Quando a conjuntura me força a rever um ponto de vista


Por Rafael Kafka



Um aluno me entrega uma atividade em minha mesa. Era uma interpretação de texto de dois textos – uma HQ e um trecho de um ensaio – sobre a colonização brasileira e as políticas escravagistas. Não consigo entender bem sua letra, mas percebo que suas palavras possuem relação com um pensamento não concretizado em frases com lógica. Minha melancolia cresce:

– Deverias cuidar mais de tua letra. Não consigo entender o que escreves aqui.

O aluno volta para o lugar nitidamente intimidado. Percebo, então, que passei o dia todo lidando com situações que estavam me minando. Sem querer, descontei em um aluno e percebi que acabei descontando em alguns outros, fazendo discursos tolos cheios de moralismo e me irritando facilmente em situações que em outros contextos resolvo rapidamente.

Não sei se isso tem alguma influência com a tentativa de reduzir o café iniciada por mim nos últimos dias. Mas olhar para a caligrafia de um aluno e perceber suas dificuldades em escrever me deixou profundamente irritado. Prefiro esse termo a desesperançado. E irritado não com ele, mas com todo um conjunto de variantes sociais. Mas a melancolia naquele momento me fez me irritar com um jovem que ainda está começando a vida e que pode entender minha reprimenda em tom seco e discreto, mas ainda assim uma reprimenda, como um processo de aumento de sua desmotivação.

Fiquei a pensar como deve ser a vida desse aluno. Provavelmente, oriundo de família pobre, sem acesso à leitura, sem motivação para estudar, mais uma vítima de uma cultura cada vez maior de depósito de estudantes nas escolas por dado número de horas do dia. A educação bancária parece ganhar mais forças com o sucateamento da educação pública e atinge uma dimensão muito bizarra e curiosa. Na greve dos professores de Ananindeua, uma pessoa conhecida minha que tem um número considerável de filhos me mandou mensagem perguntando sobre quando a greve acabaria. Segundo ela, as crianças estavam com saudades da escola.

Já ouvi muitas histórias de famílias que simplesmente odeiam ter de aturar os filhos em casa. Os meses de férias e períodos de feriados prolongadas em sequência são os maiores tormentos. Há pais inclusive que usam esse argumento quando vão matricular os filhos.

– A conta de luz esse mês veio altíssima! Preciso colocar esse moleque na escola. O senhor vai pagar essa conta? diz uma mãe revoltada ao diretor de uma instituição já sem vagas. Ela provavelmente irá a algum órgão lutar pelo justo direito do filho estudar, mas esse estudar é algo muito vago. Ele cumprirá alguns anos indo à escola, fingindo que aprende algo, tendo carência em diversos pontos de sua existência e depois tendo de se contentar com algum subemprego. A culpa não é da mãe. Ela é apenas um reflexo de uma sociedade que valoriza demais o ato de ter filhos e pouco o ato de se prevenir e que quando crianças nascem percebem o quanto elas dão trabalho e exigem paciência, amor e recursos.

Cada vez mais, as escolas se mostram espaços nos quais as crianças são jogadas por um curto espaço de tempo. O objetivo é tão somente descansar um pouco dessas crianças. Cada vez mais, infelizmente, professores são forçados a lidar com uma série de problemáticas oriundas de problemas familiares que desaguam nas escolas afetam profundamente o processo de ensino aprendizagem. Quando questiono aos alunos por que eles estão na escola, geralmente sinto um desejo de muitos em falar “por ser obrigado por meus pais”. Alguns, na verdade, falam isso. Se tivesse a chance de perguntar aos pais qual a razão de colocarem os filhos na escola, receio que muitos diriam que as coisas são assim e por isso eles fazem desse jeito. E pelo descanso também.

O sucateamento da educação pública afeta nossa sociedade de uma forma muito intensa e diversificada. Inclusive na falta de planejamento familiar. Aquele garoto bem provavelmente está sozinho e eu falar o que falei, no auge do cansaço, talvez tenha elevado a sua sensação de solidão, de desamparo. Voltei para casa com o pensamento inquieto, querendo dormir, apagar, esquecer tudo por um bom tempo. Conversando com pessoas próximas, citei esse problema e citei que muitos alunos meus são incapazes de entenderem uma mensagem simples como um comando de uma questão. Uma me sugeriu trabalhar com eles a leitura em sala de aula de obras literárias, usando questões na prova e resumos críticos como métodos avaliativos.

Lembrei de críticas ouvidas dentro de matérias e grupos de pesquisa e extensão pedagógicos sobre como a escola é uma instituição similar a uma prisão e como regras avaliativas em si são nocivas ao verdadeiro, em especial ao ligado à leitura. Basicamente, há em mim uma profunda resistência em usar a leitura como forma de critério avaliativo, pois não há nesse processo muito do convite ao hábito de ler. O mal do academicismo é que ele se configura em ouvirmos verdades dentro do âmbito da universidade que muitas vezes se aproxima mais de um dever-ser do que da realidade em si. Pensei na cena de Servidão Humana na qual Philip adquire o hábito de leitura: ele está rodeado de livros, é apresentado a eles pela tia e começa depois a ler sozinho. Meus alunos são Philips sem tias mediadoras de leitura. Não tenho uma realidade ideal diante de mim e preciso fazer algo para colocara leitura dentro da vida dos meus alunos, por mais que os manuais pedagógicos de quem acha que pode ensinar estratégias de leitura, mas provavelmente lê pouquíssima ou quase nenhuma literatura diga ser isso errado.

Dei o braço torcer. Por mais que ansiedade me assuste a ler várias vezes as mesmas coisas, escolhi livros com base em gosto pessoal, sugestão e uma lista pega na internet. Lerei semanalmente com meus alunos, pedirei textos escritos sobre suas impressões de leitura e em nossas avaliações eles usarão esses livros para exercitar sua interpretação e entendimento da gramática. Se isso é o certo, não sei. Mas sei que me senti com vontade de voltar ao trabalho e tentar novo.

Comecei A revolução dos bichos com dois nonos anos meus. Lemos o primeiro capítulo inteiro em 45 minutos, tecemos alguns comentários sobre o tom profético de Major e os elementos de fábula da novela. Depois, em uma das turmas nas quais eu tinha duas, começamos a debater um artigo de opinião ironizando defensores de uma parada do orgulho hétero. Foram duas das melhores aulas ministradas por mim nos últimos tempos. Como meus alunos não têm condições de comprar livros, até por serem alunos de escola pública e por direito deverem ter esses livros em nossa sala de leitura, usei os celulares deles o projetor da escola para difundir as obras em formato digitalizado, o que garantiu a eles amplo acesso à leitura.

Voltei para casa pensando em como não sei bem lidar com minha liberdade. Na escola pública, há goteiras na sala de aula, mas a possibilidade de debater, de enfrentar, de discutir. Tenho uma coordenação que apoia o trabalho, pois falar de leitura sempre é bom. Por que não me propus antes a fazer isso? Não sei se estava inebriado pela preguiça e pelo conformismo, com a revolta com gestões políticas irresponsáveis e sucateadoras. Não sei. O que sei é que ler para meus alunos hoje reacendeu um pouco da esperança em mim. No fundo, a minha melancolia era um alerta de minha consciência me dizendo que algo precisava ser feito, mesmo que as pessoas as quais entende demais de estratégias de leitura digam o contrário.

Para mim, o mais importante é que os jovens leiam e sintam algum prazer para mim. Se tiver de usar isso como método de avaliação, enquanto leio para eles para aliviar um pouco dessa carga, farei isso. Afinal, pelo menos por ora, não estou ainda em um mundo ideal e me irrita ver alunos longe do prazer mais libertador que alguém pode ter na vida.

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