econômica
e o prazer libertador (e em parte independente) de presentear com ela seus
pais. Mas também por uma nítida situação política. Em 18 de julho de 1936, dia
de S Federico, ocorre o golpe militar; os militares logo assumem o controle da capital
granadina. Notórios esquerdistas, amigos pessoais de Fernando de los Ríos,
livres de invejas e ódios direitistas, os García continuam a acreditar,
entretanto, que suas vidas, podem correr perigo; Lorca, sempre indeciso, descarta
fugir para a região republicana quando ainda é possível e isto será fatal.
Um
primeiro incidente muito violento se produz em 9 de agosto, quando um grupo de cedistas
(membros da Confederação Espanhola de Direitas Autônomas) e latifundiários
ressentidos com o pai do poeta invadem sua fazenda. Angelina Cordobilla, criada
de Manuel Fernández-Montesinos (prefeito de Granada e cunhado de Lorca, também
fuzilado), relataria logo depois dessa primeira investida; cito a partir de Ian
Gibson, que reproduz suas palavras com sua sensibilidade comum: “Vieram em busca
de um irmão do caseiro, um irmão de Gabriel. Vieram em busca dele e estiveram
sondando a casa dos caseiros e fizeram revista. Alguém de Pinos, de Pinos, era;
eles eram de Pinos. E logo Isabel, a mãe de Gabriel, e ele foram ameaçados com
a culatra da arma. [...] E então foram e bateram em Gabriel. Pegaram Isabel e
jogaram-na pela escada, ela e eu. E depois nos colocaram em fila no pátio da casa
para nos matarmos ali. [...] Chamaram o senhorzinho Federico de veado, chamaram
de tudo. E o jogaram também pela escada e o pegaram. Eu estava presente e ouvi
chamá-lo de veado. Ao velho, o pai, não lhe fizeram nada. Descompunham o
filho”.
Sempre que leio esta passagem, pesado testemunho, minha atenção se tem detém na
figura apenas esboçada, muda e triste, de Federico García Rodríguez. Ao velho, o pai, não lhe fizeram nada,
diz a velha Angelina. Descompunham o
filho. A sensibilidade e as evocações do relato são quase evangélicas.
Dificilmente cabe imaginar um dano mais grave, mais irreparável, afligido pelos
carrascos ao velho patriarca, que não se atreveram a tocá-lo. Federico García Rodríguez,
parece-nos revelar esta cena de tortura, devia amar profundamente seu filho
primogênito. A história não nos guardou sua versão. Mas aquele dia em Veja, o
prelúdio do assassinato do poeta, algo se rompeu no duro coração do fazendeiro
liberal.
O que segue é a história conhecida. Compreendendo por fim o perigo que se
aproxima, García Lorca se refugia na casa dos Rosales. Denunciado, como sabemos
agora, por um membro da família, é pego e fuzilado pouco tempo depois, apesar
das nada pacíficas gestões de José Pepiniqui
Rosales no Governo Civil. Durante muito tempo sua morte foi silenciada. É
compreensível. O crime, como toda atividade humana, admite muitas variantes. Há
assassinos austeros: a fascinação que em muitos ainda exerce o fanatismo
terrorista se explica seguramente pelo desinteresse com que leva as vidas
alheias. Há crimes cujas motivações miseráveis ou acrescidos de crueldade desnecessária
acabam repugnando até seus justificadores ideológicos.
O assassinato de Federico
García Lorca acolhe várias dessas características: muito conhecida é a
ostentação de um dos pistoleiros que dizia ter “metido dois tiros no cu do
veado”. Menos difundido é outro detalhe, que outorga uma continuidade dramática à tensa relação de dependência que o poeta manteve com seu pai. Federico García
Rodríguez havia passado meia vida pagando os gastos de seu filho. O destino, cuja
aleatória sorte pode mostrar as nuances do sarcasmo, o concedeu um golpe
póstumo por meio da singular vileza de seus assassinos. Por sua impecável precisão
e em homenagem a um pesquisador que não apenas tem recebido a acunha de ícone
martirológico mas acreditado em nossa memória coletiva, faço o retrato mais completo
e fiel de um grande autor velado durante décadas pelo zelo de críticos e irmãos
herdeiros e reproduzo também neste caso as palavras de Ian Gibson: “Naquele
mesmo dia chegou à casa da rua San Antón um membro do ‘Esquadrão Negro’ com uma
carta a Federico. Dizia, sensivelmente: ‘Te peço, papai, que a este senhor
entregues 1000 pesetas como doação para as forças armadas’. [...] Federico García
Rodríguez, acreditando que seu filho ainda estava vivo, desembolsou a
quantidade requerida. A cena foi observada pelo chofer da família, Francisco Murillo
Gámez, a quem os assassinos lhe diriam depois que acabavam de fuzilar o poeta
em Víznar, mostrando-lhe uma embalagem de cigarros Lucky roubada do cadáver.
Durante muitos anos Federico García Rodríguez carregou consigo aquele papel de
seu filho, como se o último autógrafo do grande poeta”.
* Este texto é uma tradução de " Federico García Rodrígudez", publicado em Letras Libres.
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