O fracasso de escrever

Por Manuel de Lorenzo


Liev Tolstói, autor do gigantesco Guerra e Paz


Sempre pensei que há algo de aberrante em escrever. Em tentar passar para o papel uma história. É uma dessas coisas que nunca, jamais, saem como se quer. Assemelha-se, suponho, a criar um filho ou plantar um jardim. O texto sempre parece ir dizendo seu próprio caminho à margem da vontade do seu autor. É um processo utópico e infeliz. Repleto de insatisfações. O escritor nunca consegue estar à altura de suas próprias aspirações. Do que esperava de si mesmo como autor. Por isso, escrever é, sobretudo, fracassar. Fracassar uma e outra vez com a absurda esperança de não morrer na tentativa de vencer algum dia. Como se Sísifo tivesse alguma possibilidade de alcançar no futuro o alto da colina.

Philip Roth escrevia em Pastoral americana sobre uma conversa entre as personagens Nathan Zuckerman e Jerry Levov em que este comenta que “a sala de cirurgia transforma a gente em uma pessoa que nunca está errada”, acrescentando que é muito parecido ao ato de escrever. Zuckerman o corrige: “Escrever transforma a gente em uma pessoa que está sempre errada. A ilusão que a gente tem de que algum dia pode vir a acertar é a loucura que nos empurra para adiante”. É difícil compreender como alguém pode ser tão consciente de sua própria realidade e, ao mesmo tempo, escrever vinte e sete romances, meia centena de contos, algumas dúzias de ensaios e dois livros de memórias. Imagino que, no fim de contas, e focando a partir de uma perspectiva adequada, o fracasso pode ser uma das chaves mais importantes do êxito.

Por isso me parecem tão admiráveis esses autores que um belo dia decidem que fracassaram bem, que fracassaram, talvez, o melhor que sabiam, e abandonam sua carreira literária com apenas um ou dois títulos. Escritores que, depois de um fracasso magnífico, compreendem que não há mais necessidade de continuar tentando. Porque assumiram que é impossível acertar. Como Juan Rulfo, quem depois de compor algumas narrativas curtas escreveu Pedro Páramo e se deu conta de que, se isso não era suficiente, também não podia fazer nada mais. Algo parecido também aconteceu com J. D. Salinger, quem, depois de publicar O apanhador no campo de centeio, sentiu que era um fracasso muito suficiente para não voltar a provar dessa fortuna nos cerca de sessenta anos que ainda restavam por viver. Ou Luis Martín-Santos, quem seguramente suspeitava que, se escrever era sobretudo fracassar, dificilmente poderia fazer melhor que com Tempo de silêncio.

Se, depois de aceitado que escrever “transforma a gente em uma pessoa que está sempre errada”, devo reconhecer que me parecem ainda mais admiráveis os que tomam a determinação de não cessar em seu empenho e decidem ir com tudo, como se a vitória final fosse uma questão de disparar mais balas. Ocorre-me, por exemplo, quando revisito a obra de Benito Pérez Galdós e me encontro com uma produção imensa, quase impossível de abordá-la, formada por oitenta romances, vinte e cinco obras de teatro, meia centena de contos e uma dezena de ensaios. Ou a de Isaac Asimov, quem, entre obras de não-ficção e obras de ficção – divididas estas entre o gênero fantástico, a literatura de mistério e a ficção científica –, escreveu aproximadamente quinhentos livros. Ou a de Daniel Defoe, quem praticamente iniciou sua carreira como romancista aos sessenta anos com Robinson Crusoé e terminou escrevendo mais de trezentas obras. Uma cifra da qual também se aproximou Georges Simenon, quem dividiu sua produção entre as aventuras do célebre comissário Jules Maigret e outros cento e vinte títulos de menor êxito que, por desgraça, para Maigret e para a própria autoestima de Simenon, ele próprio considerava como seus “romances sérios”.

Pierre Assouline conta em Simenon, Maigret encontra o seu autor que certa vez Alfred Hitchcock quis entrar em contato por telefone com Georges Simenon. A pessoa que atendeu a chamada, por sua vez, explicou que nesse momento o escritor não podia atendê-lo, já que estava muito ocupado. “Acaba de começar um novo livro”, disse. Hitchcock, imediatamente, respondeu: “Não se preocupe, espero na linha”. Há autores capazes de concentrar a produção de um número tão elevado de obras em tão pouco tempo que dão a sensação de construir romances inteiros em questão de horas. Durante o último quarto século, César Aira tem publicado em média três livros por ano, somando já um total de noventa títulos entre romances e peças de teatro, aos que haveria de acrescentar todos os seus artigos e algumas dúzias de ensaios. O acordo editorial entre Julio Verne e seu editor Pierre-Jules Heztel – editor, também, de Victor Hugo – obrigava o autor francês a entregar dois e, em determinadas ocasiões, até três romances por ano à editora. Guy de Maupassant escreveu seus mais de trezentos contos, seis romances, seis obras para o teatro, três livros de viagens e uma antologia de poesia em apenas seis anos. O caso de Lope de Vega é tão inverossímil que me causa certo pudor mencioná-lo.

Mas nisto de grande fracasso com a literatura podemos encontrar, ao longo da história, um bom punhado de autênticos heróis. A escritora britânica Bárbara Cartland, uma das mais célebres do Reino Unido durante o século XX, não só escreveu setecentas romances durante quase cem anos de vida, mas ostenta o recorde da maior quantidade de livros escritos num só ano: nem mais nem menos que vinte três, quase um por mês. Sua compatriota Enid Blyton, criadora da saga Os cinco também publicou mais de setecentos cinquenta romances, mas neste caso destinadas ao público juvenil – seja o que for isso. O estadunidense Lauran Paine chegou a publicar, com vinte pseudônimos diferentes, aproximadamente mil romances. Uma quantidade da qual também se aproximou o escritor e coronal do exército Prentis Ingraham, versando em dúzias delas sobre a figura de Buffalo Bill. Mas talvez nestes casos seja justo reconhecer que, tratando-se de romances sobre o Oeste, a coisa tinha um truque: a maioria se limitava a repetir o mesmo plano de enredo variando as situações e as personagens principais. Um sistema muito utilizado também tanto no caso dos romances românticos como na pulp fiction.

E dos primeiros não há dúvida de quem ostenta o trono: a asturiana Corín Tellado. É certo que a maior parte de sua obra se compõe de romances simples e muito breves, de um corte muito concreto. Mas seria um tanto insolente não sublinhar o mérito de uma mulher capaz de escrever mais de quatro mil livros. Entre os anos 1946 e 2009 – isto é, desde quando publicou seu primeiro romance até o momento em que morreu – escreveu tanto que ninguém sabe realmente o número exato de obras que escreveu. Em 1962, a UNESCO declarou a escritora espanhola mais lida depois de Miguel de Cervantes. E três décadas mais tarde, em 1994, o Livro Guinness a reconheceu por fim como a autora mais lida em língua espanhola. Uma distinção que soma-se aos mais de quatrocentos milhões de exemplares vendidos.

Mas se há um nome capaz de pulverizar qualquer recorde, um escritor entregue à causa, um autor convencido de que o fracasso de escrever só pode conduzi-lo ao êxito, esse é o brasileiro Ryoki Inoue, considerado hoje em dia pelo Livro Guinness como o escritor mais prolífico do mundo. Aos quarenta anos decidiu abandonar sua carreira de médico para se dedicar à literatura. Passaram-se trinta anos desde então e Inoue já publicou cerca de mil e cem romances, sobretudo policial, de faroeste e pulp fiction. O mercado chegou a saturar ao ponto de os editores obrigarem a publicá-lo usando pseudônimos – quarenta diferentes. Houve um momento em que 95% de todos os livros de bolso publicados no Brasil eram escritos por ele.

Ryoki Inoue chegou a escrever, literalmente, um romance por dia. E mais, no caso de algumas obras românticas, foi capaz de escrever até três num dia; um pela manhã, outro pela tarde e um terceiro à noite. Sua escrita, de caráter quase automático, tão compulsiva que destroça um teclado por semana. O jornalista do Wall Street Journal Matt Moffett, como é natural, não acreditava que alguém pudesse escrever um livro inteiro em apenas algumas horas, assim que visitou a casa do autor para comprovar que isso é possível. Um dos romances mais conhecidos do brasileiro, Sequestro fast food, foi escrito diante os olhos de Moffett, entre as onze e meia da noite e as quatro da manhã. E ficou documentado.

Com os anos Inoue decidiu que havia chegado o momento de mergulhar noutro tipo de literatura, de cortes mais elaborado, assim que diminuiu seu ritmo de produção a seis romances ao mês. Ainda assim, nenhum editor conseguiu publicar seus romances num formado de melhor qualidade e prescindindo de seus pseudônimos, já que seria um suicídio editorial publicar meia dezenas de romances do mesmo autor todos os meses. Inoue quase tardava menos em escrever um romance do que seus leitores levavam para lê-lo. Atualmente, aos setenta e um anos, continua escrevendo.

A fecundidade literária de Ryoki parece, portanto, dificilmente superável. Talvez, só uma vez existiu alguém capaz de produzir mais páginas que o brasileiro. Uma mente privilegiada. Um talento criativo tão descomunal que seu gênio só pode comparar-se com seu amor pela liberdade: o que fora Grande Líder da Coreia do Norte, assim como seu fundador ideológico, Kim Il-Sung, quem, segundo seus biógrafos, escreveu mais de dezoito mil livros ao longo da vida.

Na reportagem de Jon Sistiaga, “Coreia do Norte: amarás al líder sobre todas las cosas”, o jornalista pergunta a um dos porta-vozes do regime se é possível um homem sozinho publicar tantos livros, ao que este responde que não é apenas possível como é todos são muito bons. Quando Sistiaga lhe pede que explique como alguém pode alcançar semelhante cifra de publicações, o estadista diz: “É que era mais genial”. É uma pena que no resto do mundo não possamos desfrutar da sabedoria de Kim Il-Sung concentrada em todos esses volumes. Que lástima que ninguém tenha tido a ideia de exportá-los. Isso sim que é um verdadeiro fracasso e não o do pobre Philip Roth.

Ligações a esta post:

* Este texto é uma tradução de "El fracaso de escribir" publicado no Jot Down El País.

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