O livro pequeno mais longo do mundo
Por Kiko Amat
Alice
Otterloop é a protagonista da tirinha cômica Cul-de-Sac. Ela gosta de dançar sobre tampas de bueiros, mas em certa
ocasião fica presa num deles “durante dias”, rodeada por um mar de lama.
Quando sua mãe a resgata, no último quadrinho, descobrimos que na verdade só se
passaram 15 minutos. A angústia do confinamento é relativa à passagem do tempo
em seu relógio interno. Cada segundo se transforma em uma hora.
Ler Cândido de Voltaire é uma
experiência semelhante. E nem sequer se pode fazer o que fez John Carey em Paraíso perdido de John Milton quando
editou a obra para o leitor moderno sem a retórica enfadonha ou a digressão embaraçosa
preservando apenas as passagens mais importantes – uma solução que, também, valeria
muito para Moby Dick. Isso porque o
livro é muito pequeno: uma tacada de cento
e poucas páginas insignificantes que, sem dúvidas e segundo avançamos, nos trai ao se mostrar em forma da Grande Enciclopédia Catalã, lida de A-Ami a U-Zw. Qual é sua estratégia? Fácil. Esbelto e de enxuto perfil em combinação com uma auréola de “rebeldia”
inatingível. Por ser fininho, francês e ter fama de gracioso, abrimos este
livro confiando-lhes a porta de nossa morada, pensando que uma vez na vida ler
um clássico nos proporcionará uma noite de gozo. Só então, quando o francês já
tomou assento na chaise longue, descobrimos
que está envolto em cintas, que sua única “rebeldia” é sua paixão por cantar “Bajo
la luz de la luna” em karaokês, que a
garrafa de vinho traz gasolina e também ele mesmo pensa em bebê-la, depois de nos
dizer, gaguejando, detalhes pesados como as consequências traumáticas do divórcio
de sua ex (a quem ainda ama).
Falemos em sentido figurado, se lhe parece. Cândido,
de François-Marie Arouet, aliás Voltaire, é, segundo dizem alguns “um dos
grandes clássicos de sucesso da literatura ocidental”, ou, um dos livros mais trabalhosos
que vocês, leitores modernos, podem encharcar seus neurônios. Voltaire escreveu este livro pouco depois do terremoto de Lisboa de 1755 (que dizimou a vida de milhares de
pessoas) e pretendia ser uma crítica do otimismo em geral e mais concretamente
do “determinismo otimista” de um cavaleiro chamado Gottfried Leibnitz (quem afirmava
que vivíamos no “melhor dos mundos possíveis”).
Voltaire goza de fama contestatória e de “atirar contra a ordem estabelecida”,
mas tudo aponta que, no contexto do Iluminismo, era como o avô – ou cunhado – de
direita, que sempre acaba com a comida na ceia de Natal. (Diderot e D’Holbach,
os genuínos punk rock do Iluminismo, não tinham um conceito sobre Voltaire. Atribuíram-lhe
apenas algumas bugigangas para a Encyclopédie e se negaram a apresentar cumprimentos
ao “bruxo” em seu exílio suíço). Bom, quando jovem soltou faíscas um par de
vezes com Felipe I, Duque de Orleans e monarca da França, o que custaria duas
prisões na Bastilha. Essas duas sentenças brandas assim como seu desterro cool em Londres (não na Guiana Francesa),
o converteram numa estrela do radical chic
do século XVIII, atribuindo-lhe esse lucrativo halo do artista revoltado
que “não esconde as verdades”. Voltaire considerou prova superada aqueles
breves anos de revolta juvenil e, como Bono do U2, dedicou o resto de sua vida
a confraternizar-se com a realeza e o clero e assim se converte num homem “imensamente
rico” (segundo o historiador Philipp Blom). Não é exagero: Voltaire era um inteligente
investidor que em 1782 chegou a comprar, com alguns quantos amiguinhos yuppies da época, todos os boletos existentes da loteria francesa. Ganharam, naturalmente.
Voltaire multiplicou aquela fortuna – torrada com futilidades – atuando como
banqueiro pessoal de várias monarquias absolutistas da Europa, o que lhe daria
uma diversidade de benefícios adicionais. Como vêm, o muito falar de “esmagar o
infame” (seu lema pessoal) logo o leva envolver-se com os primeiros latifundiários carcomidos pela gota que lhe aumentavam a comissão. “Não era um revolucionário nato”,
afirma Blom. Não mesmo.
Por outro lado, era outra a época. O poema épico anglo-saxão Beowulf foi escrito para glosar os talentos
de um sujeito dado a violência sobre quem a única coisa boa que se pode dizer é
que “nunca matou seus amigos quando estava bêbado”; isso talvez, para os
padrões do século XXVIII, torna Voltaire numa espécie de perigoso Black Panther
literário (não o Banco de Sabadell que vemos). Em qualquer caso, a reputação de
Cândido não se apoia na personalidade
do autor, mas sobre quatro mandamentos que a cultura nos forçaria a aceitar sem
recusas: 1) Cândido explica o mundo
atual; 2) é uma grande comédia satírica; 3) perfeito “antídoto contra o otimismo”
e 4) “clássico em miniatura”. Três dos argumentos enunciados são falsos, e,
apenas um é certo.
Comecemos pelo
mais comum, que é a pertinência de Cândido
na qualidade de oráculo e desvelador do mundo presente. A realidade é muito
diferente: Cândido é tão moderno como
alguns tipos de calçados. O livro é uma lista de animais extintos escrito numa
língua morta e financiada com a repartição de um império desaparecido (coroas
austro-húngaras, ou algo parecido). Todas as referências da obra são abstrusas
e fósseis, como também são os microfeudos que detalha, sepultados sob a implacável
força do tempo séculos atrás. Ler sobre isso hoje é como revisitar aquele truque
entre Limp Bizkit e Rage Against The Machine nos MTV Music Awards de 2000: algo
que não importa mais para ninguém,
nem mesmo aos envolvidos. Quando chegamos ao final do livro nos sentimos como
se tivéssemos psicanalisado um trilobite que não falara com os ortoceróides do seu
galinheiro.
Para extrair
algum tipo de prazer o leitor de Cândido
talvez tenha que ser o tipo de pessoa que, como afirmava Nick Hornby, ainda está
ressentido com os leibzinitas de 1750. Alguém que tem contas pendentes com Abbé
Guachet, os jansenistas, Pierre Corneille ou a Ordem dos Clérigos Regulares. Alguém
para quem a frase “muitas vezes eles viam passar em frente às janelas dos
barcos da fazenda carregados com efendís, bajaes, de cadís, para os quais
exilados eram enviados para Lemmos, para Mitilene, para Erzerum” não sonha com
a sonolência de um velho em seu leito de morte. Alguém, em resumo, que cursa ou ensina numa
pós de Literatura Comparada.
Não, se o que buscam são explicações sobre o mundo atual vejam Black Mirror. Ou Futurama. Não batam à porta de Voltaire, que a única coisa que fará
será olhá-los com a careta de demente que fazem os velhos ao usar um smartphone. Cândido é tão ultrapassado que o leitor se vê obrigado a consultar as
notas apresentadas a cada duas frases, num movimento que acaba causando uma
dolorosa luxação do pescoço, para não dizer um inchaço nos olhos. Depois de
várias páginas de misereres, autos-de-fé, castratis,
papos ignotos, poetas desconhecidos e países apagados da face da terra, tudo
isso envolto num vistoso laço de decrépitas ojerizas entre correntes intelectuais
corroídas pelas traças e críticos embalsamados, o leitor começa a suspeitar que
o desfrute do livro é algo exclusivamente de universitários, como os posters de
Blue Velvet ou o pós-estruturalismo.
Vocês talvez
me acutilem, embora nada do impenetrável mundo de Voltaire tenha a menor relevância
hoje em dia; em última instância podemos salvar os móveis com a sátira. O
problema com a sátira, como também disse Nick Hornby, é que “sempre foi decodificada
antes que chegue a nós”. É impossível ler 1984
ou Gargântua e Pantugruel sem ter a impressão
de que algum desprevenido deixe escapar um spoiler.
Cândido não é uma exceção: antes de
abrir o livro conhecemos sobre seu roteiro (moço de coração sensível, Cândido, e seu tutor otimista, Pangloss,
percorrem o mundo para descobrir que são como uns burros), como também nos
são familiares as quatro generalidades da grande angular que extraímos de suas
páginas: os governantes são corruptos; as religiões se aproveitam da candidez
do povo; o homem é violento por natureza; o mundo fede.
Essa característica
não está presente apenas em Cândido.
As alegorias político-sociais soam tão apagadas de gravidade e “mensagem” que nos
levam a nada. Conscientes disso, os autores de sátira se esforçam em acrescentar
algum açúcar à remédio amargo que nos dão. Falo, claro está, das brincadeiras e
da aventura. Só que neste livro as brincadeiras são uma birra e a aventura uma
fraude. A graça recorrente do livro (soltar “Ah! O melhor dos mundos!” quando acontece
uma desagraça, como por exemplo o desmembramento de Cunegunda depois de ser violentada
“como uma mulher pode ser”) não tem muita graça, nem mesmo a primeira vez, e
até à quarta o leitor só deseja que alguém golpeie Voltaire tanto como um homem
pode ser golpeado. Esse cântico de enumeração de desditos e frases bumerangue é
quase tão cansativo como a canção das garrafas verdes na parede que se canta
nos ônibus escolares. Ao lê-lo sofri angustiosos flashbacks aos Um, dois,
três, responda outra vez onde Bigote Arrocet ou La Bombi soltavam, semana após
semana, o mesmo p*** estrondoso na mesmo p*** de lugar”.
No tocante à
aventura, digamos que Voltaire se inspirou noutra grande obra satírica de seu
tempo, a fenomenal As viagens de Gulliver,
mas perdeu pelo caminho todos os mecanismos literários básicos de criação de
ritmo, trama ou perfil das personagens que fazem de sua predecessora a maravilha
que conhecemos. Cândido pode ser um
livro de crítica literária, se quiserem, ou um Excel das máquinas de luta do
autor (não carente de valor histórico), mas não é um livro de aventuras. No capítulo
XXI, por exemplo, as personagens e a narrativa são torpes escusas unidimensionais
da espessura de uma chuva do Dia dos
Inocentes, para que Voltaire se ponha a cantar a defensiva em modo Ye-Ye-Ye, razões
porque Virgílio, Milton ou Cícero agradam e seus detratores são uns ignorantes com
boina. Não é a inesquecível chegada de Lemuel Gulliver à costa de Liliput,
garanto.
E o otimismo? Cândido, é uma diatribe
pessimista. Muito ad hoc. O que acontece
é que alguns já nos levantamos a cada manhã com algumas premonições de armagedon
nada “panglossianas” no esôfago. O último que necessitamos, graças, são recordatórios
de que tudo é uma porcaria. E acabamos com a ideia de “clássico em miniatura”:
Cândido não tem pinta de tosco, mas veja:
é o tipo delicado que não parece grande coisa e logo lhe quebra os queixos. Aconselho
não subestimar seu tamanho, porque até à página 70 estarão chorando, de cabelos
grisalhos e bexiga incontinente, mas é só uma metrópole povoada unicamente por
robôs, depois se dar conta de que sua vida inteira se consumiu como uma bateria
de celular e Cândido nem sequer está
na metade do caminho.
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