Mudbound – Lágrimas sobre o Mississipi, de Dee Rees

Por Pedro Fernandes





O enredo desse filme de Dee Rees parece saído de algum dos romances de William Faulkner; não é pelo tema ou mesmo pelas situações narradas e sim pela complexa e dramática atmosfera que dão coloração a um impasse de relações familiares e coletivas, sobretudo as hierarquias entre brancos e negros no sul profundo dos Estados Unidos no período de meados para o fim da Segunda Guerra Mundial. É claro que, no âmbito das primeiras relações e porque de uma alguma maneira se retrata uma decadência do poder hegemônico branco, a narrativa de Mudbound bebe das criações do escritor estadunidense.

Figura fracassada, Henry McAllan tenta arranjar sua vida depois de se casar com uma solteirona que à primeira vista preenche todas as condições da figura ideal para manutenção da ordem do lar. Tudo começará a ruir com a necessidade de McAllan deixar a cidade para ir morar numa fazenda no delta do Mississipi, onde vivem como meeiros a família Jackson, negros que trabalham na agricultura e almejam conseguir dinheiro para construírem sua própria fazenda. Já aqui é interessante sublinhar que Dee Rees inverte o processo histórico no intuito de demonstrar que a ruína costumeiramente atribuída ao negro é, sim, causada pelo homem branco, sempre preso à ganância, à vã cobiça, à ânsia de mandar e lucrar às custas do trabalho alheio. Notável perceber que todos os problemas que desembocam na destituição do lar e da ordem entre os Jackson são traduzidos pela chegada dos McAllan.

A substituição da vida urbana e burguesa pelo sonho do aventureiro explorador, o capaz de domar a terra e a natureza apenas com força braçal, é o elemento motriz em Mudbuond: isso se deixa perceber no árduo trabalho de dominação do inóspito na contínua tarefa da lavoura, depois pela inserção da máquina, do corpo pela higiene impossível num lugar onde tudo é lama, o que se mostra desde a cena de abertura (e também de fechamento) da trama, em que os irmãos McAllan lutam contra a terra, antes da chegada de uma tempestade, para cavar a sepultura do pai, este que durante a vida integra os movimentos de perseguição e caça aos negros sob a mentalidade tacanha de limpeza da terra de uma peste e finda por ser sepultado no que é o resto de uma catacumba de escravos indigentes.

A história principal é essa, mas não a única; o filme ambiciona compor o que poderíamos chamar de compreensão da complexidade histórica e identitária dos Estados Unidos privilegiando uma parte importante e subjugada: este é um duto que se alimenta de várias narrativas assinadas por pontos de vista também vriados. Se as duas famílias estão colocadas pelas circunstâncias históricas em lados distintos, as duas, pela mesma razão, se mostram marcadas pelas mesmas questões: a da manipulação da terra, a de sobrevivência ao hostil, à espera pelo ente querido chamado à guerra, a expectativa por outras condições de vida capaz de reanimar algum estalo de civilização.

Agora, ainda no âmbito da presença do negro na história de um país que nega tal propósito, é válido destacar a precisão de Dee Rees em sublinhar algumas questões. Por exemplo: embora as cenas de guerra constituam um apêndice desnecessário ao filme, seu acréscimo parece servir para demonstrar a importância do negro no chamado projeto heroico estadunidense de derrotar o império de Adolf Hitler – ponto igualmente excluído da cinematografia produzida naquele país, continuamente centrada no drama do homem belo de olhos azuis o qual Mudbound coloca em contraste com o protagonismo do negro. Respinga certa ironia: um país que se orgulha da derrota do nazismo e em casa pratica às vistas claras o mesmo projeto de traço ariano.

Dito assim, essas circunstâncias que elevam o lugar do negro na narrativa, parecerá que estamos diante um filme que almeja um acerto de contas com os silêncios, as discrepâncias ou as distorções da história sempre escrita pelo ponto de vista do branco. Mas não é. O trabalho de Rees prescinde de tornar melhor situada as presenças que o passado vergonhoso dos Estados Unidos e o presente em proporção semelhante se nega mostrar. Sem revanchismos. É uma tentativa de capturar os elementos motivadores de uma luta de classes que aí se reveste de outras forças, além, é claro, de construir uma imagem menos hipócrita da identidade nacional. Tanto que não se omite de revelar a estreita relação cultivada pela Sra. McAllan e o cunhado com os da casa Jackson. Esta última, aliás, favorecerá toda sorte de desagregação de uma ordem que parecia respirar à sombra: o branco manda, o negro obedece.

Mudbound é a adaptação de um romance de mesmo título escrito por Hillary Jordan. É preciso uma leitura da obra para um comentário qualquer sobre o trabalho de adaptação. Mas, algumas coisas não são impossíveis de supor, como o caso da escolha de organização da narrativa. Possivelmente os múltiplos discursos, a depender da maneira como a escritora tenham construído, se mostrem de maneira melhor no romance e não na obra visual. A repetição desse modelo aqui contribui para uma fragmentação que torna a progressão da narrativa fílmica desleixada. Continuamente ficamos com a sensação de uma história que não ganhou fôlego e precisou se fazer um novo começo. Só nos desafogamos desse impasse quando se inicia os acontecimentos principais que justificam a última cena (e a primeira): a da morte do patriarca dos McAllan. 

Mas, enquanto isso ficamos presos ao que parece será o drama de Laura McAllan e o amor proibido pelo cunhado, ou a história de Henry que só tem olhos para o trabalho, ou a do irmão Jamie que é um bonachão e apesar da relação perturbada com pai o seu motivo de orgulho pela estadia na guerra, ora a de Ronsel que é o filho dos arrendatários negros que trabalham para os McAllan e sonham com seu próprio lugar, ora de seu pai, ou a de sua mãe. Esse excesso ou mesmo a diversidade de elementos utilizados na construção da narrativa coloca o todo em suspeita; é como se um cozinheiro tivesse ao alcance os melhores ingredientes mas não soubesse quais separar e combinar para um prato decente. O todo nos convence, mas ficamos com suspeita de que poderia ser melhor. Novamente há ressonâncias faulknerianas – mal-empregadas, é claro.

Agora, isso não coloca a obra entre as ruins – a dúvida entretanto paira sobre o romance; pelo todo, o filme vale a pena porque toca em elementos caros para compreensão dos lugares de luta e das altas dívidas de um país que se diz o Magnum representante da liberdade tem para com aqueles que são parte tão ou mais importantes que os herdeiros diretos dos primeiros colonizadores. Mudbound cobra um mea culpa que a história se nega a fazer; talvez porque olhar para a própria lama que cobre seu corpo não seja um exercício dos mais simples. Que bom existirem os sábados! Por eles, ficamos ao menos com a sensação de clareza nesse inóspito pântano.


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