Elena Ferrante, a leitora


Ilustração: Sarah Wilkins


“Os livros são organismos complexos, as linhas que nos perturbaram profundamente são o momento mais intenso de um terremoto interno que o texto provocou em nós, como leitores, desde as primeiras páginas”. A obra de Elena Ferrante tem sido esse terremoto. Reinaugurou uma expectativa pelo romance capaz de combinar uma escrita de grande fôlego e uma leveza narrativa, isto é, unindo duas polarizações estabelecidas pela academia e pela crítica desde o advento da literatura de massa. Não é o caso de uma unanimidade, afinal, qual é será mesmo o sentido desta palavra numa conjuntura de fragmentação e esvaziamento das unidades. Mas, a recepção da literatura da escritora italiana entre os leitores que leem livremente e entre os chamados leitores formados para a crítica diz alguma coisa sobre o que mídia tem simplificado usando o termo fenômeno.

Os romances de Elena Ferrante têm demonstrado não pertencer apenas ao rol do entretenimento; além da escrita caprichosa, eles figuram ora uma integração à complexa e grandiosa literatura de seu país, em claras aproximações de alguns corolários do cânone, ora um acréscimo sobre temas e obsessões tratadas apenas en passant por tais obras ou mesmo pelo conjunto de criações literárias determinantes entre as grandes obras de sempre. Evidentemente que, no âmbito dessas considerações escapa outra imagem indissociável de todo escritor: a do leitor.

Se a questão mais recorrente tem sido a da identidade da escritora – de maneira equivocada porque a mídia há muito cedeu a certo estilo de sensacionalismo gratuito em que a fofoca generalista e o pormenor de bastidor ganha maior importância em tudo, capaz mesmo de, no caso de um escritor, fazer sobrepor sua imagem pessoal à literatura que produz – outra, em parte para cobrir a primeira, se revela em algumas ocasiões que é sobre as obras que compõem o repertório literário de Elena Ferrante.

Em Frantumaglia, uma coleção de textos esparsos da escritora, incluindo parte das muitas entrevistas por escrito que concedeu desde a publicação de seu primeiro romance, Um amor incômodo (1992), o leitor pode aceder à face da Elena leitora. As leituras, bem sabemos, são determinantes para a formação de toda escrita. Basta lembrarmos, para usar um exemplo da própria ficção da escritora aqui em destaque, o encanto exercido pela leitura sobre as duas personagens principais da aclamada tetralogia napolitana: primeiro, chegam ao ponto de se imaginarem como autoras do que leem; depois, exerce influência direta no que escrevem – sobre Lenu é mesmo o elemento desencadeante da atividade que exercerá quando adulta.

O exemplo citado não é gratuito. A romancista, numa das entrevistas reunidas na coletânea citada, responde às questões sobre escrita e tradição escritural masculina e / ou feminina recorrendo ao quando garota que “– aos doze, treze anos –” tinha verdadeira obsessão pela leitura e acreditava ingenuamente na inexistência de boas escritoras ou que elas não representavam ao certo o que poderia ser literário ou não, algo que se passa com a personagem Lenu, embora nesta a convicção seja outra, as mulheres precisam reaprender a escrever histórias de amor que subtraiam o tom meloso e frágil do feminino: “eu tinha total convicção de que um bom livro devia necessariamente ter como protagonista um homem e ficava deprimida. Essa fase se esgotou em mais ou menos dois anos; com quinze anos comecei a pôr no centro das histórias meninas muito corajosas em graves dificuldades”, recorda a romancista. Quer dizer, a escrita parece se motivar aqui também por uma incongruência de leitora. “Naquela época, eu devorava livros, e não adianta negar: minha meta eram os modelos masculinos. Assim, até mesmo quando via histórias de garotas, eu procurava escrevê-las atribuindo à protagonista uma riqueza de experiências, uma liberdade, uma determinação que eu tentava imitar dos grandes romances escritos por homens. Eu não queria escrever como Madame de La Fayette, Jane Austen ou as irmãs Brontë – na época, eu conhecia muito pouco a literatura contemporânea –, mas como Defoe, Fielding, Flaubert, Tolstói, Dostoiévski ou até mesmo Hugo”.

Além da insatisfação – tom que ronda ainda o imaginário das duas personagens da tetralogia napolitana ao buscarem uma ruptura das histórias cor-de-rosa para mulheres –, o leque de autores citados nas falas de Ferrante corrobora na compreensão sobre o vasto universo cultural e intelectual da romancista italiana e de sua atração, sem espantos e redundâncias, para com a leitura. Sobre o papel de leitora se diz que não é “uma leitora meticulosa, de boa memória. Leio muitíssimo, mas de modo desordenado, e esqueço o que leio. Aliás, para ser mais precisa guardo uma lembrança distorcida”.

Sobre a diversidade de leituras, noutra ocasião, sublinha: “acho que hoje precisamos exatamente disso. Um narrador ambicioso deve, ainda mais do que no passado, ter uma cultura literária muito vasta. Vivemos em tempos de grandes mudanças com resultados imprevisíveis e é bom se equipar. É necessário ser como Diderot, autor ao mesmo tempo de A religiosa e Jacques, o fatalista, e seu amo, ou seja capaz de reutilizar tanto Fielding quanto Sterne”. Nessa mesma linha acrescenta a suspeita apresentada na abertura deste texto: “Quero dizer que a grande busca do século XX, depois de suas salutares violações, pode e deve se reconectar ao grande romance das origens e até aos hábeis mecanismos da literatura de gênero. Sem nunca esquecer que uma história tem de fato vida não porque o autor é fotogênico, porque os resenhistas falam bem dela ou porque o marketing a torna apetecível, mas porque, em certo número de páginas muito densas, ela nunca esquece os leitores, pois cabe a eles acender o pavio das palavras”.

Em torno das escolhas de leitura, sempre se revela uma preocupação com o sexo dos textos – que depois se trata como sua opção pela escolha do que chama de “gênero neutro”: “Quando era muito jovem, eu almejava escrever exibindo um pulso viril. Eu achava que todos os escritores de alto nível eram do sexo masculino e que, portanto, era necessário escrever como um homem de verdade. Em seguida comecei a ler com muita atenção a literatura das mulheres e abracei a tese de que cada pequeno fragmento em que fosse reconhecível uma especificidade literária feminina devia ser estudado e usado. No entanto, faz algum tempo que me livrei de preocupações teóricas e leituras e passei a escrever sem me perguntar mais o que deveria ser”.

Às questões sobre quais obras exercem / exerceram alguma influência sobre a criação, Elena Ferrante sempre se refere de maneira distinta e com isso compõe um cânone que esclarece as bases de seu projeto literário. É bem verdade que, quase sempre, o nome de Elsa Morante aparece sublinhado com algum brilho pela recorrência com que é citada na lista de interesses da escritora, mas, ainda assim prevalece uma diversidade e uma recorrência da literatura produzida por mulheres; perguntada uma vez “quais escritoras encontra a potência literária adequada”, responde que em “Jane Austen, Virginia Woolf, Elsa Morante, Clarice Lispector, Alice Munro”. Noutra ocasião, perguntada sobre que outros autores italianos ela lê, diz: “Vou, de propósito, mencionar apenas nomes de mulheres, aliás, muito diferentes entre si no que diz respeito a interesses, escolhas temáticas ou expressivas, formação cultural: Simona Vinci, Michela Murgia, Silvia Avallone, Valeria Parrella, Viola Di Grado”.

“Hoje leio tudo o que vem das mulheres. Isso me ajuda a olhar criticamente para o mundo, para mim mesma e para as outras. Mas também acende minha imaginação, me estimula a refletir sobre a função da literatura”. E às escritoras italianas, acrescenta outros “nomes de mulheres a quem devo muito: Firestone, Lonzi, Irigaray, Muraro, Cavarero, Gagliasso, Haraway, Butler, Braidotti”. Noutras passagens destaca os textos de algumas delas: “O manifesto de Donna Haraway, que li sentindo-me culpada pelo atraso, e um velho livro de Adriana Cavarero: Tu che mi guardi, tu che mi racconti”. Sublinha-se ainda os nomes de Ana Maria Ortese, Karen Blixen, Ovídio e Franz Kafka.

As relações de Ferrante com as leituras e os livros é sempre a de uma experiência marcadamente corporal e nela se misturam sobretudo suas próprias vivências. Ao falar sobre a leitura de Madame Bovary, diz que ali, “entendeu pela primeira vez, que a geografia, a língua, a sociedade, a política, enfim toda a história de um povo estava para mim nos livros que eu amava e nos quais eu podia entrar como se os tivesse escrevendo”; ou o quanto as experiências de contato com algumas passagens da obra de Morante significam um retorno ao tempo quando convivia com sua mãe sempre presa na tarefa da costura.

Também as leituras são variáveis. Se na lista a seguir se apresentam apenas textos literários, estes não são os únicos interesses nas leituras de Elena Ferrante. Há menções a obras ensaísticas como O ser abandonado, de Jean-Luc Nancy, a correspondência entre Schönberg e Thomas Mann sobre o Doutor Fausto, Stasis: a guerra civil como paradigma político, de Giorgio Agamben, Lettera all’editores, de Gianna Manzini (em que parece ter se inspirado para dizer sim à ideia dos seus editores na publicação de Frantumaglia) e Tríptico: três estudos após Francis Bacon, de Jonathan Littell 

“Tenho uma lista razoável e os chamo de livros de encorajamento” (ver na lista destaque em negrito). Por isso, a partir dos textos apresentados em Frantumaglia decidimos organizar qual seria esta extensa lista, ampla e variável a cada intervenção da escritora ante à pergunta sobre obras de seu interesse. É a que se segue; quando aparece alguma justificativa da escritora, esta é acrescentada à indicação; e, por organização deste texto, os títulos não seguem a ordem em que aparecem em Frantumaglia.

- A volta, de Joseph Conrad
- Desesperados, de Paula Fox
- A mulher desiludida, de Simone de Beauvoir
- A paixão segundo G. H., de Clarice Lispector
- Adele, de Federigo Tezzi
- A princesa de Clèves, de Madame de la Fayette

- Dalla parte di lei, de Alba de Céspedes
“Na adolescência, eu era uma leitora que ficava agitada com cada linha. Gostava da ideia de o amor ser tão importante naquele livro. Sentia que era verdadeiro, não se pode viver sem amor. Mas, ao mesmo tempo, percebei que algo não estava certo. Angustiavam-me as roupas no armário de Eleonora, eu reconhecia ali algo familiar”.

“Falo sobretudo das primeiras cento e cinquenta páginas; ali está a história de uma relação mãe-filha e, mais em geral, um catálogo das relações entre mulheres, o que é memorável. Quando li aquelas páginas pela primeira vez, eu tinha dezesseis anos. Muitas coisas me agradaram, outras não entendi, outras me incomodaram. Mas o importante foi a leitura conflituosa que se desenvolveu: não consegui me identificar seriamente com a jovem Alessandra, a narradora. É claro que, a relação entre ela e a mãe, Eleonora, pianista cercada por um marido banal, me comoveu muito. É claro, me reconheci nos momentos em que Alessandra narrava sua ligação profunda com a mãe. Mas, por outro lado, sua aprovação absoluta da paixão que Eleonora nutria pelo músico Hervey me perturbou – ou melhor, a aceitação de Alessandra me pareceu melosa e improvável, me indignou. Eu teria combatido com todas as forças um hipotético amor extraconjugal de minha mãe, até mesmo uma simples suspeita me deixava com raiva, me enciumava muito mais do que o amor dela por meu pai. Enfim, eu não entendia, tinha a impressão de saber mais sobre Eleonora do que sua filha podia intuir. E o que marcou a diferença entre mim, leitora, e a narradora em primeira pessoa foram justamente as páginas sobre o vestido preparado para o concerto com Hervey. Achei-as fulgurantes e, ainda hoje, me agradam muito, uma parte importante de um texto que, como um todo, me parece de grande inteligência literária”.

- A ilha de Arturo, de Elsa Morante
“Fiquei abalada, mas por motivos que, na época, me envergonhavam. Enquanto lia, ao longo de toda a história, pensei que o verdadeiro sexo de Arturo fosse feminino. Arturo era uma garotinha, essa era a única possibilidade. E, por mais que Elsa Morante escrevesse sobre um eu masculino, eu não conseguia deixar de imaginar essa menina, um mascaramento de si própria, de seus sentimentos, de suas emoções”. Outras obras de Morante sempre citadas por Elena Ferrante são A história, Menzogna e sortilégio – “o romance fundamental” para si – e Lo scialle andaluso, este último citado na recepção do Prêmio Procida, Isola di Arturo: Elsa Morante (1992).

- Eneida, de Virgílio
“O que mais chamou minha atenção foi o uso que Virgílio faz da cidade. Cartago não é apenas um cenário, não é uma paisagem urbana para personagens e fatos. Cartago é o que ainda não é, mas está para se tornar, matéria em transformação, pedra abalada por cada movimento interno dos dois personagens. Não por acaso, antes mesmo da admiração pela bela Dido, Eneias sente admiração pelo fervilhar do trabalho de edificação, pelo levantamento dos muros, da torre, do porto, do teatro, das colunas. Seu primeiro comentário é um suspiro: como têm sorte os tírios, seus muros já estão surgindo. Naqueles muros ele põe seu sentimento refundador. Eles acolhem ao mesmo tempo a memória da pátria subjugada a ferro e fogo, a esperança-nostalgia da cidade futura e o desejo do nômade de acampar no centro da cidade estrangeira, que, aliás, é a cidade-bela mulher, a ser possuída”.

- Solaris, de Sanislaw Lem
“De todas as roupas literárias que conheço, a que melhor expõe a condição emocional que vivenciei principalmente quando garoto, é a roupa da ultrafeminina Harey, heroína de Solaris, de Stanislaw Lem: o fantasma de uma mulher que se suicidou por amor, uma palavra masculina transformada em mulher”.

- Madame Bovary, de Flaubert
“A França – antes, muito antes de Paris – foi para mim Yonville-l’Abbaye, a oito léguas de Rouen. Lembro que me instalei nesse topônimo certa tarde, quando eu tinha menos de quatorze anos, viajando pelas páginas de Madame Bovary. Com o passar dos anos, aos poucos, até hoje, foram sendo acrescentados milhares de outros nomes de cidades e vilarejos, alguns nas vizinhanças de Yonville, outros muito distantes. Mas a França permaneceu sendo basicamente Yonville, assim como eu a descobri em uma tarde algumas décadas atrás, quando achei que já tivesse me deparado, ao mesmo tempo, com o ofício de criar metáforas e comigo mesma”.

- Os miseráveis, de Victor Hugo
“Escrevo pelo desejo de contar histórias. A escrita naturalmente se alimentou do prazer de ler e da vontade de entender como é possível obter aquele prazer. Tudo o que consegui aprender, aprendi lendo e relendo livros. Não sei quantas vezes li Os miseráveis sem saber absolutamente nada de Victor Hugo”.

 - A sonata a Kreutzer, de Liev Tolstói
“Às vezes, foram os livros que me levaram a escutar a grande música: por exemplo, foi a partir de A sonata a Kreutzer que me interessei por tudo o que era de Beethoven”.

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