O ornitólogo, de João Pedro Rodrigues
Por Pedro Fernandes
O ornitólogo é um filme de rara
sensibilidade, visual e simbólica, e de ricos jogos intersemióticos e
intertextuais; apoia-se, sobretudo por este último motivo, no elemento do duplo
que figura na compreensão da personagem, das situações narradas e na própria
estruturação da obra. O duplo ainda vigora na relação estreita assumida entre a
personagem principal e a natureza da qual Fernando é um vivaz observador, pela
profissão que exerce, esta que nomeia o filme e em parte o próprio herói da
narrativa.
Tratamos a personagem
de herói porque esta preenche em todos os aspectos esse caráter: encantado pela observação dos pássaros numa
baía fluvial, Fernando é, sem perceber, arrastado por uma correnteza e muito
depois encontrado por duas chinesas que pensam fazer fervorosamente o caminho
de São Tiago de Compostela; a fuga desse duplo que almeja, numa releitura secular
do imaginário império feminista, castrá-lo, servirá de transformação espiritual
e pessoal, o colocará sempre no limiar entre a vida e a morte, seja pelo medo
do grupo de rapazes que se reúnem para rituais macabros que aqui figuram entre
a tradição e a diversão, seja pelo convívio que desenvolve com uma figura surda-muda
a que se chama Jesus e depois reaparece como irmão gêmeo – ou duplo – de um
Tomé, no desfecho da trajetória do já António e não mais Fernando, seja a sobrevivência
a um grupo de amazonas cuja tarefa, ainda no mesmo rol de imagens do interesse
sádico das duas chinesas, é a caça de homens.
Ao longo
desse périplo involuntário, impelido pela força da própria natureza que arrasta
o herói em direção a Pádua, fato que só percebe depois de relutar contra o
destino e a descrença, se plasmam ao menos três condições das diversas leituras
possíveis: quem sou é uma construção motivada em parte pelas minhas ações e
outra parte pela natureza; entre a vida e a morte, o acaso e o mistério são
duas forças sobre as quais não há estratégia de existir que os demova da sua
ação; o amor é uma das garantias, ou talvez a única, que justifique a própria
vida; o imaginário é nossa condição de contato entre o universo, os
antepassados e nós mesmos.
Há dois momentos
singulares na narrativa de João Pedro Rodrigues: o do acampamento solitário de Fernando
e o de suas andanças interessado em, depois de recuperado, reaver seus pertences,
tomados como se um forçado desapego do material imposto pelo destino. O que se
passa depois do possível resgate se reveste de uma aura onírica e, por vezes,
surrealista que leva ao espectador estabelecer duas compreensões: Fernando, de
fato, está morto e seu itinerário se dá entre a passagem do terreno para o
divino; Fernando é arrastado pelos sinais da natureza e vê-se preso entre as
situações reais de sobrevivência e as fabulações propiciadas pela imaginação
solitária. As duas leituras possíveis não deixam de fazer prevalecer as três condições
apresentadas acima. Como esta leitura, beira ao mesmo ceticismo que define a
personagem, a segunda compreensão é a que preferimos.
O António no
qual se transmuta a personagem no final de sua caminhada (ou talvez seja esta a
que se mostra desde o início e assim não se aceita) assinala os estreitamentos que
o cineasta estabelece entre a ficção e o dado histórico, porque Fernando confunde-se
com a figura de António de Pádua, também Fernando na sua origem – o franciscano
que, diferentemente do famoso Francisco de Assis, seu contemporâneo, que pregou
às aves e aos animais terrestres, pregou aos peixes. O sermão de Santo António aos
peixes, recuperado pela narrativa fílmica de João Pedro, é um texto quase sempre
parte no imaginário literário português, se lembrarmos o icônico texto da
sermonística do Padre António Vieira, quem repete o gesto do conterrâneo
lisboeta. As aves constituem no caminho de Fernando / António guias e
simbolizam estágios e estados da personagem, mas logo deixam de servir à sua
admiração e os peixes tornam-se a inquietação sobre a condição de presos à
turbidez da água quando têm, como as aves, a liberdade de nadar em águas mais
límpidas. Por contraposição, entre uma forma e outra de vida, o herói começa
por estabelecer qual o verdadeiro sentido de ser livre e este nem sempre se corresponde
com o que propriamente estabelecemos para nós mesmos.
As inserções
intertextuais não findam na biografia de António de Pádua, filme aliás que pode
ser lido como uma atualização biográfico-profana do santo, mas ganham alguns tons
da literatura – se pensarmos no encontro de Fernando / António com um crânio como
uma releitura da cena clássica do Hamlet,
de William Shakespeare – ou ainda a literatura de viagens, aquela que marcou
todo uma longa tradição literária de quando o homem europeu mergulhava num novo
mundo e nas várias descobertas daí advindas. Soma-se a isso, as várias passagens
dos evangelhos: o encontro com o pastor surdo-mudo que se assina por Jesus, mas
carrega toda a vileza sedutora do diabo; e o encontro com o duplo desse pastor,
Tomé, embora quem reencene o episódio de tocar as chagas de Jesus seja o caminhante.
Se pensarmos
nas relações intersemióticas descobrimos que O ornitólogo dialoga com a cinematografia de Luis Buñuel, Andrei Tarkovski,
Pier Paolo Pasolini e Derek Jarman, para recuperar quatro das mais visíveis
inserções: o interstício entre o real e o onírico, o sacrifício, a metamorfose
do pagão em santo, o diálogo entre a diversidade cultural que mescla o
primitivo e o contemporâneo e a estreita relação assumida pelo corpo erótico no
âmbito do ritual cristão; e com uma série de motivos das artes plásticas, se pensarmos
sobretudo nos fotogramas que formam as cenas finais, as da conversa com os
peixes e as do encontro entre Tomé e Fernando / António ou, se voltarmos, o quase martírio da personagem e em seguida a cena que compreenderia a sua conversão.
Fora a composição
da personagem e das suas relações sempre apoiadas no duplo, vale citar, para
fechar estas notas, que o filme de João Pedro Rodrigues se constitui por dois
ductos comunicantes: a vida anterior ao périplo e a posterior. A personagem
materialista é sobreposta pela espiritualista, a do cientificismo pelo qual primeiro
se reconhece e se compreende pela natureza e um multiculturalismo místico, a
morte pela vida, o distanciamento do outro pela aproximação amorosa, a negação
de si pela aceitação. Isto é, a viagem, outro tema recorrente aqui, é o
mover-se favorável para todas essas transformações ou metamorfoseamentos do
herói sugeridos no embate entre esses duplos – no final, ele e outro-ele-próprio
– que determinam o funcionamento da narrativa.
Pela delicadeza
como João Pedro Rodrigues constrói uma narrativa que toca em várias dimensões e
cruza vários temas contemporâneos e alguns mesmo políticos sem perder a força do
cinema de reflexão e contemplação visual, O
ornitólogo é pequena rara peça, que por não se deixar levar pela arte do consumo,
estará sempre envolvida numa espécie de áurea Cult. Tal condição serve ao bem e
ao mal da criação artística. Em relação ao primeiro altar, este texto quis
sublinhar alguns dos elementos que assim o justificam obra fundamental na lista
de filmes interessantes da cinematografia portuguesa recente. É o próprio jeito-de-ser-arte.
Já em relação ao segundo, é aquela falta que produções desse valor alcancem o
grande público. Mas, paciência. O tempo move-se.
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