Nos vemos no paraíso, de Albert Dupontel
Por Pedro Fernandes
Pierre Lemaître é um romancista recém-descoberto entre os leitores brasileiros.
Até o presente uma pequena parcela de seus livros ganhou tradução por aqui; seu
romance premiado no Goncourt de 2013, Au
revoir là-haut, é base para o roteiro do filme de Dupontel que no César de
2018 arrebatou cinco premiações, incluindo Melhor Adaptação. De forte traço
romântico a Alexandre Dumas, a narrativa parece querer ressignificar o mito
francês do Homme au Masque de Fer
apresentado pelo romancista no último capítulo da saga Os três mosqueteiros. Preso sob o nome de Eustache Dauger, esteve
por mais de três décadas em várias prisões francesas, incluindo a Bastilha e a
Fortaleza de Pignerol. O dilema sobre sua identidade serviu na construção de
todo o imaginário que lhe cerca; e terá sido Voltaire, antes de Dumas, quem
melhor contribuiu para tanto ao registrar em 1771 na segunda edição de suas Questions sur l’Encyclopédie, que o tal
prisioneiro era, na verdade, o irmão mais velho e ilegítimo de Luís XIV – e é como
tal que se apresenta no romance do final dos anos 1840.
Os traços do mito se mostram em Nos vemos
no paraíso sob o mesmo dilema da identidade. Em novembro de 1918, dias
antes do Armistício, Édouard Péricourt é salvo pelo soldado Albert Maillard. A
relação inexistente dos dois, apesar de lutarem no mesmo lado do front ganha os contornos contrários desde então. Ao descobrir-se
salvo, todo o passado do jovem volta a lhe servir de fantasma por suspeitar que
precisará passar novamente pelo mesmo crivo
mandatário do pai. Quer dizer, a guerra, apesar de todos os males e da iminência
do fim, dera a Édouard a liberdade para realizar seu projeto de vida, que foi
sempre o de se dedicar à pintura, talento negado pelas ordens do pai que o quis
criatura à sua imagem e semelhança – ele que com perspicácia e dureza conquistou
a cadeira de presidente da França.
Acontece que Albert é o veterano de guerra cuja coragem e dedicação passam
despercebidas à luz de qualquer reconhecimento, logo, tem ciência de que o único
feito realmente importante, que justifica inclusive para si o talento ausente
do herói é a salvação de Édouard. Ao descobrir que este seu grande feito pode
resultar num grande fracasso, uma vez a sobrevivência não ser, de maneira
alguma, a grande satisfação de Édouard, todo o esforço do novo amigo significará
a lutar por mantê-lo vivo. Nessa ocasião inicia-se o apagamento de sua
identidade ou a imersão num limbo marcado pela presença de um morto em vida
entre os vivos.
O tema da ocultação do eu, da busca do outro, no escuro, por descobrir a
identidade que se oculta – formas do mito antigo do Homem da Máscara de Ferro –
dilui-se de igual maneira, isto é, qual o aventuresco de Alexandre Dumas, entre
uma narrativa que envolve ação, denúncia e divertimento, muito embora vigore o
tom melodramático da vingança e da reviravolta em que a vítima supera, ou pelo
menos, alcança acertar as contas com os malvados. Ou seja, a história, repleta
de meandros e reviravoltas, mas com desfecho que imita em parte o foram-felizes-para-sempre
da novela é mote de Nos vemos no paraíso.
Em parte porque a reviravolta está longe de significar uma alternativa sobre o
mal, isto é, a realização plena do final redutível do novelesco; aqui não se
oferecem saídas demasiado otimistas, porque a narrativa de Lemaître-Dupontel está
marcada pela ceticismo francês segundo o qual, o embate entre essas duas forças
– bem e mal – é inerente à constituição da própria existência. E mais – por
isso – não se pode falar em substituições, tampouco em vitórias de um sobre o
outro, ainda que se prevaleça certa ordem pedagógica a partir das reviravoltas
de Nos vemos no paraíso e a confirmação
de certa tese simplista (e fatalista) que afirma: independente do que se faça, o
destino de todos é um só – a morte. Sentido expresso, aliás desde a tradução
brasileira para Au revoir là-haut ou
melhor ainda na tradução portuguesa, Até
nos vermos lá em cima, que melhor expressa a transitoriedade da personagem que
realizada em seus desejos prefere não se submeter a outras mortes em vida.
Ao reinventar o tema da máscara enquanto estratégia para desvelar o que se oculta
sob os mantos sagrados do poder, esta narrativa, apesar de circunscrita num contexto
em que as corruptelas e corrupções preenchiam outros interesses, o que desmascara
é a verdade inconteste da história e o funcionamento das próprias engrenagens
atuais. Porque entre o passado e o presente as provisões humanas para os seus
interesses individuais mais tacanhos só se aperfeiçoaram.
Com este filme, Albert Dupontel alia duas formas com que tem trilhado sua
produção cinematográfica, o drama e a comédia. É um filme audacioso, capaz de a
um só tempo mexer com os vários sentimentos do espectador, como deve ser as
boas narrativas de tom aventuresco, mas não se descuida de nenhuma maneira do
que faz o cinema: contar uma boa história.
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