Machos nus: Walt Whitman, José Martí e Thomas Eakins
Por Daniel Céspedes Góngora
O século XIX
começa já dominado por homens e – herdado da cultura judaico-cristã mediada
pelo catolicismo – teve suas preferências pelo nu feminino “ao natural” contra
a tradição acadêmica historicista e de assuntos mitológicos. Esquecia que a Adão
– embora coberto por uma vestimenta de graça ou de luz, como recorda Giorgio
Agamben – se deve a primeira “ostentação inconsciente” de sua natureza num
mundo onde logo surgiria Eva, quem o acompanhará em sua ingênua nudez. Sem
dúvida, o arquétipo machista e hétero-sexista do cânone humano provinha do
olhar masculino. Uma mulher nua numa academia de belas artes no século XIX? Uma
projeção imoral, sem dúvida. Mas as mulheres se desnudaram nos estúdios de
pintores e fotógrafos. E fez-se acreditar que a sensualidade e a erotização
eram apenas propriedades delas. O artista estadunidense Thomas Eakins mudará
tudo ao reconsiderar o nu na própria academia.
Eakins
experiencia o quanto pode na Paris do período de 1866 a 1870, quando aprende do
realismo pictórico de Léon Bonnat e da arte detalhista de Jean-Léon Gérôme,
ambos amantes do nu na pintura. Observa muitas esculturas e recebe lições do
mestre Augustin Dumont. É na França onde se interessa pelas possibilidades da
fotografia e suspeitamos que percebe, antes de outros, as vantagens da reprodução
da imagem real, para logo reinventar uma cena e criar muito mais que uma
atmosfera num contexto bucólico. Vê-se em algumas de suas obras a reafirmação
por superar o fetichismo da semelhança entre imagem fotográfica e modelo. Seu
talento como pintor de nus é inquestionável. Descobre com a câmera o que logo
(re)constrói com o pincel, diria Susan Sontag.
Em 1886
perde seu posto de diretor de instrução na Academia de Belas Artes da
Pensilvânia. Mostrar sua própria nudez ante seus alunos (homens e mulheres) e
pedir em seguida que eles também se dispam escandaliza a célebre instituição.
Eakins é um exibicionista num sentido clínico1. É verdade que quando
este polêmico artista assume o cargo em 1882, a academia ganha no plano de
estudos; os nus são mais tolerados; há uma maior promoção de uma arte
vanguardista e transgressora. Mas, no fundo, sempre é conservadora. Para os excessos
de Eakins, a medida mais drástica: sua expulsão. Imaginar que determinado modo
de vida poderia superar a realidade artística não representava sequer uma
probabilidade ou proposta estéticas. “Enquanto alguns tratam de ver
imoralidades no corpo, outros, pelo contrário, veem neles as possibilidades
mais nobres da estética do humano; entre eles, os artistas e os poetas. O nu
tem sido a grande academia para os artistas plásticos desde tempos imemoriais.
Também tem sido a antiacademia” (ACOSTA de ARRIBA, 2001, p.275).
Durante 1884
e 1885, Eakins concebe o corpo masculino despojado de toda vestimenta, aberto
às delícias do seu redor suburbano e campestre, distante dos tabus próprios de
uma sociedade normatizada pela conduta heterossexual. Aqueles indivíduos marcados
pelo espaço dos grêmios em cafés e bares, o prostíbulo e o pugilato, podem
passar para a obra artística graças ao apuro estético de um pintor livre de
juízos e observador. Dois estão na água, outro vai entrar de mergulho. Sobre um
rochedo que serve ao mesmo tempo de barreira e penhasco, outros dois, sentados,
observam um cachorro nadar. O único que está em pé relembra, por sua postura,
quem pousa como modelo numa academia: está de costas e mostra, por tradição cultural
e estética, a bunda. Talvez esta personagem não queira se molhar ou já depois
de fazer tantas vezes prefere deixar ir quem se joga no lago. O pintor também
está representado. É o que nada e, mais longe, observa quanto pode. É um voyeur declarado e firme. Estamos diante
uma cena homossocial onde o nu é espontâneo, mas de uma inocência aparente: a
provocação erótica é voluntária. Um detalhe: existe uma contraposição inegável
– talvez com o propósito expresso ou por descuido insignificante – entre a
serenidade da água e o improvável silêncio do regozijo grupal. O título da obra
designa o contexto porque o protagonismo se centra na paisagem dos nus corporais.
Elegância,
descontração e beleza distinguem a ousadia com que Thomas Eakins representa
estes banhistas. “Swimming Hole”2, que tem como antecedente várias
fotografias realizadas pelo próprio autor, é uma das obras plásticas mais
memoráveis do século XIX, tanto por sua qualidade artística como por seu
indiscutível homoerotismo. O artista é amigo de Walt Whitman. Lê Folhas de relva e a série de poemas chamada
Calamus, a que José Martí se refere
enquanto desnudamento do homem natural, delicado com as mulheres, para entender o poeta
“mais intrépido, global e livre de seu tempo” em sua grandiosa crônica “O poeta
Walt Whitman”. Isto é, Martí mostra sua contradição ante “os que são incapazes
de entender sua grandiosidade; imbecis existiram ao ver o que se celebra em Calamus, as imagens mais ardentes da
língua humana, o amor dos amigos, e acreditam ver, com melindres de colegial
impudico, o retorno àquelas vis ânsias de Virgílio por Cebetes, e de Horácio
por Giges e Licisco” (MARTÍ, 1975, p.137); para logo evidenciar: “Quer portas
sem fechadura e corpos em sua beleza natural; acredita que santifica enquanto
toca, e acha virtude em todo o corpóreo” (p.138); até mais adiante acrescentar sobre
seu admirado observador da Natureza: “Sente um prazer heroico quando se para
próximo de uma ferraria e vê os rapazes, com o torso nu, revoam por sobre suas
cabeças os martelos, e dão cada um seu lugar” (p.139). Ao meter-se em Calamus evidenciava sua homossexualidade,
o que Whitman opta por silenciar (cf. REYNOLDS, 1995). Eakins e ele têm muitos
acordos artísticos, talvez nenhum mais chamativo que aquele que consiste em reconhecer,
por razões estéticas e de gosto, que o corpo nu do macho pode ser a coisa mais
bonita que existe.
Depois de
radicar-se por uma temporada na Venezuela, José Martí se estabelece nos Estados
Unidos a partir de 1880 e começa a colaborar para várias publicações culturais como
The Hour, The Sun e La América. Escreve
sobre a pintura estadunidense e europeia. É muito provável que tenha visto
“Swimming Hole”3, e também os nus de John Singer Sargent e William
Merritt Chase. Talvez sinta que não deve falar de uma obra bem realizada, mas
proveniente de um artista incômodo e de “ânsias vis” para a época. Agora, o que
é “Swimming Hole” frente a “O sonho” ou “A origem do mundo”, de Gustave Courbet?
“A nudez incontrolável dos órgãos genitais é a chave da corrupção da natureza
depois do pecado, que a humanidade transmite através das gerações” (AGAMBEN,
2011, p.102).
Para os anos
oitenta do século XIX, José Martí conhece não só esta obra de Courbet, mas muto
mais do que se permite – ou o permitem – escrever.
Notas
¹ Recomendo
o texto de Anamaría Ashwell: “El arte y la fotografía de Thomas Cowperthwaite
Eakins”, disponível em Elementos n.78, vol. 17, maio-julho de 2010,
p.3-13.
² Uma
das mais recentes teses sobre o tema é Reconsidering “Swimming”. Thomas
Eakins and the changing landscapes of modernity in late nineteenth-century, de
Laura Fravel, Filadélfia (2011).
³ Não é para justificar a possível indiferença do crítico cubano pela
pintura de Eakins mas, com muita razão, Yanelis Abreu Proenza diz: “Embora
sejam os imperativos econômicos os que obrigam Martí a escrever e publicar suas
crônicas jornalísticas, escolhe peças pelas quais dedica melhor atenção, num
ato consciente de discriminação valorativa” (“José Martí: su prosa crítica
dedicada al arte del siglo XIX”, publicado na Revista de la Asociación
Aragonesa de Críticos de Arte, n.15, junho de 2011).
Referências
ACOSTA DE
ARRIBA, Rafael. El signo y la letra. Ensayos sobre literatura y arte.
Centro de Investigación e Desarrollo de la Cultura Cubana Juan Marinello.
Havana, 2001.
AGAMBEN,
Giorgio. Desnudez. Argentina: Adriana Hidalgo Editora, 2011.
MARTÍ,
José. Obras completas. Havana: Editorial de Ciencias Sociales, 1975 (tomo
13).
REYNOLDS,
David S. Walt Whitman’s America: a Cultural Biography. Nova York: Vintage
Books, 1995.
* Este texto é uma tradução de "Varones al desnudo: Walt Whitman, José Martí e Thomas Eakins" publicado aqui, em Letralia.
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