A aranha negra, de Jeremias Gotthelf
Por Pedro Fernandes
Ao tratar
sobre a simbologia da casa Mircea Eliade observa o valor da fundação do que
então constituirá uma reinauguração do episódio mítico da origem do mundo; como
pensador que define o homem enquanto complexidade aberta a várias dimensões,
entre elas a de se incluir num âmbito da repetição ritual ou da reatualização
dos gestos paradigmáticos que o constitui desde sua origem, na construção da casa
reúne-se todas as atribuições de reafirmação do cosmos. Na antiguidade, a pedra
de fundação do lar reunia todo o valor dessa ordem – por isso, os ritos de
sagração que são repetidos até hoje de alguma maneira pelo homem moderno, seja
o registro fotográfico da concepção do novo lar, seja o festejo da inauguração,
a benzedura das chaves etc. A pedra de fundação era para o homem primitivo sempre
o elemento sagrado, disposto no umbral da casa e se constituía o centro do novo
cosmos.
Em A aranha negra, de Jeremias Gotthelf, é em torno desse elemento que se constitui as duas narrativas inseridas no âmbito da narrativa principal. Possivelmente essas duas narrativas funcionam como a pedra angular da novela, visto que, é o elemento central delas o que nomeia a própria obra. A novela é uma crônica de costumes: o narrador observa todo o envolvimento de uma família e de uma comunidade rural no rito de um batizado – dos preparativos da comida e da bebida ao batismo, deste acontecimento à reunião de celebração dos familiares e habitantes do vilarejo.
Em A aranha negra, de Jeremias Gotthelf, é em torno desse elemento que se constitui as duas narrativas inseridas no âmbito da narrativa principal. Possivelmente essas duas narrativas funcionam como a pedra angular da novela, visto que, é o elemento central delas o que nomeia a própria obra. A novela é uma crônica de costumes: o narrador observa todo o envolvimento de uma família e de uma comunidade rural no rito de um batizado – dos preparativos da comida e da bebida ao batismo, deste acontecimento à reunião de celebração dos familiares e habitantes do vilarejo.
As duas
narrativas que se intercalam ao episódio principal descrito com bastante atenção
por este narrador de toque cronista são contadas pelo avô do batizando; uma parte
dos que celebram o sacramento se mostra curiosa em saber por que ele depois de reconstruir
a casa, ampliando e atribuindo nova imponência ao lugar, preservou a madeira
antiga do umbral de uma das janelas que chega mesmo a destoar da beleza final
do ambiente. Isto é, são narrativas que cumprem um papel explicativo sobre o motivo
da fundação do lar, como atestará esse segundo narrador, integralmente definido
pelo modelo antigo do contar de histórias, marcado pela experiência e ardiloso
na maneira de contar. As duas narrativas preenchem ainda outra dimensão desse
narrador original; elas reúnem outra de sua qualidade: a de ser uma figura
inserida na tradição, uma vez que são histórias repetidas de pai para filho e
que remontam acontecimentos de ordem secular, cuja originalidade transmutou-se
ao ponto de se incrustar no imaginário coletivo enquanto uma lenda ou uma verdade
irretocável – claro, desprezando-se toda a acepção da palavra com as investidas
contínuas da razão que sempre preferiu reduzir o lendário, o mítico, e, por conseguinte,
a ficção, ao âmbito da mentira e do falseamento.
Aliás, é contra
essa força imperativa do racional, que se posiciona este narrador: primeiro,
toma parte na repetição dos gestos dos seus antepassados; depois sublinha as
consequências terríveis pelas quais passaram os que depois ousaram negar os acontecimentos
vividos pela comunidade na primeira narrativa situada séculos antes da segunda narrativa.
Emmental, recebe nos tempos de sua fundação a visita de um imponente comandante
que expropria a terra e condena o seu povo à escravidão contínua na construção
de seu castelo e depois na fundação de uma extensa passagem sombreada ao redor
da fortificação. Esse segundo episódio desencadeará toda a sorte de
adversidades futuras: uma mulher assume um pacto com diabo, depois que este oferece
todas as condições possíveis para que os camponeses cumpram as ordens de Hans
von Stofflen e tenham tempo para se dedicar ao plantio para o seu sustento no
ano em curso. As duas atividades, dada a imposição imediatista da ordem, encontram-se
impossibilitadas de se realizar em simultâneo. Se o pacto fáustico, à primeira
vista funciona perfeitamente, logo se mostrará numa cilada de proporções muito
além dos limites previstos pelos mentores.
Condenada a
um martírio em que se vê transmutada numa aranha, Cristina e extensa parte do
vilarejo, incluindo os do castelo pagarão com a vida até que o pactuado possa
ser cumprido. Se o ardil funda toda a miséria a que estão condenados, a única
alternativa para a recuperação do estado original das coisas, é, subverter de
maneira ardilosa a condição imposta. A alternativa, vale-se novamente uma
mulher de Emmental, é seguir a estratagema popular segundo o qual é possível desviar
o maligno para o interior de uma madeira: o fato assim consumado reinstaura a
ordem do vilarejo.
A segunda
narrativa atesta como Emmental atravessa outro grave período de horror e
miséria depois que a história é desacreditada pelos moradores da casa séculos mais
tarde e abrem a prisão da aranha que logo se mostra como um abrir a caixa de
Pandora. Trata-se de uma história que, além de retomar o valor de verdade
daquilo que passa a se negar como falseamento, como definimos acima, se
estabelece como feito reiterativo do caráter pedagógico assumido pelo relato –
gesto fundador das antigas narrativas populares. Mais que sublinhar os acontecimentos
vividos pelos antepassados, este avô quer integrar a nova geração à tradição e
aos seus valores, ao perceber nesta um profundo desinteresse e distanciamento dos
ritos fundados pelos antepassados, como ficará demonstrado no início da novela com
o atraso da madrinha para o batismo, a recusa de seguir à risca o proposto pelo
ritual praticado quase à revelia ou ainda a introdução de alguns novos costumes
como o de encher os da família do batizando de presentes quando esquece-se de
saber o nome do próprio afilhado que precisa ser soprado ao ouvido do padre no
momento do batismo ou ainda as justificativas variadas dos do vilarejo para deixar
de ir ao banquete de celebração pelo batismo ou se atrasar para esta ocasião de
comunhão. Um dos elementos de tensão da novela é mesmo esse impasse entre a
tradição e a novidade: além das situações destacadas aqui, vale citar o breve
debate entre os convidados do banquete de celebração do batizado sobre a ausência
de mulheres ideais para o casamento, uma queixa masculina que é respondida
também pela madrinha com uma crítica ao caráter cada vez mais vulgar e
desavergonhado dos homens.
Assim, a
vaidade, a soberba, a ambição, a ganância, o individualismo, a perspicácia de cunho
ardiloso, o afastamento dos desígnios determinados pela religião e pelo sagrado,
a ruptura dos preceitos coletivos que fundamentam a permanência da ordem e logo
a negação ou subversão do estabelecido são elementos recuperados pelas duas
narrativas contadas pelo avô de Hans Uli; com eles, o patriarca almeja continuar
que seus permaneçam fiéis a tais desígnios sob a condição de desfazimento de
todo o espírito de harmonia que paria sobre todos quando, por exemplo, olham
para a nova casa. Se o início da novela se abre com este lugar a repetir a
ordem ritualística do batizado, ela finda justamente com uma descrição do
narrador que integra este espaço numa dimensão cosmogônica: “Logo tudo silenciou
ao redor da casa, logo o silêncio penetrou também em seu interior. Lá estava
ela mergulhada na paz, limpa e bela reluzia no vale banhado pelo luar; delicada
e afetuosamente ela agasalhava em doce sono pessoas de valor, como dormem
aqueles que trazem no peito o temor a Deus e bons pensamentos, que jamais serão
despertados do sono pela aranha negra, mas sim pelo amável brilho do sol. Pois
onde habita semelhante mentalidade a aranha não pode agir, nem de dia nem de
noite.” O próprio narrador da novela se convence das histórias narradas pela
sua personagem e acredita que o zelo para a normalidade é o que garante a paz
de existir plenamente.
O curioso,
entretanto, é que esta ordem fundadora da cosmogonia não se utiliza somente do
polo que aparentemente melhor o define. As duas histórias contadas pelo patriarca
Uli também respondem porque. O que determina o cosmos é a contínua observância
de que mal participa no enforme da existência e negá-lo pode servir ao seu despertar
e o desmantelamento da unidade estabelecida. As ocasiões que mergulham Elemmental
na desordem são as em que os homens duvidam da existência do mal, esquecem das
suas forças e preferem entregar-se aos ímpetos do corpo.
Assim se
justifica a presença contínua da aranha num umbral da casa; possivelmente ela justifica
a irrupção das pequenas celeumas familiares e estas, por sua vez, reestimulam os
da casa a recuperar os princípios da harmonia. Ao menos é isso o que se
estabelece na voz do avô ao dizer que torna as duas histórias públicas a fim de
provar aos ouvintes sobre a felicidade da família. Na mesma linha, o padrinho
mais novo, ressalta que independente de ser verdade ou não as histórias contadas,
elas se revestem de valores indispensáveis, isto é, qual afirma Mircea Eliade,
toda cosmogonia inaugura também uma ontofonia, “manifestação plena do Ser”. O que
a novela de Jeremias Gotthelf estabelece a partir de uma noção de habitar é ser (e isto justifica a confluência da narrativa entre formação do
espaço de morada e da existência efetiva, já que o batismo inaugura para a
existência o indivíduo) é que para ser e estar no mundo requer do homem uma
forma fixa. Aqui, a narrativa sobre o elemento que constitui o centro da cosmogonia,
orienta a ideia de que o espaço habitado pelo homem enquanto favorece sua
existência também lhe revela sua necessária condição de fixidez.
E, para recuperar
o ponto inicial destas notas, segundo o qual em torno do elemento central se
funda a novela e este gesto reafirma a própria ordem repetitiva do universo –
isto é, essa casa de Elemmental é um microcosmo – vale dizer que o ato
cosmogônico de criação do mundo se constitui a partir dos que resta da
destruição de um grande monstro que impunha a desordem como princípio elementar
do universo. Desse modo as histórias do avô reencenam a mesma precisão do rito
fundador do mundo: emergir o cosmos do caos. O cosmos é produto do contínuo controle
das forças desagregadoras e relativizantes da desordem.
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