O fruto de teu ventre: maternidade e literatura


Por Grace Morales

Medeia, de Henri Klagmann (1868).


É verdadeiramente significativa a quantidade de romances e ensaios recentes sobre mulheres que renegam sua condição de mãe ideal e que questionam os papéis clássicos. Tudo isso, além do carrossel dos produtos infantis... Não saberia dizer se esta polêmica é consequência de um problema real ou um interesse criado pela mídia e por empresas para explorar necessidades pré-fabricadas. O fato é que no passado era muito difícil encontrar um romance centrado na gravidez e no parto; as escritoras têm buscado incluir estes temas ao longo de todo o século XX e na maior parte das situações a partir de posições críticas. Antes, qualquer experiência vital tem se tornado protagonista de uma variedade de livros, mas o ato de ser mãe não foi o centro de nenhuma grande história, exceto enquanto referências secundárias. Em alguns casos dos romances que trazem essa questão, ele aparece ligado à condição de adolescências problemáticas e abordam a gravidez no mesmo nível do alcoolismo entre mulheres, por exemplo.

O escritor não dedicou muito tempo a escrever sobre a maternidade. Se faz, trata o tema sem qualquer apego e com um pouco de miopia. A personagem da mãe é sim muito comum, embora quase sempre idealizada e arquetípica (mães boníssimas ou mães diabólicas), mas o parto e o processo de gestação quase sempre se apresentam de maneira um tanto óbvia, tal como o aborto e só perde para o tema da menstruação. O importante, parecem nos dizer, é o produto, não o processo. Talvez o motivo seja porque a mulher grávida é uma entidade que ultrapassa todas as categorias tidas como normais. Uma totalidade perigosa, diríamos seguindo Camille Piglia, entre o sagrado e o perverso. As escritoras, por sua vez, buscam tratar sobre e de forma muito diferente do que se esperaria no interior desse discurso normativo. Ao invés de observar a gestação como um trâmite aparentemente natural e de caráter positivo, eles têm apresentado uma posição contrária: a gravidez e o parto são um problema biológico e social. E mesmo metafísico.

A maternidade nas ocasiões de uma literatura escrita por mulheres se revela como um tempo de inquietude, assunto conectado às discussões de gênero. No passado, ter filhos no Ocidente implicava uma grande importância para a vida da mulher e do filho, mas, justamente por isso, a gravidez chegou a figurar como algo a ser temido e sobre ela se fabulou em chave de terror. O exemplo mais popular é Frankenstein (1818). Mary Shelley escreveu o romance a partir de um trauma familiar. Sua mãe morreu depois de dar à luz a Mary e ela acabava de perder um filho durante o parto. O medo da procriação que pode falhar é o núcleo deste pesadelo, daí o desejo impossível de dar vida à carne morta. Há mais exemplos deste período, como sublinha a professora Lily Gurton-Wachter em seu artigo “The Stranger Guest: The Literature of Pregnancy and New Motherhood” publicado em LARB. Fico com um conto de terror, de ecos lovecraftianos: o clássico O papel de parede amarelo (1890), da estadunidense Charlotte Perkins Gilman. Foi escrito como terapia para sair de uma profunda depressão pós-parto da autora e como desafio ao médico que lhe proibiu de escrever se queria melhorar.

Mais adiante, uma geração de escritoras utilizou a gravidez e a condição materna como detonante da crise nervosa e da enfermidade mental. Já não era o medo de morrer, mas o peso assustador de uma responsabilidade que em muitos casos não se podia compatibilizar com o ofício da escrita e esse papel da mulher como pilar doméstico invencível frente a maridos ausentes, sociedade que recrimina, família que censura... Esta situação não era exclusiva das escritoras: uma vez que a mulher entra no mundo do trabalho, começa um desequilíbrio entre as demandas domésticas e as sociais, que desemboca em situações extremas. Entre as grandes escritoras do século XX, são poucas aquelas que tiveram filhos. Muitas não, mas outras se viram presas a grandes crises que as levariam inclusive ao suicídio.

A maternidade na literatura, portanto, tem sido mostrada como uma experiência-limite que provoca sentimentos muito violentos. Chega a questionar, não só o sistema patriarcal e a situação política, mas a própria natureza como a causa do desalinho entre a criação literária e a procriação feminina. Algumas autoras se rebelaram contra o dom da maternidade e interpretaram essa condição como uma maldição. Colocaram em questão a condenação bíblica de padecer as dores do parto, e, indo mais longe, duvidaram da suposta vantagem em ser portadoras da vida. Nada a ver com um processo comum, sem consequências, como é tratado a partir de ótica geral. Há obras em que se oferecem retratos muito dolorosos da condição da mãe em situações-limite, como por exemplo, na ocasião de uma guerra, mas a reflexão prévia sobre o que se passa pela mente e pelo corpo de uma mulher não é comum. Da mesma forma, a relação entre mães e filhas. Se sim, são feitas de mulheres escritoras. Para os homens, os temas da gravidez, do parto e da maternidade serão abordados a partir de outra experiência, não como introspecção psicológica, mas em torno de termos da violência (o estupro, a agressão, a vingança).

A aparição de obras que tratem sobre a gravidez é, além de escassa, muito criticada; suas autoras sempre reduzidas como más mães. É um fenômeno curioso. Dá-se por resolvido que as relações dos pais escritores com os filhos podem ser ou muito boas ou muito más. O escritor, em determinado momento, pode mesmo expressar o desinteresse pelo filho e denominar-se um “mau pai”. Esta condição, inclusive, casa bem com o gene criativo masculino, é um atributo que agrega valor e qualidade artística à personagem. Mas, o contrário é bem diferente. A escritora precisa ser ou boa mãe ou escritora (não agrego o adjetivo à escritora porque isso, como sabemos, precisa ser sancionado por uma autoridade). A ambivalência materna para com os filhos, entre um amor desmedido e a recusa violenta (que se esconde entre os medos primitivos da mulher), não se explicou até momentos recentes. Sim, estão as mães e filhas das tragédias gregas como única exceção, ponto de origem das versões atualizadas ao longo do tempo. Sobretudo, a partir do feminismo dos anos setenta, esse pensamento abandonou o território das reclamações sociopolíticas em favor da defesa da eleição sobre o aborto e a maternidade, uma corrente que findou num complexo e contraditório discurso, em que se misturam mensagens de liberação com campanhas comerciais.

Determinadas autoras decidiram refletir a angústia de cumprir com perfeição os papéis de boa esposa, boa mãe e boa escritora. Recordo Shirley Jackson, quem fez um exorcismo bem-humorado, mas não isento de ansiedade, sobre o caos de levar uma casa, ocupar-se de seu trabalho e o cuidado de quatro filhos (Life Among the Savages, reeditado em 1997 pela Penguin Books). Noutros continentes, a literatura continua a evolução da história. Enquanto existem autoras que sofrem tabus familiares e religiosos e têm que liderar a luta pela mera sobrevivência, há outras que entraram para o discurso radical, com a crítica às políticas e à violência sobre o corpo feminino. É o caso da América do Sul. A dramaturga de Costa Rica Ana Istarú (Baby Boom en el paraíso, 1996) propõe um escrachante mas amargo monólogo em torno da política de reprodução e o tratamento nos centros de ginecologia. A já falecida Sara Joffré aborda um episódio que poucos se atrevem a tocar, os abortos e a esterilização na cidade de Lima (Una guerra que no se pelea, 2002). Diamela Eltit atualiza o mito de Medeia como resposta à violência patriarcal no Chile em seu romance Los trabajadores de la muerte (1998), ou a autobiografia de Gioconda Belli (O país sob de minha pele: memórias de amor e guerra, 2001) que trata o episódio da guerrilha sandinista a partir da experiência de mulheres e sua dupla luta, política e identitária.

A gravidez do futuro

A ficção científica é o território onde melhor se fala sobre o controle de natalidade, a infertilidade e o papel da tecnologia e do poder político sobre o corpo dos seres humanos, assim como as possíveis questões trazidas por uma mudança do conceito de gênero. Por exemplo, da metamorfose dos humanos em indivíduos de um, múltiplos ou sem sexo que possam procriar de maneiras distintas (com outras espécies, por partenogênese). Histórias envoltas em fantasia ambientadas noutros universos, fábulas morais sobre o fim da humanidade por cataclismos ecológicos ou distopias totalitárias; as mestras do gênero há décadas expressam tais hipóteses, “o que aconteceria se...”, e algumas já se cumpriu amplamente de diversas formas em etapas da história contemporânea. Não vou me aprofundar nesta questão, agora que o mundo descobriu, graças à série de televisão O conto da aia, de Margaret Atwood, mas há uma ampla bibliografia sobre o plano da ficção científica em torno das questões de manipulação genética, as clínicas de fertilização (masculinas também). Por sua data de edição e conteúdo, gostaria de mencionar o romance Swastika Night, da escritora britânica Katharine Burdekin. É uma obra precursora, publicada em 1937 com o pseudônimo masculino de Murray Constantine. Muito marcada pelos ideais políticos e feministas de sua autora, antecipa a ucronia de Philip K. Dick em O homem do castelo alto (1962). Mas este romance ainda é uma distopia, porque nem o acontecido na Segunda Guerra Mundial e ele já imagina o futuro da humanidade (ao final do milênio do Terceiro Reich) dividido nos mesmos blocos de outro livro, o nazismo e o império japonês. Mas o interessante aqui é esse sistema, a sátira derivada do totalitarismo. No Ocidente, Hitler é venerado como um deus ariano, que todos acreditam que foi alto, loiro e nasceu de uma estirpe de deuses exclusivamente masculinos. Porque os homens governam sozinhos, seguindo um estrito regime militar que permite certa tolerância homoerótica. O sexo com mulheres é apenas um dever patriótico. Elas estão reclusas em jaulas, unicamente disponíveis para a procriação, sempre controlada em número e qualidade.

A boa mãe

As expectativas das mulheres espanholas sempre têm sido muito más. A razão não esteve no famoso patriarcado, mas no uso como ferramenta de controle político de uma antiga narrativa religiosa. Lida de fora do contexto linguístico e histórico do Novo Testamento, o ideal católico da Virgem Maria exige um comportamento impossível de ser cumprido e logo é um propiciador de graves danos entre as mulheres. Trata-se de um relato feminino fantasmal, de uma adolescente que concebe sem nenhum contato físico, aceita com resignação seu destino como mãe e esposa, é obrigada a empreender uma penosa viagem num avançado estágio de gestação, dá à luz numa cova, vive na pobreza e, por fim, assiste ao brutal sacrifício de seu filho. Depois deste episódio não temos mais nenhum detalhe sobre sua história. Em poucas linhas se desfaz seu final, como uma personagem incômoda que não fica bem no enredo de uma telenovela: a Virgem Maria é elevada ao céu em “corpo e alma”. E com esta atitude, muda, submissa, obediente, ainda é capaz de confortar da dor e das desgraças da humanidade. Contra semelhante construção ideológica (que embora pareça inverossímil é a base de uma educação social e política secular) é muito difícil não só competir, mas escapar para a construção de um novo pensamento.

A literatura feminina começa a sair da região de influência desta fábula no século XVIII. O Iluminismo ajuda a rebelar-se contra um modelo de perfeição e imobilidade que já não funcionava. Saltemos então para um momento tão crítico como o pós-guerra do século XX. Encontraremos exemplos de feroz protesto contra esses arquétipos da boa mãe e da boa filha, escondidos em aparentes e inofensivos relatos de costumes. São suas autoras parentes de La Tía Tula, as “mulheres raras”, que denominava e descrevia Carmen Martín Gaite em alguns de seus romances e no ensaio Desde la ventana: enfoque femenino de la literatura española (1999), onde apresenta personagens que não se ajustam aos papéis do franquismo: mulheres solteiras, mulheres que se negaram a ter filhos e que por isso permanecem isoladas, reprimidas pela sociedade.

É o caso de Natalia, a protagonista de A praça do diamante, de Mercè Rodoreda (1962). Este romance relata a luta de uma mulher para sobreviver em mundo terrível – o da pobreza e da solidão depois da Guerra Civil – dentro de um sistema social e familiar que a isola e mantém submissa. Até lhe faz perder seu nome (“la Colometa”, batizada assim por capricho do primeiro marido, pomba presa numa casa, como a protagonista e os fantasmas femininos do papel pintado de Charlotte Perkins em sua narrativa). A gravidez e a maternidade serão para ela um tormento físico, mas depois o peso dos filhos é tão insuportável que a mulher fantasiará com matá-los e suicidar-se. Foram escritas diversas leituras sobre este magnífico livro, incluindo as políticas, mas semelhante rebelião pessoal contra os costumes ainda rareia na história da literatura. Mas há outras escritoras que falam sobre certos tabus como estes: foram capazes de articular contos e romances sobre as difíceis relações entre mães e filhas e seus desenganos com a maternidade. As sequelas da guerra oferecem um tema original nesta narrativa: o das mães mortas ou ausentes e a solidão das filhas num sistema patriarcal.

Como no tópico anterior, vou mencionar uma autora em específico. Trata-se da escritora de Valência, Concha Alós. Sua obra é rebelde em conteúdos e muito atrevida no estilo, o que causou diversos problemas com a censura e a crítica literária, apesar de publicar numa grande editora como Plaza & Janés. Em seus livros se manifesta sem rodeios a sexualidade feminina (por exemplo, no romance Los enanos, de 1962, uma amostro do extremo realismo sujo). Alós trata a injusta posição da mulher na sociedade franquista e o constante enfrentamento familiar das filhas contra a educação das mães. Romances como Os habla Electra (1975) são exemplos destas relações, que buscam inspiração na mitologia grega. Um de seus livros mais significativos é a antologia de contos Rey de gatos, narraciones antropófagas (1975). Aqui entre no gênero de terror para apresentar uma galeria de personagens, quase todas femininas, que sofrem estranhas mutações físicas como manifestação de desequilíbrio mental e protesto social e corporal. As mulheres dos contos estão alienadas, se desdobram em um eu assassino e comem carne humana. Uma delas, no conto mais extremo, é transformada em borboleta (morre) depois de uma noite de parto doloroso, como saída paradoxal de uma vida de sofrimento (perda de um filho anterior, abandono do marido...).

A má mãe

A geração de finais do século XX aprofunda estas feridas familiares, mas agora o faz com novas ferramentas e uma atitude que já não pede perdão nem busca seu lugar. Pela primeira vez, as autoras não apenas criticam o estado das coisas, mas defendem seu direito de ser pessoas imperfeitas frente às exigências das autoridades masculinas, políticas e comerciais. Lucía Etxebarría vem dedicando sua obra às mulheres e faz a partir da crítica aos novos (velhos) costumes, incluindo as discussões sobre a maternidade. Seu romance Um milagre em equilíbrio (2004) é o diário de uma mulher grávida que ela escreve para a filha lê-lo no futuro. Além desse, em 2009, publicou junto com Goyo Bustos, El club de las malas madres, um ensaio sobre as tensões da mulher trabalhadora e com filhos no mundo atual: o divórcio, os maus tratos, o desemprego, a consideração social... Para entender o panorama das escritoras deste tempo e a maternidade vale a leitura das antologias de Laura Freixas, principal pesquisadora da literatura feminina, assim como sua obra (o ensaio El silencio de madres, 2014 e Madres y hijas, 1996).

A atualidade retoma a discussão de corpos e maternidade, mas a partir os graves problemas que a crise econômica tem trazido, assim como continua insistindo em denunciar as desigualdades de gênero. A crítica social se mistura com a narração de histórias de homens e mulheres que, devido a precariedade de seus trabalhos, precisaram rever as possibilidades de gravidez até o ponto em que é necessária a ajuda das tecnologias de fertilização, com resultados imprecisos e mais frustração somada à já por si só complicada situação social. Este é o tema do romance de Silvia Nanclares, Quién quiere ser madre (2017). A tensão entre homens e mulheres pela criação dos filhos num plano igualitário é o centro do ensaio político de Carolina León, Trincheras permantes (2017). Nas livrarias há mais exemplos destes interesses, esforço apreciável das escritoras por repensar temas cruciais sobre os quais novos pontos de vista são sempre bem-vindos, seja para se pensar sobre as situações correntes ou alternativas às já existentes.

* Este texto é uma tradução de "El fruto de tu vientre: maternidad y literatura" editado em Jot Down.

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