Debaixo de algum céu, de Nuno Camarneiro
Por Pedro Fernandes
“O escuro serve-nos
para esconder o que não queremos ver, esperamos o dia e depois
lavamo-nos com água e luz na esperança de alguma coisa nova. Mas não
somos diurnos como queremos ser, Manuela, fundeamos a noite, e do pescoço
para baixo somos só mistério.” Este excerto é parte de um diálogo entre Daniel
e sua vizinha, depois que ela toma a decisão de voltar ao apartamento do padre
e reaver o tabuleiro deixado com restos de assado num dia anterior quando
os dois se envolveram sexualmente. Esclarecido o contexto da fala, a
expressão recobre por via indireta sobre os que dois têm vergonha de falar
abertamente a fim de estabelecer uma compreensão ou justificativa que seja
para o ato impensado ou guiado apenas pela força do
desejo carnal. Mas, sua expressão pode de maneira bastante
acertada oferecer uma compreensão sobre o romance de Nuno Camarneiro.
Debaixo de
algum céu se filia ao que talvez ingenuamente
poderíamos definir como uma tradição romanesca das
narrativas cujo enredo, numa centralização
da topografia espacial, se passam em edifícios. Na
literatura de língua portuguesa há três exemplos logo possíveis
de recuperar nesta ocasião que são Claraboia, de José
Saramago, Caminho como uma casa em chamas, de
António Lobo Antunes e Quem me dera ser onda, de Manuel
Rui. Em cada um desses romances o
espaço funciona como metonímia sobre alguma condição;
assim, o primeiro, por exemplo, sintetiza um Portugal encerrado numa
encruzilhada histórica marcada pela força brutal da ditadura que entregou
o país à mesmidade e à austeridade, o segundo singulariza
as complexas veredas da condição individual como se perfizesse o
lugar enquanto expressão do eu em crise, e o terceiro mimetiza os embates culturais
que significam a imediata passagem de uma cultura a outra.
No caso do
romance em questão neste texto, nota-se que
Nuno Camarneiro aproxima-se do sentido antuniano, ao construir o
espaço de um prédio há alguns quilômetros de uma cidade média e
há pouca distância do mar enquanto expressão das implicações subjetivos
dos indivíduos urbanos visivelmente aglutinados e, ao mesmo
tempo, invisivelmente entregues a uma profunda solidão. Embora
os dramas de todos moradores sejam apresentados de maneira muito segura por um
narrador que se coloca muito à distância das situações e pode
descrevê-las de maneira objetiva e desapaixonada o que aí se passa, é
perceptível que o prédio manifesta perfeitamente a condição dos seus
moradores e mais que isso influencia na composição de seus humores e
nos jeitos de ser e estar no mundo.
O
edifício ainda não quer, como acontece na obra de José
Saramago e de Manuel Rui, servir enquanto metonímia sobre a
história coletiva de uma comunidade. Perfeitamente ajustado à
força do tempo, o interesse simbólico recai sobre o de ser uma
representação universal sobre o sujeito ocidental contemporâneo, este
entregue a servir continuamente à repetição desalmada do trabalho,
fonte única de existir, e cada vez mais isolado em repartimentos que
sempre descambam para um estágio de solidão profunda e capaz de
imergir todas as forças responsáveis por garantir o contínuo encanto pela
vida.
Isto, Debaixo
de algum céu adquire o tom de uma parábola sobre a solidão do
indivíduo urbano, incapaz de relacionar-se abertamente com o outro,
embora este ainda seja uma das principais forças de sua constituição,
e fadado a perecer num individualismo que é signo
do modelo de vida forjado pela força do capital. Mas,
estaríamos em definitivos condenados a perecer nessa multidão de
solidões ou haverá ainda alguma alternativa, parca ou se não para todos,
que seja capaz de reanimar outras formas de habitar o mundo e de
habitar o outro? De maneira nem tanto otimista, tampouco singular,
poderíamos compreender a própria literatura como esta
utopia possível ao propor que mesmo sozinhos possamos
estabelecer contato com o outro de nós que em nós se
oculta ou está ao nosso alcance mas não o percebemos. Esta
compreensão aparentemente rasa não apenas esclarece uma qualidade da literatura
para o nosso tempo de crise dos sujeitos como se assume de
maneira diversa em algumas das narrativas então fabricadas pelo
romance.
Assim o tom de
parábola, oferecido por uma narrativa em que o espaço
se apresenta enquanto metonímia sobre a solidão do
sujeito envolto nos grandes conglomerados de
individualidades, se verifica ao nos expor de alguma
maneira àquilo que nós próprios vimos nos tornando. Sem
critérios didáticos ou pedagógicos, apenas pelo relato sobre
a gente comum, o que se passa a essa
gente numa temporalidade meramente simbólica, isto é, sem
quaisquer interesses de se justapor a
determinado contexto ou fato figurado pelas forças da
história. O cotidiano que aí se observa, findará por ser
uma celebração ao comum, ao invariavelmente designado como
banal, entretanto singularidades que nos determinam quem e como
somos.
A força
simbólica que recai sobre uma narrativa cuja força bebe da narrativa
de exemplo, como é o caso da parábola, não está visível apenas
na eleição topográfica e as influências do espaço sobre os
indivíduos que nele vivem; Nuno Camarneiro
escolhe cuidadosamente, tempo, situações e personagens.
O catálogo de trivialidades não é apenas um registro gratuito de
acontecimentos e sim uma elaborada construção e podemos satisfazer
essa compreensão no tom escolhido para a expressão do narrador,
expressão que encontra no próprio lugar do romance uma presença
significativa. No rés-do-chão vive David, uma personagem que gasta dias
e noites presa em seu apartamento num trabalho de fabricar
perfis virtuais para uma empresa que se interesse em, num futuro próximo,
substituir a mão-de-obra que lida com resolver situações pontuais e
repetíveis de serviços. David tem algo mesmo do romancista
que algures constrói indivíduos virtuais que viverão
situações conhecidas ou por conhecer, por isso, atesta o propósito do
próprio autor de Debaixo de algum céu e o tom com
que forja sua narrativa, tom, aliás, que se parece por vezes com o do
teatro do absurdo beckettiano ou uma expressão também
já conhecida dos leitores da literatura portuguesa recente, a obra de
Gonçalo M. Tavares.
O prédio dispõe de
três andares, o rés-do-chão e uma cave. O padre, simbolicamente
vive no último andar, no apartamento da direita; seu vizinho da
esquerda não mais existe – é um espaço fantasma, mas sua
história entrelaça-se ao longo da história de Daniel. Viveu aí
um casal cujo fim foi marcado por uma sombria
tragédia: o envolvimento amoroso de Beatriz com o
seu vizinho, um assassinato do marido como para conter as
dores de um câncer, a impossibilidade de realização definitiva do
amor proibido e o suicídio dela. Este segredo só é revelado ao
leitor e consome-se enquanto um drama que desnorteia
a razão do padre Daniel. Curiosamente Beatriz é a única que não
desenvolve nenhum tipo de presença com os demais moradores – mesmo
a comunicação entre ela e o padre é realizada por correspondência.
No segundo
andar está uma espécie de paraíso genesíaco. Não no sentido da
paz absoluta, mas na sua composição. Vivem aí
o casal Bernardino e Manuela e os filhos Frederico e Joana. Ele
empregado num banco e a sonhar com uma promoção poucos anos antes da
aposentadoria, ela professora de língua inglesa; o menino um fabulista e a
menina a desenvolver uma adolescência marcada pela rebeldia, displicência
e descoberta amorosa. A inexistência da totalidade do paraíso se verifica no
mesmo drama que aflige a todos: a solidão ou a guerrilha vivida entre
irmãos, ou na dedicação elevada do pai pelo trabalho ao ponto de não ter
olhos para a família. Essa condição, o leitor perceberá, como em
todas as condições apresentadas no romance, sofrerá transformações a
ponto de estabelecer alguma mudança.
No primeiro
andar vive no apartamento direito Margarida, uma senhora viúva entregue às
lembranças de quando viveu com um holandês e ao zelo de um gato;
seu vizinho é um casal em crise, Constança e Adriano, pais da
recém-nascida Diana. Na cave, vive o Marco Moço, um homem
de meia-idade que, apesar de morar nas profundezas deste lugar, podemos
assim dizer, para compreender o jogo simbólico
entre céu / inferno enquanto organização do nosso mundo e
do mundo forjado por Nuno Camarneiro, é quem sabe tudo o que se passa
no prédio, quem ajuda continuamente os moradores e quem ensaia um desfazimento da solidão
em estão metidos. Afeito à fabulação, passa as manhãs a recolher objetos
na praia para a construção de uma gerigonça que chama de máquina
de memórias.
As situações
vividas por essas personagens se espalham no intervalo entre o Natal e o
Ano Novo. Não é preciso sublinhar o que essas duas datas guardam se temos
em conta o dissemos sobre uma transformação que atingirá a
todos, embora, de maneira irônica, não seja o simbolismo que as
justificam a força motriz da variação, mas um circuito que deixa todo
prédio por quase dois dias sem energia elétrica. O apagão é tornado
em metáfora para restabelecer, se não totalmente, alguma luz capaz de
tornar outra a vida desses moradores. A riqueza deste romance de Nuno Camarneiro
reside na maneira bastante natural e simples com que
transforma os acontecimentos de maior impacto na vida
das personagens em figurações simbólicas sem submeter tais
acontecimentos a um jogo que poderia resultar artificial no fim do processo.
Outro caso é o
de não se decidir pelo mero jogo de oposições – alto-baixo,
direito-esquerdo, sagrado-profano, claro-escuro, vida-morte,
lucidez-loucura, amor-ódio – mais pela construção de uma força
dialética, que é, afinal, como o mundo dentro e fora do romance aparece
organizado. Aliás, é pela subversão de algumas
dessas polaridades e arranjo de outras expressões, tal como a
apresentada na voz do padre Daniel na abertura deste texto, o lugar de
força maior desse romance-parábola. Debaixo de algum céu não
se reduz ainda a servir de construção de uma utopia
urbana segundo a qual os indivíduos fossem levados a um retorno ao
mundo total ou a uma nova maneira de habitar o mundo. Constrói,
sim, uma expressão do nosso tempo, em que as forças do
que chamamos de individualismo ainda não sepultou de um todo, e
possivelmente isso nunca aconteça, alguns dos gestos que nos definem
humanos.
Essa leitura
poderia significar uma contradição sobre o que dissemos da
predominância de uma sociedade entregue a valores que destoam do ideal
de coletividade ou ainda poderia afirmar que Nuno Camarneiro
deita um olhar bastante ingênuo para a selva que dia após dia ousamos
inaugurar. Mas, possivelmente, ficou claro que as coisas
não se reduzem ao lugar de uma antítese barata. Na sociedade
da solidão não quer dizer que as ações humanas estejam integralmente
embrutecidas – estamos cheios de pequenos gestos que ampliam
alguma sorte de esperança mas que deixamos de reparar, qual o menino
Frederico que à primeira vista só enxerga nos materiais
recolhidos por Moço como refugo e, portanto, coisa sem qualquer
valia. Depois estará entregue em narrar a história de um resto de
tecido vermelho que se torna em texto e imagem visual na parede
de seu quarto, duas expressões que significará uma tomada de
outra consciência sobre seu lugar na família que a princípio ele só a
vê como excludente. Também não é um catálogo de
ingenuidades as transformações vividas por essas personagens em Debaixo
de algum céu – pelo contrário algumas das saídas são mais
dramáticas que o fuga para um foram felizes. É, sim,
um catálogo sobre as idiossincrasias de nossa sociedade,
deveras complexa para ser compreendida apenas por esta ou aquela
via. Existir é cavar a longa noite que nos rege, vez ou outra,
vemos algum lampejo.
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