Outra mulher na vida de Cervantes
Por Jesús Ruiz Mantilla
Ilustração de Vania Mignone para Novelas exemplares de Cervantes (Cosac Naify, 2015) |
No interminável jogo de disfarces e miragens que é a vida de Miguel de Cervantes,
Andaluzia aparece como um poço onde há muito o que escavar. Foi na prisão de
Sevilha onde ficou por alguns meses por um excesso de confiança num usurário
que começou a imaginar o Quixote. Parou
pelo sul quando decidiu deixar sua família em Esquivias, município na província
de Toledo, para buscar a vida numa metrópole mais excitante que aquele povoado
rural, onde chegou em busca de dinheiro e mais alegria.
Foi um mago das letras, mas também dos números. É o que aponta Jordi Gracia na
mais sólida biografia aparecida entre as novas incursões sobre a vida de Cervantes.
As duas aptidões eram seu prazer, sua realização e sua sobrevivência. Foi comissário
e arrecadador real no interior da Espanha. E o que encontrava nas diferentes
viagens ao longo de toda Andaluzia servia de inspiração para seus diversos
livros. Mas, sobretudo, desse manual de viagens e bestiário, os elementos
fundamentais da novela total que é o Dom
Quixote. Entre suas paragens encontra-se a de Puebla de Cazalla, a uns 70
quilômetros de Sevilha.
Por ali também passou e há anos segue as pistas de Cervantes José Cabello,
arquivista do povoado. Graças a isso chega-nos as últimas novidades biográficas
mais significativas sobre o autor espanhol. Em sua simples e escura seção da biblioteca
municipal, Cabello trata de desvendar e compreender algumas pistas. Faz isso ao
mergulhar nos arquivos que guardam documentos carcomidos pelo tempo – e raros –
em que estão registros da passagem de Cervantes pela região. Andou por aí entre
o dia 21 de fevereiro e 28 de abril de 1593. Sua obrigação era arrecadar trigo
para fazer biscoitos. Não no sentido atual – eram broas de farinha que não se estragavam
para alimentar soldados durante as longas viagens.
Os
habitantes de Cabello, ao que parece, foram solidários. Cervantes recolheu aí e
aos arredores 998 cuias de trigo recebeu 19.500 maravedíes. Não existiu
enfrentamentos nem incidentes a serem relatados como aconteceu noutras localidades
onde ele mesmo ordenou a prisão de até mesmo sacristães. O que aconteceu em Castro
del Río, onde quiseram denegri-lo sob a acusação de venda ilegal de trigo. Em Cabello
também não preciso fazer frente a motins e revoltas. Apenas foi se cansando por
suas idas e vindas a lombo de mula e arrecadando a maior glória do império de
sua majestade e vendo a miséria de seus súditos.
Sua missão estava entre as mais ingratas, como conta Andres Trapiello em As vidas de Miguel de Cervantes: podia
ordenar prisões e embargos, sequestros de bens, apreensão de bagagens, carroças,
multar corregedores, pagar arrieiros, carroceiros, correios, escrivães. Mas o
pior era que – apesar de ser decente o que se fazia – não se dava um cêntimo de
aumento ao seu salário.
Uma das
melhores maneiras de escavar esses poços escuros da biografia de Cervantes consiste
em se aproximar daqueles que o rodeavam. Cabello, além de seguir os passos do
escritor, seguiu os de seu círculo mais próximo em Andaluzia. E assim chegou a
uma pista das mais interessantes. Quando não cobrava adiantado, na hora de
fazê-lo devia mostrar confiança cega em alguém que o faria por ele. Assim foi
que se encontrou com o seguinte: “Que fazia uma mulher de nome Magdalena
Enríquez, tendo 19.200 maravediés associados ao seu nome e com um notório
poder?”
Aparece então uma peça-chave, uma pessoa desconhecida até agora, na vida de Cervantes.
É o que revelam os documentos encontrados por Cabello no Arquivo das Índias de
Sevilha e os que Jean Canavaggio, citando-os, alude na revisão que faz de sua
biografia canônica. Mas o pesquisador sevilhano tem se perguntado desde então
se era esta mulher alguém fascinante, por que aparece como uma gota d’água no oceano
que é sua vida e sobre a grande confiança que existia entre os dois. Morava na
rua Bayona, que dava para as portas do prostíbulo. Era biscoiteira. Fabricava
grandes quantidades para a guarda.
Controlava ou ao menos tinha acesso aos números de Cervantes. Mas há algo que também
a conecta com as letras e induz a pensar ainda mais numa íntima proximidade: “Em
1952 sua assinatura indica que era praticamente analfabeta”. Um ano depois assina
documentos com uma caligrafia cristalina. A pergunta de Cabello é quem teria
sido seu professor.
Magdalena controlava um grupo de biscoiteiros, bem colocados pelas altas
provisões que recebiam da guarda. Era de confiança entre alguns dos mais importantes
na região como Cristóbal Bermúdez, que lhe dá poderes para fazer negócios. Era uma
especialista em cobranças. Viva, perspicaz e eficiente. Foi casada aos 11 anos com
um homem com quem teve sete filhos e que anos depois descreveu como velho e
pequeno. Casou-se novamente com Francisco Montesdeoca, também hábil em fazer
dinheiro. Mas em âmbitos diferentes. Além do pão, tinha navios, boticas e um
prostíbulo. As revelações são de Cabello.
É assim que Magdalena Enríquez irrompe numa das biografias mais enigmáticas e
fascinantes da história da literatura universal. Outra mulher que se acrescenta
à lista de um homem que se encontrava mais à vontade entre elas que com os de
seu mesmo sexo.
* Este texto é uma tradução de "Otra mujer en la vida de Cervantes", publicado no jornal El País.
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