Sonhos do insone Vladimir Nabokov
Por Ignacio Vidal-Folch
Vladimir Nabokov. Foto: Philippe Halsman |
O professor
da Universidade de Missouri, Gennady Barabtarlo, tradutor para o russo dos
últimos romances de Vladimir Nabokov por escolha do filho do escritor, Dmitri,
organizou, comentou e editou os sonhos que o autor de Lolita anotou durante o ano de 1964 e seus comentários sobre
reunidos em seus Diários. São
materiais atualmente preservados pela Biblioteca Pública de Nova York e até
agora inéditos. A publicação (da Princeton University Press) intitula-se de
forma alusiva à persistente insônia do romancista russo-estadunidense que
apenas uma forte medicação diária conseguia resolvê-la: Insomniac dreams. Experiments with time by Vladimir Nabokov (algo como:
Sonhos insones. Experiências com o tempo por Vladimir Nabokov).
Se Nabokov
desenvolveu interesse especial pelas visões e os relatos que vivemos quando
estamos dormindo não foi, que se diga, uma consequência das teorias da
interpretação psicanalítica de Freud, algo que detestava, mas porque neles acreditava
conseguir detectar uma possibilidade inexplorada e promissora de escapar do
tempo e voltar ao passado.
Nesse
sentido, para Nabokov tais experiências influenciaram diretamente na escrita de
obras como Ada ou ardor (1968), um de
seus títulos e vieram de um livro publicado em 1927, intitulado Um experimento com o tempo – obra do excêntrico
filósofo irlandês, muito lido então e hoje esquecido, John Dunne (1875-1949)
que trata sobre os temas dos sonhos pré-cognitivos e sobre uma teoria do tempo
que denominou “serialismo” e desenvolveu noutros três livros: The Serial Universe, The New Immortality e Nothing Dies1.
Nabokov,
profundamente interessado nas teorias de Dunne, seguiu pontualmente as
instruções de seu Experimento,
apontando a cada manhã, ao acordar, seus sonhos, com o propósito de encontrar
neles, ao analisá-los depois, uma relação com acontecimentos vindouros, para
demonstrar a teoria de que não é o sonho de hoje que previa os eventos de
amanhã, mas o contrário: são esses eventos os que informam à mente adormecida com
o sonho antecedente. O tempo pode transcorrer em direção inversa.
Em outubro
de 1964, e durante três meses, Nabokov apontou seus sonhos em suas famosas fichas,
corrigidas repetidamente e reescritas com o propósito de publicá-los, algum
dia, talvez como parte de um texto que nunca alcançou escrever, conforme
sustenta Barabtarlo.
Para os
muitos leitores que, como o professor de Missouri, idolatram Nabokov, Insomniac dreams, com seus sonhos
eróticos, violentos, literários, é um livro encantador e sugestivo; uma maneira
de voltar de voltar a entrar em contato com o grande mestre: “8 de dezembro de
1964, 9.00 a. m. Tomamos o chá com alguns amigos (os Karpoviches?) na grama em
frente à sua casa. Jogado numa espreguiçadeira, muito velho, de aspecto enfermiço
e suando muito, Liev Tolstói. Perguntou-me se Karpovich sabe que não o conheço
ou acredita que não me interessa conhecê-lo. Ouço-o dizer a Karpovich em russo claramente:
‘Não gosto da sua Lolita, mas como
descreve bem a paisagem russa!’ Absurdo.”
Os
resultados do experimento não chegaram a lugar algum, admite Barabtarlo: “Repetidas
vezes Nabokov não chegou a se dar conta da assombrosa semelhança entre as
narrativas de seus sonhos e de suas ficções anteriores, russas ou inglesas”. E
dá o exemplo de Nabokov afirmando o “indiscutível êxito” de seu experimento
quando teve “o sentimento absolutamente claro” de que um sonho ambientado num
museu estava inspirado num filme que viu na televisão três dias antes... sem notar
a extraordinária semelhança do sonho com o conto “A visita ao museu”, que escreveu
vinte anos antes.
Mas,
pensando bem, e embora só seja para não desmentir Nabokov nem renunciar a ideia
do tempo reversível, poderíamos dizer que o filme inspirou o sonho de três
antes; e o sonho, o conto e vinte anos atrás.
Quatro autores em busca de uma teoria sobre
o tempo
A consciência
do tempo, que em efeitos práticos se confunde com a duração e a mortalidade, se
converte em obsessão para três grupos de pessoas: para aquelas que têm pouco
tempo de sobra; para aquelas que a vida parece tão rica e exuberante que preferiam
prolongar interminavelmente; e para os escritores mais influentes do século XX.
Destes, podemos citar Marcel Proust e James Joyce (para a primeira metade do século)
e Jorge Luis Borges e Vladimir Nabokov (para a segunda).
Os quatro
engenharam formas de escapar do caminho fatal: Joyce, jogando o tempo do mundo
inteiro num só dia da vida e da mente de seu anti-herói Leopold Bloom; Proust
inventando-se na memória automática com que resgata do esquecimento e recupera
intacto os dias do passado; Borges, perscrutando os paradoxos e a substância do
mistério do tempo, “nossa substância”.
E Nabokov?
Expondo numa parte pedregosa de seu romance mais exuberante e apoteótica que é
sua obra obra-prima Ada ou o ardor, a
tese sobre a textura do tempo que escreve, livro dentro do livro, seu
protagonista Van Veen, que chegou à suas teorias por adoração da vida, pois as
horas que transcorrem para os miseráveis e suas penas passam vagarosamente, mas
para os felizes elas são esquecidas.
Notas da
tradução
1. Um
variado número de escritores desenvolveu interesse pela teoria de Dunne, como
T. S. Eliot, Aldous Huxley, Adolfo Bioy Casares, Jorge Luis Borges e William
Burroughs.
* Este texto é uma tradução de "Sueños del insomne Nabokov" publicado no jornal El País.
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