Anonimato como obra de arte


Por Manuel Vicent



O filme O rebelde no campo de centeio, escrito e dirigido por Danny Strong, narra a luta de Jerome David Salinger para conquistar o sucesso literário e como o sucesso, uma vez alcançado, chegou a destruí-lo como escritor. Buscar obsessivamente a glória e depois, ao sentir-se preso por ela, precisar de se fazer invisível para sobreviver, este é o caso de J. D. Salinger, quem converteu sua fuga dos holofotes e anonimato numa obra de arte e findou famoso por negar a todo custo a fama.

Salinger nasceu em Nova York em 1º de janeiro de 1919; filho de um judeu chamado Salomon, descendente por sua vez de um rabino que, dizem as más línguas, se tornou rico importando presunto. Quer dizer, na verdade, Salomon Salinger foi um honrado importador de carnes e queijos da Europa. A empresa Hoffman, para a qual trabalhava esteve envolvida num escândalo, acusada de falsificar furos nos queijos bola, mas disso Salomon saiu indenizado e acabou por ir viver num luxuoso apartamento na Park Avenue entre a alta burguesia nova-iorquina. Foi aí que o adolescente Jerone David começou a ensaiar seus primeiros gestos de rebeldia. 

Depois de ser expulso do colégio McBurney, entrou como cadete na academia militar de Valley Forge onde começou a escrever iluminando o caderno com uma lanterna debaixo dos lençóis alguns contos breves que durante anos mandou para as revistas, sem obter qualquer êxito. Era um jovem desenvolto, rico, neurótico, inteligente, esnobe e sarcástico, enfiado num casado preto Chesterfield que invejava seus colegas de internato. Frequentava o Stork Club, onde iam as meninas douradas do Upper East Side, e nomes famosos como Truman Capote. Seduzia as meninas e depois desistia delas. Deixavam-nas loucas – mas não todas. Uma adolescente de 15 anos, Oona O’Neill, filha do dramaturgo prêmio Nobel, escapou dele até vê que aquele jovem tão atraente havia publicado seu primeiro conto na revista The Story, dirigida pelo professor Whit Burnett, seu mentor, interpretado no filme por Kevin Spacey, condenado hoje ao esquecimento por assédio sexual. Oona e Salinger foram desse tipo de noivos que se beijam ainda com os lábios fechados.

Se escreve para apaixonar, para que te desejem, reconhecem alguns escritores. Algo parecido aconteceu a F. Scott Fitzgerald quando foi chamado a compor os batalhões para a Segunda Guerra Mundial durante o período de instrução em Camp Sheridan, no Alabama; com uniforme de soldado foi a um baile no Country Club, na cidade próxima de Montgomery, onde conheceu e bela garota do sul Zelda Sayre. Chamou-a para dançar e na pista o casal foi admirado por sua beleza frívola, como o ideal de uma existência evanescente. Apaixonaram-se. Ela estava disposta a se entregar enquanto Francis Scott não fora mais que um belo passatempo, escritor de contos e de anúncios de publicidade. Mas, um dia veio-lhe o sucesso com seu primeiro romance – Este lado do paraíso – e o redemoinho da fama levou também a moça em seus braços. Ao contrário de Salinger que se alistou para a Segunda Guerra Mundial, participou no desembarque na Normandia e sob as bombas descobriu que Oona O’Neill, sua noiva tão inocente, a quem escreveu mil cartas de amor, havia se casado com Charles Chaplin, 40 anos mais velho que ela.

Com um esforço neurótico, J. D. Salinger tratava de colocar seus contos em revistas com The Story, Saturday Evening Post, Bazzar’s, e sobretudo no The New Yorker, edições que haviam consagrado outros nomes da literatura que lhe serviam de espelho no qual se mirava, como o próprio Fitzgerald, Capote e Ernest Hemingway; agora, ninguém era tão difícil ao ponto de lutar até o cansaço com os diretores desses meios a fim de eles respeitassem seus textos até a última vírgula.

A ansiedade por alcançar o sucesso o destroçava e para remediar se fez discípulo de Jesus, de Gotama, de Lao-Tse, de Shankaracharya e de outras joias da constelação celestial. Em 1951, publicou O apanhador no campo de centeio, cujo protagonista, Holden Caulfield, era um adolescente sarcástico, rebelde, inconformista e inadaptado que se comportava com uma autoconfiança irreverente com os seus mais velhos, fossem os pais, os professores ou pastores.

Havia então tocado uma tecla misteriosa e se produziu a explosão. O extravagante Mark Davis Chapman estava com o romance em mãos quando descarregou o revólver contra John Lennon no edifício Dakota. Bombardeado pelo próprio sucesso, Salinger teve que se enterrar vivo num sítio de Cornish, onde seu anonimato se converteu numa lenda até o ponto de chegar o que era uma missão tão difícil como encontrar um macaco em Marte, sempre que o explorador fosse um jornalista, biógrafo, crítico literário ou editor, não se fosse uma jovem admiradora atraente disposta a passar pelas armas. 

Salinger, honestidade Brutal


Por Javier Ocaña  

A figura de Salinger está inevitavelmente associada a uma obra-prima da literatura, o desencantado retrato da adolescência O apanhador no campo de centeio e também, o seu amargo reverso, a foto do ancião amargurado, de punho cerrado em posição de golpe lateral, profundos sulcos marcados na testa, olhos de caminhão em ponto de atropelar a câmera. Um mito com uma aparente dupla face que não se não a mesma, honestidade brutal em sua literatura e em seu espírito, do qual a narrativa de Danny Strong se aproxima a partir das posições mais convencionais. O rebelde no campo de centeio é uma biografia cinematográfica que se e centra no início de sua carreira literária, na publicação de seu único romance, nos situações familiares e nos sintomas físicos, morais e mentais que o levaram ao exílio autoimposto.

Baseado na biografia de Kenneth Slawenski, Salinger. Uma vida, o filme de Strong se aproxima do mistério de uma personalidade incontornável a partir de compreensões surpreendentemente seguras, como se cada passo oferecido no relato, cada situação emocional, servisse, quase num sentido médico, para oferecer um diagnóstico milimétrico de por que o escritor se converteu num fantasma social e autor de uma só obra. O filme foge desse modo da complexidade narrativa para poder encaixar num molde a aproximação vital baseada no que Sidney Lurnet chamava “a escola dramática do patinho de borracha” ou a consecução da verdade psicológica por meio de explicações mais simples.

Em contrapartida de um filme sem estilo sobre um escritor de estilo único, talvez o maior de seus defeitos, e, apesar de tudo, a história é sempre interessante por cada circunstância vital porque passa: (como citado) a relação com o pai, o ego de escritor, a traição amorosa de Oona O’Neill, o trauma da guerra, o assédio do fanático... Suficiente?

Qualquer leitor de Salinger se sentirá decepcionado. Qualquer leitor de Salinger gostará de vê-lo.

Ligações a esta post:
>>> Filmes que contam a vida de escritores.



* O primeiro texto é uma tradução de "Anonimato como obra de arte" e o segundo de "Salinger, honestidad brutal", ambos editados no jornal El País.

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