Hilda Hilst e o inominável das palavras


Por Fernanda Fatureto



Hilda Hilst saiu do terreno das sombras. As sombras eram elementos presentes nas queixas da própria autora, que reclamava que lhe faltava em vida leitores e críticos interessados em sua obra. Escreveu mais de vinte livros de poesia, muitos de prosa e teatro. Recebeu o prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Artes (APCA) em 1981 e o Jabuti em 1994, mas ainda assim afirmava que ninguém a lia. A partir dos anos 2000, sua obra começou a ser reeditada  – aumentando seu número de leitores. Dessa safra de edições, faz parte Fico besta quando me entendem (Biblioteca Azul, 2013), coleção de vinte entrevistas que Hilda Hilst deu dos anos 1950 a 2003 reunidas pela Editora Globo com organização do pesquisador  Cristiano Diniz.

Alegava que, se muitos definiam sua literatura como inacessível, era porque lidava com o sagrado. Afirmou a Vilma Arêas e Berta Waldman em 1989: “A poesia tem a ver com tudo o que não entendo. Tem a ver com a solenidade diante do mundo. Algo sagrado e importante que eu não queria perder, e ela sempre vem quando estou prestes a perder isso”. Para Hilda, tudo estava permeado pela sacralidade, esta mesma fugidia. Captar a essência das coisas era seu lema. Em Sobre a tua grande face (1986), escreveu:

Honra-me com teus nadas.
Traduz meu passo
De maneira que eu nunca me perceba.
Confunde estas linhas que te escrevo
Como se um brejeiro escoliasta
Resolvesse
Brincar a morte de seu próprio texto.
Dá-me pobreza e fealdade e medo.
E desterro de todas as respostas
Que dariam luz
A meu eterno entendimento cego.
Dá-me tristes joelhos.
Para que eu possa fincá-los num mínimo de terra
E ali permanecer o teu mais esquecido prisioneiro.
Dá-me mudez. E andar desordenado. Nenhum cão.
Tu sabes que amo os animais
Por isso me sentiria aliviado. E de ti, Sem Nome
Não desejo alívio. Apenas estreitez e fardo.
Talvez assim te encantes de tão farta nudez.
Talvez assim me ames: desnudo até o osso
Igual a um morto.

A busca pelo inominado era sua via expressa. Tanto que nos anos 1970 instalou na Casa do Sol, chácara próxima a Campinas, equipamentos de ondas de rádio para captar as vozes dos mortos. Hilda numa entrevista ao jornalista e escritor José Castello disse: “A arte lida com o obscuro, o não-manipulável, os sistemas autônomos da mente, as sombras, e por isso, aos ingênuos ou apressados, lembra uma maldição”.

Queria captar o Nada e Deus, paradoxalmente. Ao ler a escritora, situamo-nos diante desse busca que nos traz tanto a dúvida da existência de um além-mundo quanto a certeza de que nada por aqui termina. É por isso que muitos insinuavam que Hilda era incomunicável. Ela não cedia; mantinha a busca pela linguagem que acreditava.



Em Fico besta quando me entendem: entrevistas com Hilda Hilst pode-se traçar um perfil mais complexo da autora pelas declarações que deu aos jornalistas e críticos. Já em 1952 – apenas dois anos após lançar seu primeiro livro, Presságio, declarou: “Meus poemas nascem do inconformismo. Do desejo de ultrapassar o Nada. (…) A minha poesia quase sempre surge de um problema maior – o problema da morte (…). O que faz nascer a minha poesia é a não aceitação de que um dia a vida se diluirá (…)”. A profundidade de sua busca sempre foi um elemento que gerava um desentendimento sobre sua escrita. Chamavam-na de hermética. Mas não se intimidava. Após lançar seus primeiros livros de poesia, mudou-se de São Paulo para a Casa do Sol em 1963. Ali se isolou da vida social badalada que tinha na capital para uma verdadeira imersão.

Lendo a obra de Hilda Hilst é possível notar um amadurecimento a partir de Trajetória poética do ser (I) – poemas escritos de 1963 a 1966 quando a autora passou a morar em sua chácara. Desta fase, encontra-se o poema:

O Deus de que vos falo
Não é um Deus de afagos.
É mudo. Está só. E sabe
Da grandeza do homem
(Da vileza também)
E no tempo contempla
O ser que assim se fez.

É difícil ser Deus.
As coisas O comovem.
Mas não da comoção
Que vos é familiar:
Essa que vos inunda os olhos
Quando o canto da infância
Se refaz.

A comoção divina
Não tem nome.
(...)

“A comoção divina/Não tem nome”. Sua comunhão com o inominado foi reafirmada diversas vezes. Tal qual na entrevista para Delmiro Gonçalves no O Estado de S.Paulo, em 1975: “Procurei atingir o quase inabitável”. Na mesma entrevista, ainda se questiona: “Quando isso acontece há uma transfiguração lá dentro: tudo ao mesmo tempo; violência, calidez, chama e banalidade; mas muitas vezes eu me perguntei como era possível ser possuidora daquela carga afetiva cheia de vigor e ao mesmo tempo ser dominada e possuída por uma experiência muda que é, em suma, o silêncio que reveste o ato de criar, escrevendo”. Seu isolamento na Casa do Sol, apesar de receber muitos amigos, foi visto como um ato de radicalidade e quase “loucura”. Sua busca, no entanto, permanecia e nas obras posteriores a inflexão de sua linguagem a tornava cada vez mais consciente de sua função como poeta.

Tinha sempre a resposta afiada quando questionada sobre seu trabalho: “Parece que as pessoas querem livrar-se assim de si mesmas, que têm medo da ideia, da extensão metafísica de um texto, da pergunta”.

Quem tem medo da pergunta; da grande pergunta que é a vida não se aproxima da literatura de Hilda Hilst. Não só sua poesia abre uma fresta para o indizível, mas sua prosa também é marcada pelo abismo. Um abismo marcado pela procura de si no outro, como afirmou em entrevista a Nello Pedra em 1978: “A literatura é meu meio de expressão, porque é através dela que você pode se conhecer a si mesmo. Ora, só se conhecendo a si mesmo é que você pode conhecer e reconhecer o próximo, o Outro”.

Este espelhamento de si no outro era a própria ética de sua linguagem, ao dizer no O Estado de S. Paulo em 1980: “O que existe é que eu escrevo movida por uma compulsão ética, a meu ver a única importante para qualquer escritor: a de não pactuar. (…) O escritor é o que diz “Não””. Hilda não pactuava, não cedia e essa era sua grandeza. Ao mesmo tempo, não escrever de acordo com o mercado a distanciava do que mais desejava: ser lida por mais pessoas. Esta era, talvez, uma das maiores contradições de sua trajetória. Declarava: “Você corre um risco absoluto: o de levar o leitor a um ponto do qual ele não retorna”. Como escreveu em Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão (1974):

Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse

Escapar de sua casa que é o rio
E deslizar apenas, nem tocar a margem.

Te olhei. E há tanto tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta

Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.

Há uma exigência para que olhemos mais de perto para o sentido de sua linguagem. Este é o ponto sem retorno do qual falou Hilda: sua lírica e sua prosa transbordam, como ela mesma afirma para Sônia Amorim Mascaro no O Estado de S. Paulo em 1986: “Quando me perguntam por que escrevo dessa forma que as pessoas não entendem, e por que é tão complexo tudo, então eu digo, é o processo da vida que é tão complexo! Eu não saberia simplificar esse processo para ser mais compreensível, é o meu próprio processo dificultoso de existir que faz com que venha essa avalanche de palavras, umas assim barrocas demais, e que tudo seja misturado. Porque eu acho que a vida transborda, não existe uma xícara arrumada para conter a vida!”.

Esse olhar que é miragem num reflexo de águas faz com que o leitor perca a medida quando lida com sua ficção. O tal fluxo-floema hilstiano é jorro de palavras e emoção. Sua obra é a  “radiografia de um percurso”, como ela mesma definiu. Ler Hilda Hilst é elevar a autora ao patamar merecido que tanto desejou enquanto estava viva. Fato que tem se tornado real não apenas com a FLIP 2018 em sua homenagem, mas com a reedição de sua obra completa, primeiro pela Editora Globo e mais recentemente com a Companhia das Letras.

Em uma de suas últimas entrevistas em 1999, ao Cadernos de Literatura Brasileira, quando já havia anunciado que pararia de escrever, Hilda Hilst foi perguntada se confiava no reencontro do público com sua literatura. Foi sucinta: “Eu penso que sim. Um dia pode acontecer”. Chegou o momento. Pelas redes sociais e nas livrarias há todo um movimento pela leitura da escritora. Hilda Hilst se faz presente entre nós como em seus versos do livro Da Morte, Odes mínimas (1980):

Um poeta e sua morte
Estão vivos e unidos
No mundo dos homens.

Sua obra procura Deus, o indizível e a morte como enigma do que ainda (para nós) é inominável. “Eu vi Deus em algum lugar. É isso o que eu quero dizer”, sussurra Hilda Hilst.

*Os poemas transcritos neste texto integram o livro Da poesia, de Hilda Hilst, publicado pela Companhia das Letras em 2017.

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