Manual de instruções para ler Lolita
Por Tereixa Constenla
Diz Vladimir
Nabokov: “Lolita não é uma menina perversa. É uma pobre menina que a corrompem
(...) É muito interessante se considerar, como fazem vocês jornalistas, o
problema da tonta degradação que a personagem da ninfeta que eu inventei em
1955 tem sofrido entre o grande público. Não apenas a perversidade da pobre criatura
foi grotescamente exagerada mas o seu aspecto físico, a idade, tudo foi modificado
por ilustrações em publicações estrangeiras. (...) Representam-na como uma
jovem de contornos opulentos, como se dizia antigamente, com cabeleira loira,
imaginada por idiotas que nunca leram o livro”. Em 1975, durante uma entrevista
com Bernard Pivot no programa Apostrophes
em que respondeu as perguntas por escrito e com uma garrafa de uísque, Nabokov foi
um apóstata da Lolita tratada desde há mais de uma década pelo cinema e pelas
revistas. A versão de Stanley Kubrick estreada em 1962, com Sue Lyon como
protagonista, se impôs no imaginário universal como protótipo da adolescente
perversa capaz de enlouquecer um adulto, distante do original de Nabokov, que
insistia naquela entrevista: “Fora da visão maníaca de Mr. Humbert não há
ninfeta. Esse é um aspecto essencial de um livro singular que foi falseado por
uma popularidade artificiosa”.
Mais de seis
décadas depois de sua publicação, Lolita continua
dando o que falar. Embora as razões sejam outras. A escritora Laura Freixas, no
artigo “Que fazemos com Lolita?”
destacava: “o romance está escrito de tal maneira que consegue fazer com que
esqueçamos que é mau violar meninas”. E mais adiante: “Não é casual que tenha
sido e siga quase por unanimidade definida como ‘uma história de amor’”. Freixas
insiste na sua defesa segundo a qual a liberdade criativa não exime o autor de certa
responsabilidade ética.
“A arte tem
uma extraterritorialidade no terreno da moral que alcança importância com a
qualidade criativa”, defende José-Carlos Mainer, catedrático de Literatura da
Universidade de Zaragoza, contrário à lógica de que o politicamente correto
impregne as leituras sobre a criação. “Temo que vá ser muito difícil que a
história da literatura, da arte, resista à tomada articulada da moral. Já aconteceu
com Savonarola, que num momento determinado esteve a ponto de carregar consigo
o Renascimento em Florença, mas é terrível que volte a acontecer quando temos uma
experiência histórica disso”, reflete.
Lolita foi mítica desde o início dos
tempos. Sua primeira versão foi publicada por uma editora pornográfica francesa,
a Obelisk Press. Os quatro editores estadunidenses para os quais Nabokov enviou
cópias do romance recusaram o texto. Segundo o romancista, tocava um dos três
temas tabu para um editor nos Estados Unidos. Os outros: o casamento inter-racial
entre brancos e negros e as vidas felizes e longevas de ateus. Um assessor
editorial viu nela que o “Velho Mundo perverte o Novo” e outro “a jovem América
pervertendo a velha Europa”. Até que chegou às mãos de George Weindenfeld que, aconselhado
por Graham Greene, comprou os direitos na Grã-Bretanha.
No livro Um ofício de loucos (Tradução livre de Un oficio de locos), o editor revela ao
jornalista Juan Cruz que traçou uma estratégia para fabricar um clima favorável
à publicação. Quase houve uma crise no gabinete britânico: um sub-comitê tinha
que decidir se perseguiam e prendiam o editor ou se autorizavam a circulação de
Lolita. “Imprimimos o livro e enviamos três cópias”, recordava
Weindenfeld. E acrescentava às cópias uma carta: “Se vocês realmente pensam que
é pornografia contra o prazer destes especialistas que dizem que é literatura
de qualidade, estou disposto a impedir a publicação”. Por três votos a favor e
dois contra, o texto passou e veio a lume.
O dilema,
então, residia na transgressão de uma moral sexual ainda fechada, a de finais
dos anos cinquenta, numa sociedade puritana. Agora, o debate se deslocou para a
vocação da obra: história de amor ou história de pederastia e abuso sexual. “Nenhum
autor é responsável pelas interpretações que são feitas de suas obras. Os mitos
se constroem por circunstâncias que são alheias ao autor”, defendia o escritor
Sergio del Molino, noutra ocasião, em debate com Laura Freixas (ver apêndice no
final do texto). “Lolita fala sobre a
depravação, a perversão, a decadência, a maldade, a solidão e a América, entre muitas
outras coisas”. “Não é uma apologia do estupro”, insistia, “mas se fosse não jogaria
o livro numa fogueira”.
Nem a psicanalista
e escritora Lola López Mondéjar apoia as restrições artísticas ainda que o “criador
deva saber-se sujeito às críticas de seus contemporâneos”. Em 2016 publicou Toda noite, toda noite (tradução livre
para Cada noche cada noche) em que ficciona
a vida de Dolores Schiller, filha de Lolita. Na sua opinião, a obra de Nabokov
é “a narração brilhante autojustificativa que um pederasta realiza sobre sua incapacidade de resistir a atração que
experimenta por meninas”. Ela distingue entre o livro e suas leituras: “A recepção
de Lolita objetou o abuso, esqueceu o
falso prólogo que abre o romance e que deveria orientar sua leitura, regozijou-se
com o desejo de Humbert, elaborando um mito que responde ao erotismo de muitos
homens”.
Ninguém se
aventura a pensar o que diria hoje Vladimir Nobokov. Pode ser uma pista o que
escreveu em 1956, no final do livro: “Não sou leitor nem escritor de ficção didática e, apesar das afirmações de
John Ray, Lolita não traz a reboque
moral alguma. Para mim, uma obra de ficção só existe na medida em que me proporciona
o que chamarei sem rodeios de prazer estético, isto é, a sensação de que de
algum modo, em algum lugar, está conectada a outros estados da existência em
que a arte (a curiosidade, a gentileza, o êxtase) é a norma”.
Leitores leiam Lolita sem pré-julgamentos*
(Sergio Del Molino)
Como têm
entendido muito bem as várias gerações de leitores e críticos desde 1955, Lolita é muito mais que um grandiosíssimo
romance: é um mito ocidental cuja influência continuará a projetar-se por muito
tempo porque narra, como poucos livros narraram, a repugnância e o o lado
inferior da beleza. E, como tal, foi estudado até sua última vírgula.
O romance que
li, Humbert Humbert é tudo menos um sedutor e um cavalheiro. Desde as primeiras
páginas se apresenta como um tipo esquisito, grosseiro, de passado duvidoso, um
vagabundo do qual sabemos que fugiu da Europa porque era procurado por abusar
de outra menina. Lolita, por sua vez, tampouco se apresenta atrativa: o que excita
o sequestrador são os atributos de sua meninice (seu cheiro, os maus modos, sua
maneira de comer), o que faz de seu desejo algo repulsivo e antierótico. Tudo em
Humbert é equívoco e ameaçador, mas o romance é narrado por ele. Portanto, as
personagens aparecem como aquilo que visto pelo seu olhar. Como não vai odiar a
quem quer ajudar sua prisioneira? O grande talento de Nabokov é conseguir que
leiamos um livro narrado por um tipo repugnante como ele que não cabe identificação
e a quem desejamos que condenem.
Freixas pede
que não nos esqueçamos das Lolitas ao ler Lolita.
Como vamos esquecer, se o romance se intitula Lolita? Não se intitula Humbert
Humbert. Intitula-se Lolita
porque narra a destruição de uma menina e uma odisseia deplorável por motéis
baratos e povoados desolados onde ninguém aparece se importar com sua situação.
A sociedade estadunidense, decadente, fria e desprovida da menor nobreza (obsessão
nabokoviana, príncipe russo desterrado, ele próprio) é tão culpada ao consentir
pelo desinteresse pelo infortúnio de Lolita quanto o seu sequestrador. A meu
ver é inconcebível que estas revisões modernas não vejam isto e se sintam que “está
escrita de tal maneira que consegue fazer com que esqueçamos que é mau violar
meninas”. Não me cabe na cabeça que alguém conceba Lolita como uma apologia ao estupro.
O que Lolita e Nabokov precisam são de
leitores sem pré-julgamentos e livres, não de decodificações ideológicas que
imponham leituras politicamente corretas.
Ligações a esta post:
* Este é um
excerto de “Lectores que lean ‘Lolita’ sin prejuicios”, publicado no jornal El País. A primeira parte, também do
mesmo periódico, é a tradução de “Manual de instrucciones para ler ‘Lolita’.
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