Donnie Darko, de Richard Kelly


Por Rafael Kafka



Donnie Darko mexe com nossa noção de leitura. O enredo do filme é cheio de brechas que nos convidam, como um bom filme de autor, a mergulhar no universo desenvolvido por Richard Kelly e sua equipe. Impossível assistir ao drama existencial e psíquico de Donnie de forma passiva esperando a ocorrência de algo que feche tudo em algo pronto e acabado. Ou ainda uma cena de ação que funcione como catarse para uma percepção conformada. Darko vive um drama cuja escrita por si só já é provocativa por nos exigir rompimento com velhas estruturas cognitivas que limitam nossas leituras ao lugar comum da linearidade.

Algo aprendido por mim estudando sobre tradução há alguns anos é justamente o poder dos significantes em provocar por si sós reações na subjetividade dos sujeitos. O arranjo e rearranjo deles causa efeitos interessantes, gerando um estranhamento que provoca nas mentes inquietas um desejo de desvendar essas obras. A grande questão é que muitas vezes simplesmente nada há para ser desvendado ou descoberto. A fruição nos expõe o absurdo da existência na forma de leitura, de enredo ou final aberto que nos exigem a atividade da construção de sentidos.

Quer queira ou não, estamos muito acostumados a uma direção e a um roteiro que nos guie pelo filme nos dizendo tudo. A grande beleza de “Guerra Infinita” foi justamente emular um pouco do cinema de autor colocando diversos elementos em aberto, mas essa é uma beleza limitada. Vendo os filmes que fazem parte do arco Vingadores e a próxima sequência, entendermos de forma linear as imagens ali postas não será difícil. O cinema comercial trabalha com um racionalismo rasteiro o qual faz as pessoas acharem que tudo deve ser didático e inteligível, se possível sem grande esforço.

Donnie Darko não se preocupa com isso. A confusão, digamos assim, é proposital. A ambiguidade existencial ali é plena bem como a ambiguidade típica do texto narrativo com elementos estéticos. O filme joga uma série de elementos a serem refletidos por nós em profusão e não há um caminho claro a ser seguido. Isso nos leva a ver o próprio caminho como fim, e próprio prazer de ver o filme como entendimento maior.

Podemos esforço didático dizer que a confusão temporal do enredo é o drama de Darko concretizado para nós. Vivemos a sua loucura, o seu desejo de superar suas dores, o seu drama pessoal. Passado e presente se confundem porque a experiência temporal se tornou absurda. Darko divide sua vida em momentos de lucidez, raros, e momentos de loucura.

Quando vi o filme semana passada, tinha acabado de ler a condenação de um famoso líder nazista da internet brasileira. Lendo sobre tais pessoas, descobri que eles se consideram pessoas rejeitadas por mulheres as quais são incapazes de reconhecer seus valores intelectuais e morais. Dão a si mesmos o curioso rótulo de “incels” e têm o hábito de sair por aí atirando e cometendo ataques a escolas e a cinemas. Se analisarmos bem, Darko parece em alguns momentos com um incel. Possui o desajuste social e o olhar de quem pode a qualquer momento cometer um assassinato em massa.

Em dada cena do filme, a ruptura de leitura do filme atinge um ápice bem interessante. Pensamos que Darko colocará fogo em um auditório no qual está ocorrendo um evento de talentos da escola onde estuda. Na verdade, ele está queimando a casa de um guru espiritual cujo discurso é muito similar aos dos coachs e empreendedores high stakes contemporâneos. Momentos antes, em uma palestra na escola de Donnie, vemos esse guru falar em como devemos viver nossos medos para sermos felizes e é desafiado pelo protagonista que o chama de farsa. Tal conflito se inicia em aula de professora conservadora a quem é dito que não podemos resumir tudo em bom e mau.

Tais cenas são permeadas de uma metalinguagem profunda que a cada momento questiona e ataca discursos hegemônicos. O ataque à dicotomia bem/mal soa como um duplo ataque à sociedade conservadora e seu cinema de racionalismo rasteiro. O incêndio soa como ataque iconoclasta ao discurso meritocrático e mesquinho que permeia essa mesma sociedade.

Após ter a casa incendiada, o guru tem um fato criminoso de sua vida revelado. Todo o discurso puritano cai por terra, mas ainda assim a educadora conservadora insiste em ver tudo como uma grande campanha de difamação contra um homem de Deus. Dias antes, soube da prisão de um famoso deputado pastor por desviar dinheiro de ambulâncias e vi comentários em redes sociais falando que tudo era isso: difamação contra um homem de Deus...

Donnie Darko é um filme que expõe as brechas discursivas que permeiam a nossa realidade e isso se configura dentro da estética narrativa do longa. As próprias existências se batem nessa falta de lógica, a que atinge curiosos paroxismos em determinados momentos. A loucura de Darko, curiosamente, dá-lhe uma visão ampla e realista de tudo. Por esse motivo, ele não é um incel, um ser de ego ferido a atirar em quem expõe suas feridas. Ele atira contra o discurso homogêneo da sociedade, contra o guru que de forma simplista reduz tudo a discurso de autoajuda.

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