Vinte e uma obras recentes do romance francês
Jean
Marie-Gustave Le Clézio ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 2008; seis anos
depois, um compatriota seu, Patrick Modiano, recebia também o galardão mais
importante das letras. A França foi a terra de Stendhal, Balzac, Flaubert e na
atualidade continua tendo uma diversidade de romancistas de primeiro nível. Embora
nem sempre sejam nossos conhecidos, pela maneira tímida como suas obras circulam por
aqui, a lista a seguir chama atenção para o que podemos dizer "estes são nomes do primeiro quartel do século XXI para se ter em conta".
É impossível
ficar só num romance de Modiano, mas muitas de suas obsessões estão nas páginas
que circulam no Brasil, que, muito recente recebeu duas trilogias do escritor:
Para você não se perder no bairro (Ronda
da noite, Uma rua de Roma,
vencedor do prestigioso prêmio Goncourt em 1978, e Dora Bruder) e Essencial (Flores
da ruína, Remissão da pena e Primavera de cão).
Algo
semelhante acontece com Le Clézio, que nesta lista é apresentado com A quarentena. Mas há outros títulos dele
por aqui igualmente interessantes de se ler como Peixe dourado, Diego e Frida, Pawana,
Deserto, Refrão da fome e O africano,
são alguns. O enfant terrible das
letras francesas deste século é Michel Houellebecq, autor de obras como O mapa e o território. Frederic
Beigbeder conquistou espaço na literatura com O amor dura três anos (título em tradução livre) e reafirmou esse
lugar com a publicação recente de Oona e
Salinger; dele, só conhecemos em português até o presente 29,99. Fundamentais nesse grupo são Jean
Echenoz (há vários títulos dele no Brasil), Pierre Michon (igualmente) e seu
xará Lemaitre.
Se formos
visitar as grandes romancistas da história da literatura francesa recente encontraremos
uma lista a perder de vista: Annie Ernaux é uma voz fundamental; Delphine de
Vignan; Muriel Barbery e seu belíssimo A
elegância do ouriço; Yasmina
Reza; Leïla Slimani, a primeira autora de origem marroquina a vencer o Goncourt, o mais prestigioso prêmio literário francês e outras mais que o leitor encontra a seguir.
Há ainda outros títulos que gostaríamos de acrescentar à lista, mas que não conseguimos encontrar traduzidos para o português: é o caso da trilogia Vernon Subutex, de Virginie Despentes, autora que faz par com Houellebecq como enfant terrible das letras francesas, uma referência na literatura de corte feminista (pode se ler, no Brasil, o ensaio autobiográfico Teoria King-Kong); Faber, o destruidor (tradução livre), de Tristan Garcia, obra misteriosa e cheia de nuances sobre a juventude e a chegada da idade adulta; o singular romance Uma semana de férias, que trata sobre relações perigosas e de incesto, de Christine Angot, autora que tem, inclusive um livro intitulado Pourquoi le Brésil? (Por que o Brasil?); Como aprendi a ler, de Agnès Desarthe, um relato sobre sua relação com as letras, entre a delicadeza e a ironia da cultura francesa; ou Homens, de Laurent Mauvignier, um romance impressionante sobre a guerra e sobre as grandes sombras de história recente da França, o conflito na Argélia. Entre outros.
Sem mais,
vamos à lista. É, como todas as listas apresentadas no blog, uma seleção não hierárquica,
livre e aberta. As apresentações das obras são realizadas a partir das sinopses
oferecidas pelas editoras. Então, tem espaço na estante?
Limonov, de Emmanuel Carrère
Nesta lista
poderia aparecer títulos como Outras vidas
que não a minha ou O adversário
ou Um romance russo mas eis uma escolha
fundada na recorrência. Limonov conta
na forma de um romance eletrizante, uma história real – a vida de uma figura
polêmica cuja trajetória – de poeta russo a revolucionário, de celebridade a
presidiário – acompanha a própria história da Europa no século XX. Emmanuel
Carrère parte de fatos reais – a vida de Eduard Limonov, delinquente, escritor,
mendigo, mordomo, político radical russo – para construir uma história de não
ficção com as bases clássicas do romance, em que acompanhamos a vida e as
peripécias de uma personagem marcante, passando por uma série de quedas e
apogeus.
O sermão
sobre a queda de Roma, de Jérôme Ferrari
Na contramão
de tantos heróis romanescos, Matthieu e Libero não querem mais saber de Paris.
Amigos desde a infância, os dois renunciam aos estudos de filosofia e às
promessas da metrópole para retornar à Córsega e assumir a gerência de um bar.
Em pleno verão, não faltam clientes e garotas, a bebida é farta e o negócio
prospera. Tudo vai bem nesse que parece ser o melhor dos mundos possíveis,
feito à imagem e semelhança de seus jovens demiurgos. E tudo continuaria assim,
não fosse a persistência com que O sermão sobre a queda de Roma cuida
de demolir toda e qualquer ilusão de seus protagonistas. Num movimento
vertiginoso, o romance de Jérôme Ferrari faz do bar dos dois amigos o ponto
sobre o qual se abatem os fantasmas do desejo e da história, os próprios e os
alheios. Ao fio dos capítulos, vai se armando uma grande coalizão: as pequenas
misérias da vida de aldeia juntam-se às grandes catástrofes do século XX, a
queda do império francês mistura-se ao fim do poderio romano, a figura de um
avô amargurado confunde-se com a de um bispo da Antiguidade. Tudo para pôr fim
à utopia erótica e etílica de Matthieu e Libero.
Meninos valentes, de Patrick Modiano
Outros
títulos estão ditos na introdução desta lista. A base dessa obra aqui
apresentada está nas próprias recordações de adolescência de Modiano. O livro,
no entanto, não é uma autobiografia, até porque o escritor nada revela sobre
sua própria vida. O que está em foco é o extinto colégio Valvert, apelidado de “O
castelo” outrora situado nos arredores de Paris. Misturando ficção a suas
memórias, o autor conta, com muito carinho, as histórias de antigos alunos e
professores. Embora o tema seja um só, cada capítulo independe dos outros e
pode ser lido como um conto isolado. O narrador relembra seus tempos de
estudante e faz um inventário do destino de seus ex-colegas de colégio:
internos que vinham de todo tipo de família, das mais abastadas às mais
suspeitas. Em comum, eles tinham o fato de que nenhum familiar parecia ter
muito tempo para se dedicar pessoalmente a sua educação. Quase 20 anos depois
da publicação de Meninos valentes, obra original de 1982, Patrick Modiano
dedicaria um livro inteiro a Meu Tesouro, La Petite Bijou; segundo o autor, as
duas obras se complementam.
O mapa e o território, de Michel
Houellebecq
A polêmica
mais recente do escritor francês foi o romance Submissão, mas o livro aqui indicado continua sendo sua obra-prima.
A história da vida do artista plástico Jed Martin é uma perturbadora fábula
sobre arte, dinheiro, amor, amizade e morte, em que Houellebecq consegue
combinar, com maestria, poesia e violência, desesperança e compaixão. Lançado
após um hiato literário de cinco anos, o livro rendeu-lhe o primeiro Goncourt. No
entanto, não é um título livre de polêmica: aqui, por utilizar descrições de
produtos, lugares e personalidades publicadas originalmente em sites, panfletos
e reportagens, o livro incitou uma discussão sobre os limites entre citação e
plágio. É um romance repleto de sutileza e fina ironia. Houellebecq delineia,
de maneira impiedosa, a sociedade francesa, o mercado de arte e as altas rodas
literárias. Mas, apesar da visão pessimista da natureza humana, permanece ao
fim da leitura um sentimento de beleza, melancolia e compaixão.
29,99, de Frédéric Beigbeder
O livro é
descrito como uma parábola sobre a propaganda, seus súditos e profissionais,
entre eles o próprio autor. Octave é um publicitário famoso, com um salário
invejável e capaz de atrair ainda mais dinheiro, mulheres e cocaína em
quantidades suficientes para torná-lo uma espécie de super-homem. Mas, na
verdade, logo o leitor descobre que Octave está mais para morto do que vivo, porque
é infeliz, insatisfeito e nem todo o aparente glamour de sua vida o impede de ser um eterno nostálgico, noite e
dia suspirando pela mulher que o deixou. Um vivo retrato, vê-se, do homem do
nosso tempo, instado entre a aparência e a idealização que o definia no
passado.
Uma desolação, de Yasmina Reza
Este é o único
romance da escritora francesa publicado no Brasil até meados de 2018. Não foi
recebido de maneira positiva pela crítica por aqui e lá fora a obra dela que
tem chamado atenção é Felizes os felizes
(tradução livre). Mas, Uma desolação
pode ser uma maneira livre de entrar no universo romanesco forjado por Yasmina
Reza. Aqui, a personagem contempla a própria vida e a velhice em que se
encontra, e vê aquela como sucessão de malogros e esta como o campo em que não
resta mais nada: olha para o filho e dá com alguém cujo estreito horizonte é
afastar o sofrimento e não se fazer notar; olha para si mesma e repassa
fracassos, sonhos não realizados, prazeres distantes. Através dessa personagem
a autora procura explicar o que é a velhice, último ato de um espetáculo que
jamais poderá voltar a ser encenado.
Baseado em fatos reais, de Delphine de
Vigan
Esta é uma
obra em que o leitor é levado constantemente a questionar o que lhe é
apresentado; Delphine de Vigan constrói um clima confessional, sombrio e
opressivo para expor a obsessão do mercado editorial e do cinema pelas
narrativas baseadas em fatos reais. A linha tênue entre verdade e mentira
oscila para enriquecer uma poderosa reflexão sobre o fazer literário e
questionar as fronteiras entre aparentes dicotomias, como real e ficção, razão
e loucura, público e privado. Após o grande sucesso de seu último livro, em que
revelava perturbadores segredos familiares, Delphine se vê diante da temível
pergunta: o que vem depois de um texto tão pessoal, que comove tantos leitores?
A inércia. O sucesso a fragiliza a tal ponto que a deixa completamente
vulnerável. Ela não consegue mais escrever nem uma linha, nem sequer se sentar
diante do computador ou segurar uma caneta. Está esgotada, e vive assombrada
pela pressão da próxima obra. O romance se faz a partir do bloqueio
criativo, do sentimento de impotência e de isolamento permeiam constantemente
sua vida.
Até nos vermos lá em cima, de Pierre Lemaitre
Ganhador do
Prêmio Goncourt em 2014 e logo tornado fenômeno editorial na França esta
história de três ex-combatentes desenha um afresco de uma sociedade decomposta
pela barbárie da guerra. Síntese brilhante de gêneros tão diversos como o
relato de aventuras, o drama psicológico, a crônica social e o manifesto antibelicista,
a narração avança a um ritmo trepidante, com variações para o humor, o ódio e a
compaixão. Em novembro de 1918, depois de apenas alguns dias do armistício, o
tenente Aulnay-Pradelle ordena uma absurda ofensiva que culminará com os
soldados Albert Maillard e Édouard Péricourt gravemente feridos num confuso e
dramático incidente que ligará seus destinos inexoravelmente. Édouard, de
família abastada e com um talento excepcional para o desenho, sofreu uma horrível
mutilação e se nega a se reencontrar com seu pai e sua irmã. Albert, de origem
humilde e caráter pusilânime, está disposto ao improvável a fim de compensar a Édouard,
a quem lhe deve a vida. E Pradelle, aristocrata, cínico e mulherengo, está obcecado
por recuperar seu status social.
Quando os três voltam a Paris, se rebelam contra uma realidade que os condenam à
miséria e ao esquecimento.
Tigre de papel, de Olivier Rolin
Este é um livro que renova o romance político e conta a história de uma
geração com poesia e humor. O autor viveu os inflamados acontecimentos de Maio
de 68, quando uma revolução que parecia movida pelo desejo tomou conta do
mundo, tendo Paris como epicentro. O objetivo da Causa, a organização em que
militava Martin, narrador e alter-ego literário de Rolin, era acabar com os
"tigres de papel" do imperialismo, mas não só isso: por trás, havia o
desejo de reparar o erro da geração de seus pais, que capitularam diante dos nazistas
na Segunda Guerra e sofreram uma derrota sem honra na Indochina, na guerra
colonial que anos depois culminaria na tragédia do Vietnã. O acerto de contas
que Rolin faz em Tigre de papel, portanto, não é apenas com a sua própria
geração, mas também com a de seus pais e com a seguinte, representada pela
jovem que ouve a narração no banco do carona. Ela é Marie, a filha de Treize,
seu melhor amigo e companheiro de militância na Causa, morto no começo dos anos
1980 em circunstâncias que vão sendo reveladas ao longo da história. Na virada
do século, Rolin transformou "essas histórias que dormiam nos jornais de
trinta anos atrás", como diz a epígrafe de Marcel Proust, num romance
denso e belo sobre a sua geração, que não fez a Revolução mas extraiu dela algumas
lições de beleza. O livro foi lançado na França em 2002, com grande
repercussão. Foi finalista do Prêmio Goncourt e ganhou o France Culture 2003.
O fim de Eddy, de Édouard Louis
Na França e nos países onde tem sido publicado a obra de Louis tem causado retorno
positivo do público e da crítica. O romance descreve a sua infância e
adolescência como filho de uma família operária pobre e num meio onde o
racismo, a homofobia e o alcoolismo eram uma constante e violenta presença. O
leitor tem contato com a infância e adolescência de Eddy Bellegueule em uma
aldeia da Picardia, a rejeição que sofre de pessoas da aldeia e da sua própria
família por causa de seus modos efeminados e a violência e humilhações que
suporta num ambiente que detesta homossexuais. As experiências do narrador
retratam um mundo onde a pobreza e o álcool acompanham a reprodução social, que
leva as mulheres a se tornar caixas depois de abandonar seus estudos e homens a
passar da escola diretamente para a fábrica. Eddy Bellegueule finalmente
percebe sua atração sexual por homens, e sua aversão para as relações
heterossexuais, mas tenta retornar à norma. Antes da conclusão de seu fracasso,
ele decidiu fugir e acaba deixando o caminho que lhe foi traçado para se juntar
a uma escola de Amiens, onde descobriu uma outra classe cujos códigos de
conduta são diferentes.
Fuja logo e demore para voltar, de Fred
Vargas
Joss Le Guern é um ex-marinheiro que decidiu recuperar um antigo ofício de
família: um de seus ancestrais percorria aldeias da Bretanha levando notícias
do Império. Le Guern, porém, instala seu pregão em plena Paris de hoje. Em três
edições diárias, ele anuncia declarações de amor, protestos e boas novas de
quem lhe deixar bilhetes – e alguns francos – em uma urna instalada em praça
pública. Numa época dominada pela alta tecnologia, o pregoeiro torna-se uma
atração. Até que mensagens apocalípticas começam a aparecer: as citações, em
latim e francês antigo, preveem a chegada de uma onda de peste negra. Ao mesmo
tempo, um grande "4" invertido aparece inscrito em tinta preta nas
portas de diversos prédios da cidade. Cadáveres não demoram a surgir,
enegrecidos e picados de pulga. Jean-Batiste Adamsberg e seu assistente
Danglard são chamados para a investigação. Algumas das qualidades da prosa da
autora são a narrativa bem-humorada e o talento na criação de personagens
únicos: o romance se compõe de uma galeria de tipos inesquecíveis.
A quarentena, de J. M. Le Clézio
Este é um
livro sobre o mar. Um romance de aventuras, uma meditação sobre a natureza, uma
fábula sobre a potência do amor. Terminada a leitura, estamos esvaziados, como
se tivessem nos submetido a uma misteriosa provação física – privilégio das
grandes obras, que nos dão a verdadeira medida de uma experiência
literária. A quarentena é o período que um grupo de europeus é
obrigado a passar numa ilha, onde estarão entregues a si mesmos, à doença, ao
medo, à incompreensão e ao ódio. A ilha, lugar fechado e aberto ao mesmo tempo,
figura clássica da utopia política, será para eles a antecipação do inferno.
Mas será também o berço da intimidade em êxtase e do delírio amoroso.
O Salão de Wurtemberg, de Pascal Quignard
“Quando no
silêncio da noite sondamos as profundidades do coração a indigência das imagens
de que somos feitos a partir do gozo nos enche de vergonha. Eu não estava ali
na noite de minha concepção. É difícil
ver o dia que nos antecede. Uma imagem falta na alma. Dependemos de algo
que aconteceu necessariamente mas nunca nos será revelado. A esta imagem que
falta chamamos ‘origem’”. Assim, inicia Pascal A noite sexual (um dos seus melhores livros até o presente inédito
no Brasil). Nele se constata algumas das obsessões do escritor francês: o silêncio.
O salão de Wurtemberg é o seu
terceiro romance e revela outra: a música. Uma história de amor e amizade e um
inventário de memórias. Charles Chenogne, músico famoso, retira-se para sua
propriedade no condado de Wurtemberg para escrever um livro. Ou melhor, para
passar sua vida a limpo. Nesse processo irá descobrir que a pedra fundamental
de sua existência foi sua amizade com Florent Seinecé. Pessoas diferentes a
quem a guerra aproxima, a quem uma mesma mulher separa. Quando Charles encontra
Florent pela primeira vez, na casa de Madame Loudier vê, numa cômoda, um
bibelô: um sátiro perseguindo uma ninfa. Anos mais tarde, atento ao mesmo
objeto, percebe que era outra a imagem: Eros fugindo de Psiquê. Um belo romance
sobre o tempo e sua inexorabilidade, esta é uma obra carregada das imagens que Quignard
ama esmiuçar.
Coração e alma, de Maylis de Kerangal
Le Havre.
Simon Limbres regressa com seus amigos de uma aventura de surf. A camioneta na qual viaja bate contra uma árvore. Pouco depois,
no hospital, o jovem morre, mas seu coração continua batendo. Thomas Remige, um
especialista em transplantes, deve convencer aos pais em estado de choque de
que esse coração poderia continuar vivendo noutro corpo e salvar, talvez, uma
vida. Este é o contundente ponto de partida do romance que mantém o leitor atento
até às últimas linhas. Um esplêndido ensaio autobiográfico em que se narra em
primeira pessoa a experiência de viver com um coração de outra pessoa. Esta é a história de um
transplante cardíaco. Um relato de precisão cirúrgica repleto de personagens
inesquecíveis, em que histórias pessoais, diálogos e descrições técnicas se
entrelaçam num ritmo frenético, digno de um grande filme de ação. São as vinte
e quatro horas épicas entre o terrível acidente e o instante em que seu coração
recomeça a bater no peito de uma parisiense de cinquenta anos.
Três
mulheres fortes, de Marie NDiaye
As primeiras
linhas desse romance já são marcadas por aquilo que melhor descreve a prosa de
Marie NDiaye: a densidade. O leitor afunda como numa areia movediça. Ela
trabalha o presente, ela se aprofunda na massa do presente com suas tensões e
tropismos. Ela trabalha a viscosidade de nosso cotidiano massudo mais rasgado
de faíscas que abrem para o maravilhoso. Neste livro, três histórias de três
mulheres que suportam as mais diversas formas de sofrimento.
14, de Jean Echenoz
Vou embora e Correr são outros dois títulos de Echenoz no Brasil. 14 foi um grande sucesso de crítica e
público. O livro, composto por quinze capítulos breves, aborda de forma
original o tema da Primeira Guerra Mundial, a partir das histórias individuais
de cinco amigos, e uma mulher, que partem para o front sem ter a menor ideia do que os espera. Num estilo apurado,
avesso a toda ênfase sentimental ou épica, Echenoz revisita o conflito que
definiu os rumos do século XX a partir da perspectiva da gente comum, que se
viu entregue à própria sorte, fosse para sobreviver à longa matança, fosse para
recomeçar a vida, um dia. A obra nasce do divórcio entre a euforia dos
primeiros tempos e o horror das trincheiras. Num estilo avesso a toda ênfase
sentimental ou épica, Echenoz revisita o conflito que definiu os rumos do
século XX a partir da perspectiva da gente comum, da carne de canhão quase
anônima que se viu entregue à própria sorte, fosse para sobreviver à longa
matança, fosse para recomeçar a vida, um dia.
Vidas
minúsculas, de Pierre Michon
Este é o primeiro
romance do autor. Vidas desoladas, vidas de antepassados, parentes e amigos,
personagens cambaleantes na província francesa em torno de um vilarejo
esquecido. Uma miragem da imortalidade, um acesso de existência, este é o mote da
obra, em que Pierre Michon lapida trajetórias de vida que, de tão
“miniaturizadas”, tornam-se universais. Desfilam vidas esculpidas a cinzel. Um
órfão atravessando o oceano em busca do imaginário utópico de riquezas
africanas; a lembrança afetiva dos avós e do contato com objetos detentores de
passado; os embates – descobertas de mundos – com os colegas de classe no
liceu; o silêncio vivo da pequena irmã que não chegou a conhecer mas de quem
depreende os rastros; a bela psicanalista que o coloca à escrivaninha; ou os
tantos personagens a perambular em hospitais, igrejas, cafés, gente defasada no
tempo ou nas origens, vivendo à margem, nas fronteiras do real e, por isso
mesmo, detentora da verdade. Rimbaud, o
filho e Senhores e criados e outras
histórias são outros livros de Michon no Brasil.
A arte francesa da guerra, de Alexis Jenni
Professor de
ciências, aos quarenta e oito anos Alexis Jenni se considerava um mero
"escritor de domingo" quando enviou pelo correio este seu primeiro
romance para a mais prestigiosa editora da França:
Gallimard. O livro foi abraçado pelos editores e ao ser publicado, em 2011,
arrebatou o Goncourt, o mais importante prêmio literário do país. De estilo
clássico, esse romance épico parte de um debate que se tornou especialmente
atual durante o governo de Nicolas Sarkozy (2007-2012): em que consiste a
identidade francesa? Como as recentes guerras de independência de suas
ex-colônias implicaram a constituição de um ideário racista e xenófobo na
França contemporânea? Lyon, década de 1990. O jovem narrador perdeu a mulher, a casa e o emprego
quando conhece Victorien Salagnon, veterano do exército francês. O encontro com
um homem que viveu a "guerra de vinte anos" (apelido que o militar dá
para o período que se estendeu entre a Segunda Guerra Mundial e a independência
da Argélia) não poderia lhe parecer pior. Mas Salagnon sabe pintar, e o
narrador, bem, ele sabe narrar. Os dois resolvem fazer uma troca: o ex-soldado
lhe ensinará a usar o pincel e o narrador escreverá sua história. Como a memória de um país é transferida de uma geração a outra? Que atrocidades
são reveladas, e quais são escondidas por quem as cometeu? A partir da
investigação minuciosa dos eventos do século XX, A arte francesa da guerra
oferece um retrato amplo da sociedade francesa contemporânea e constrói uma
gênese de seus problemas: a obsessão pela questão da imigração, o desemprego e
a violência dos subúrbios. Por vezes aventuresca, sem deixar de tecer
comentários de grande valor sociológico, essa obra monumental revela o pleno
domínio narrativo de Alexis Jenni em sua estreia literária.
Bússola, de
Mathias Enard
Romance
premiado com o Goncourt, um dos mais importantes prêmios literários da literatura francesa, este livro é uma meditação musical e encantatória sobre Oriente e
Ocidente, sobre "nós" e os "outros". Cai a noite sobre Viena e Franz Ritter, um
musicólogo apaixonado pelo Oriente Médio, procura em vão dormir, à deriva entre
sonhos e memórias, melancolia e febre. Revisitando sua vida – suas numerosas
estadias em Istambul, Alepo, Damasco, Palmira, Teerã –, seu amor por Sarah, uma
erudita francesa dona de uma inteligência feroz, e a memória de outros
viajantes, aventureiros, acadêmicos e artistas do Ocidente que se apaixonaram
pelo “outro” não europeu, Ritter (portador de uma doença aniquiladora)
atravessa a noite numa vertigem de memórias, viagens e histórias.
A elegância do ouriço, de Muriel Barbery
À primeira
vista, não se nota grande movimento no número 7 da Rue de Grenelle: o endereço
é chique, e os moradores são gente rica e tradicional. Para ingressar no prédio
e poder conhecer seus personagens, com suas manias e segredos, será preciso
infiltrar um agente ou uma agente ou — por que não? — duas agentes. É
justamente o que faz Muriel Barbery em A
elegância do ouriço, seu segundo romance. Para começar, dando voz a Renée,
que parece ser a zeladora por excelência: baixota, ranzinza e sempre pronta a
bater a porta na cara de alguém. Na verdade, uma observadora refinada, ora
terna, ora ácida, e um personagem complexo, que apaga as pegadas para que
ninguém adivinhe o que guarda na toca: um amor extremado às letras e às artes,
sem as nódoas de classe e de esnobismo que mancham o perfil dos seus muitos
patrões. E ainda há Paloma, a caçula da família Josse. O pai é um figurão da
política, a mãe dondoca tem doutorado em letras, a irmã mais velha jura que é
filósofa, mas Paloma conhece bem demais o verso e o reverso da vida familiar
para engolir a história oficial. Tanto que se impõe um desafio terrível: ou
descobre algum sentido para a vida, ou comete suicídio (seguido de incêndio) no
seu aniversário de treze anos. Enquanto a data não chega, mantém duas séries de
anotações pessoais e filosóficas: os Pensamentos profundos e o Diário do
movimento do mundo, crônicas de suas experiências íntimas e também da vida no
prédio. As vozes da garota e da zeladora, primeiro paralelas, depois
entrelaçadas, vão desenhando uma espiral em que se misturam argumentos
filosóficos, instantes de revelação estética, birras de classe e maldades
adolescentes, poemas orientais e filmes blockbuster. As duas filósofas, Renée e
Paloma, estão inteiramente entregues a esse ímpeto satírico e devastador,
quando chega de mudança o bem-humorado Kakuro Ozu, senhor japonês com nome de
cineasta que, sem alarde, saberá salvá-las tanto da mediocridade geral como dos
próprios espinhos.
Canção de
ninar, de Leïla Slimani
Apesar da
relutância do marido, Myriam, mãe de duas crianças pequenas, decide voltar a
trabalhar em um escritório de advocacia. O casal inicia uma seleção rigorosa em
busca da babá perfeita e fica encantado ao encontrar Louise: discreta, educada
e dedicada, ela se dá bem com as crianças, mantém a casa sempre limpa e não
reclama quando precisa ficar até tarde. Aos poucos, no entanto, a relação de
dependência mútua entre a família e Louise dá origem a pequenas frustrações –
até o dia em que ocorre uma tragédia. Com uma tensão crescente construída desde
as primeiras linhas, o livro trata de questões que revelam a essência
de nossos tempos, abordando as relações de poder, os preconceitos de classe e
entre culturas, o papel da mulher na sociedade e as cobranças envolvendo a
maternidade. Publicado em mais de 30 países a obra fez de Leïla Slimani a primeira autora de
origem marroquina a vencer o Goncourt, o mais prestigioso prêmio literário
francês.
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