Kyra, Kyralina, de Panaït Istrati
Por Pedro Fernandes
Quanto mais
buscarmos a liberdade mais estaremos distantes dela. Esta é uma síntese possível
sobre Kyra Kyralina, de Panaït Istrati,
se nos for dada a oportunidade de desviar o olhar desse título. Aliás, se
permanecermos presos às palavras que nomeiam o romance, conseguiremos cair na cilada
armada pelo escritor romeno quando prefere esta e não outra possibilidade de chamar
sua obra. A artimanha não é gratuita. Ela participa da criação da atmosfera da
narrativa; tem a ver com a própria condição da personagem principal – que não é,
primeiro engano, a designada Kyra Kyralina.
É Stavro / Dragomir
a figura central da trama que se caracteriza basicamente por uma única linha: o
seu relato dividido em três ocasiões distintas – uma delas quando já velho – de
como caiu em desventura e tornou-se a figura repulsiva que tenta seduzir seu parente,
o adolescente Adrien. Criado sob todos os bons auspícios maternos, essa
personagem que ocupa o papel de ser interlocutor e ouvinte das histórias desse
primo de terceiro grau, nutre dois interesses profundos: um especial pelo amigo
Mikhail, de quem a zelosa mãe do jovem quer distância, e por saber da vida
livre de Stavro. “Vida chacoalhada e sacudida por sua natureza nômade e bizarra;
vida arrebatada desde a idade de 25 anos pela triste engrenagem da sociedade: casamento
com moça rica, bonita e sentimental, do qual saiu, um ano depois, coberto de
vergonha, com o coração em frangalhos, com o caráter deformado”.
Já aqui o
sentimento desse jovem é também pela possibilidade de ser livre – como será
todo o itinerário de Stavro e este ao contar seu périplo oferece a Adrien uma
parábola cuja síntese apresentamos no início deste texto. Adrien quer a liberdade
de gostar demoradamente de Mikhail, não quer a responsabilidade designada socialmente
de casar e formar uma família, quer, antes de tudo, viver o que sua imaginação
propiciar, embora, pelo excesso de proteção da mãe, não tenha nenhuma perspectiva
sobre o que é o mundo além do pequeno reduto de Brăila. A primeira oportunidade
que lhe aparece é a de ir à feira de S..., distante dois dias do vilarejo
natal, para vender limonada com Stavro e Mikhail.
É nesta
viagem que Stavro principia relatar todas as suas aventuras e quando Adrien descobre
qual o segredo mais obscuro o qual ao que parece apenas ele desconhece. Essa
descoberta, alinhavada com as longas histórias do passado de Stavro, poderão
servir às curiosidades que Adrien deposita sobre si e sobre os próprios desejos
que o une ao amor pela liberdade e pela companhia de Mikhail. Isto é, estamos
novamente diante de um motivo recorrente na literatura desde a Odisseia, de Homero, a viagem enquanto propiciadora de descoberta do outro e possibilidade de autoconhecimento; esta compreensão, aliás, sustenta a trajetória da saída de
Adrien de seu reduto e as muitas viagens por meio Oriente desenvolvidas por
Stavro, que assume pelo menos duas condições – interdependentes – neste
itinerário: a da errância e a do marginal.
As três
situações apresentadas por Stavro seguem os protocolos da itinerância do herói;
isto é, a personagem transita entre a condição abastada a total decadência. Por
ordem – não de apresentação na narrativa, que esta segue o norte de um curso da
memória –, Stavro separa-se da mãe e foge com a irmã Kyra depois de escapar de um
episódio de extrema violência do pai e do irmão, cai em pelo menos duas mãos de
aproveitadores que levam ao mundo de glórias financeiras e pura luxúria,
enquanto se vê tomado da ideia fixa de recuperar a irmã; salvo da condição de
escravo para o prazer e o ócio, não sem uma extensa danação, encontra uma possibilidade
de liberdade até casar-se e ficar novamente perto de recompor sua vida de rico,
mas impotente para mulheres e descoberto seu passado com outros homens é jogado
novamente na sarjeta até retomar a ganhar vida nas ruas.
Toda a errância
de Stavro, desde o fim da infância até a meia-idade é justificada pela obsessão
que constrói pela irmã Kyra. Ela representa-lhe um ideal de beleza semidivina e
uma liberdade plena por ser feliz à maneira de não precisar se submeter aos
desígnios de ninguém, nem mesmo os do pai e do irmão que reiteradamente gastam o
tempo em violentá-la. Não é apenas isso; em Kyra, o menino encontra sua própria
identidade, aquela que não poderá exercê-la de maneira livre porque participa –
como demonstra o episódio do casamento e da violência doméstica nos quais é
protagonista – numa sociedade inscrita entre as linhas deterministas do masculino.
Embora, todos reconheçam nele essa condição do eunuco (um dos homens, por
exemplo, o com quem divide hospedagem e que lhe rouba todo o restante de
dinheiro que carrega consigo desde o périplo de fuga das garras do pai e do
irmão, chega a dizer que ele, Stavro então reidentificado como Dragomir, parece-se
com uma moça), toda a errância de Stavro é por não se justapor a um modelo social
a qual pertence.
Quer dizer, se
apenas nos mantivermos presos ao nome da personagem que intitula a obra ficaremos
restrito à compreensão de que Kyra
Kyralina é um romance sobre a obsessão de um irmão pela irmã; ela,
evidentemente, constitui parte importante da narrativa, por ser o elemento
desencadeador e quem favorece toda a itinerância do herói, mas há uma questão
que aí se sobrepõe e que justifica a condição de errância: a identificação de
Stavro ao ponto de querer ser Kyra, embora nem ele próprio tenha ciência disso.
A liberdade que busca a personagem é, portanto, a de existir plenamente. E
notamos outra questão também; todas as tentativas de fuga de Stavro têm uma determinante
de ordem masculina: libertar-se do pai e do irmão maus; libertar-se do sultão
que o rapta com a irmã numa embarcação para Constantinopla; libertar-se dos
muros do Mustapha; libertar-se do casamento; libertar-se das pensões por onde
passa – só para citar algumas.
As andanças
de Stavro por meio continente colocam-no em confronto com todas as condições
mais tacanhas do homem. A certa altura de seu relato constata que o mundo está
tomado pela brutalidade do individualismo. Há certa constatação de que o homem
nasceu só e está condenado à solidão e que o inferno são outros, para recuperar
o eco de uma das máximas do existencialismo. E isso se mostra enquanto uma contrariedade
aos olhos, primeiro inocentes, da personagem, se em todas as culturas prevalece
a máxima coletiva do amor ao próximo. Mas, não há fatalismos em Kyra Kyralina: nas situações mais adversas,
quando o imperativo da morte se mostra com todas suas forças, Stravo resiste
porque lhe move uma expectativa que ele próprio não sabe precisar e que não é covardia.
Depois constatará que “a bondade de um só homem é mais potente que a maldade de
mil”, espécie de discurso redentor com o qual justifica a incompressibilidade do
que lhe move.
A longa
história dos périplos de Stravo recupera ainda, no mesmo tom de parábola, a
ideia de que a liberdade não está submissa à condição financeira. Apenas quando
perde quase todo o dinheiro que carrega consigo, abre-se e a possibilidade da
felicidade e de ser integralmente livre. Pelo caminho, aliás, não faltará quem
lhe diga, mesmo que não dê ouvidos, ser o ouro o resultado de toda sua
desgraça. A riqueza se não compra felicidade também não é o abre-portas para a
liberdade. Este tom da narrativa, justaposto à própria maneira como esta é
estruturada – uma sequência de histórias interdependentes– constitui um aspecto
fabular que encontramos, por exemplo, em As
mil e uma noites, o que faz esse romance recobrar o melhor da tradição
literária oriental. Se não há uma Sherazade que conta as histórias para prolongar
sua vida, a própria pode se assumir nas feições de Kyra. Se por uma razão ela é
quem coloca o herói em desgraça é quem prolonga a vida de Adrien.
Kyra é, a um
só tempo, na parábola de Stavro, pulsão de morte e impulso de existir, o outro
e ele próprio, prisão e liberdade. A força motriz da existência, terá provado,
não se justifica jamais apenas, do jogo de forças antinômicas, por prevalecer um
polo sobre outro. Claro, porque existir se ampara num equilíbrio das dicotomias.
A liberdade existirá quando conseguimos compreender isso. E não há onde buscar
essa compreensão porque ela não está em qualquer parte, mas se atinge vivendo. E
viver implica dissociar-se das abstrações porque existir é o aqui-agora. É este
o lugar encontrado por Stavro ao lado do amei Barba Yani. Como o narrador de
uma parábola não quer com sua história provar uma verdade absoluta e incorrigível
para seu ouvinte; apenas que ele disponha da frente que esteve à sua disposição
quando se perdeu de toda ordem que lhe dizia ser a vida um eterno jogo de ócio
e sedução.
Daí ficaremos
sempre a pensar: marcado por todo encantamento pelas histórias ouvidas que será
de Adrien? Ficamos então à espera que este itinerário, suspeito pela sentença
peremptória lançada pela mãe quando ele parte com Stavro e Mikhail e pelas
vivências do próprio Stavro de que seja mais audacioso e libertino, chegue até
nós – são outras três obras. Se demorar muito, deve valer o esforço do autodidatismo
do seu autor, que aprendeu francês sozinho e pôde construir, aos trancos, uma
obra-prima da literatura.
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