Do Globe para o globo: Shakespeare in loco
Por Guilherme
Mazzafera
Gonçalo Viana. William Shakespeare´s portrait for a feature marking the 400th anniversary of his passing. |
Toda
biografia é uma espécie de ficção: há um esforço inato da imaginação para
preencher as lacunas deixadas pela história com o intuito de compor uma imagem
una, concreta e factível do ser representado. Toda biografia é uma aspiração ao
verossímil, e não à verdade, que não há, sendo sempre uma construção
interessada e erigida sobre pontos de vista específicos que cabe ao leitor
rastrear.
Posto de
outro modo, o biógrafo é como um poeta que tem ao seu dispor um arsenal de
recursos materiais (as palavras em estado de dicionário ou em imanência no
corpo de outras obras), cabendo ao artista a capacidade de unir, alijar e
ressignifcar tais palavras, daí a importância de preposições, conjunções e
espaços de não palavra na composição e leitura de um poema. Não é à toa que o mais difícil em decorar
versos está em internalizar estas partículas que sub-repticiamente reinventam o
mundo e a linguagem. Em certa medida, a tarefa do biógrafo é a de inserir
conectivos aos fatos da vida do biografado, o que exige não apenas talento, mas
uma boa capacidade hermenêutica e a clara consciência de que o que escreve é
uma interpretação entre muitas possíveis.
1599: Um ano
na vida de William Shakespeare (Editora Planeta, 2005, tradução de Cordelia
Magalhães e Marcelo Musa Cavallari) é um estudo biográfico-ensaístico escrito
por James Shapiro, professor da Universidade Columbia, que procura rastrear,
com abundância de detalhes e coerência organizativa, a vida do bardo em 1599 em
seu mais amplo aspecto: o que leu, as peças que compôs e encenou, seus vínculos
com outros dramaturgos elisabetanos, amizades e desafetos com os atores de sua
companhia, a construção de um novo teatro (o Globe) e a pertinência do contexto
histórico mais imediato.
Com uma
narrativa fluida e dividida pelas estações do ano, o livro narra, em um
interessante entremeio entre a vida pessoal e o contexto histórico-politico, a
composição e encenação das peças Henrique V, Júlio César, Como gostais e Hamlet,
que marcam um ponto de virada na carreira do dramaturgo, que ao longo dos
próximos anos produzirá algumas de suas mais importantes peças: Otelo, Rei Lear
e Macbeth.
Shapiro advoga
com muita clareza pela inextrincabilidade dos laços entre o que Shakespeare
escreveu e o que os elisabetanos vivenciaram naquele ano, no sentido de que as
peças apresentam uma reflexão artisticamente (de)formada dos acontecimentos:
elas são tanto condicionadas pelos eventos como destes libertas pela mente
criadora do artista, que apresenta uma interpretação privilegiada dos mesmos.
O argumento
central desta biografia-ensaio – e Shapiro dedica um belo capítulo à influência
dos Ensaios de Montaigne no desenvolvimento dos solilóquios de Hamlet, com suas
devidas mediações –, a meu ver, é a convicção de que a escrita de Shakespeare é
indissociável das condições materiais (o tipo de palco, tempo de espetáculo,
tipo de público etc.) e das relações interpessoais (para quem Shakespeare
escrevia determinados papéis) de seu contexto de produção. Como diz Shapiro,
“Quando Shakespeare se sentava para escrever uma peça, fazia-o tendo em mente
as habilidades desse talentoso grupo [os Charberlain’s Men]. Hamlet não seria a
mesma obra se Shakespeare não tivesse escrito o papel principal para Richard
Burbage. Os papéis cômicos eram escritos para o talento da improvisação
apalhaçada de Will Kemp.” (p.28). Em certa medida, todo o livro é um amplo
desenvolvimento desta importante premissa, e grande parte de seu valor reside
na elucidação e interpretação de fatos e versos cujas ressonâncias mais
imediatas têm se apagado ao longo da recepção da obra do bardo, que tem
majoritariamente privilegiado o Shakespeare universal em detrimento do inglês
enraizado em seu tempo e espaço. Este, como lembra Machado de Assis, advogando
em causa própria no invelhecível “Instinto de Nacionalidade” (1873), é
essencialmente inglês mesmo quando situa suas peças em tempos e lugares remotos,
pois o que emana de sua obra é um poderoso “sentimento íntimo”, atributo
distintivo de todo grande escritor que o faz homem de seu tempo e país
independente das balizas espaço-temporais que escolha trabalhar em sua obra.
Poucas
coisas surpreendem mais o leitor contemporâneo do que a asserção de que
Shakespeare escreveu apenas quatro tramas originais (Trabalhos de amor
perdidos, Sonho de uma noite de verão, As alegres comadres de Windsor e A
tempestade) e que suas peças seriam tão fragilmente dependentes do contexto
histórico e das veleidades de um grupo de atores. E ele tem razão. Para não
incorrer em anacronismos, é preciso levar em consideração que Shakespeare e
seus contemporâneos partilhavam ainda de um senso de unidade cultural, como nos
informa Octavio Paz:
“[...] como
aponta Pound, a unidade da Europa ainda era uma realidade para Shakespeare e
seus contemporâneos e por isso, livremente, como quem dispõe de um bem comum,
eles se inspiram em temas e obras italianas, dinamarquesas ou espanholas. A
visão de mundo dos poetas elisabetanos revela de modo ainda mais profundo a
relação de filiação entre o pensamento europeu renascentista e o teatro inglês.
A substância do pensamento de Marlowe, Shakespeare, Ford, Webster ou Jonson é
uma livre intepretação de Montaigne e Maquiavel. O individualismo de um Macbeth
ou de um Fausto é reflexo das condições desses tempos, mas entre tais condições
se inclui, justamente, o pensamento da época. ‘Nem é preciso lembrar’ – diz
Eliot – ‘com que facilidade, numa época como aquela, a atitude senequista de
orgulho, a cínica de Maquiavel e a cética de Montaigne puderam fundir-se no
individualismo elisabetano’. O que para os trágicos gregos foram a teologia de
Homero e a filosofia, e para os espanhóis a neoescolástica, o pensamento de
Montaigne foi para os elisabetanos. A Europa dá aos poetas ingleses uma
filosofia concebida não tanto como conjunto de doutrinas, mas como uma maneira
de entender o mundo e o homem.” (PAZ, 2014, p.220-221)
Mais do que
isso, Shakespeare era um gifted borrower, um prolífico arranjador cujas
operações de acréscimo e subtração redimensionavam o texto de partida,
recompondo-o por meio de uma técnica literária, seja em verso ou prosa, muitas
vezes superior à das fontes. O leitor interessado em desvelar o “essential
Shakespeare”, como diz Carpeaux, deve atentar para essas modificações, pois é
por meio delas que se revelam suas “intenções de poeta” (CARPEAUX, 1999,
p.551). No caso de Romeu e Julieta, por exemplo, o recurso às fontes (um poema
de Arthur Brooke inspirado em um conto de Bandello) parece evidenciar que “a
Desordem do mundo, o acaso, é o próprio assunto da peça” (p.553) e, por sua
disseminação no enredo, é possível palmilhar as intenções do poeta: ao valorizar
tal dimensão, o “acaso” que fomenta a briga entre a casa dos Montequio e a dos
Capuleto, o autor põe em evidência a imbricação dessa disputa com a dinâmica das
relações sociais que acabam por almejar a supressão da liberdade individual.
Assim, uma vez construído socialmente, tal desafeto também pode ser socialmente
superado, algo diverso do “amor irracional” dos amantes, que, sacrificado na
peça, erige-se como símbolo do que é propriamente humano e inextirpável do seu
ser (p.555).
A imagem
essencialmente universalista de Shakespeare enquanto centro inalienável do
cânone mundial, i.e., ocidental, i.e., HaroldBloomiano, é tão verdadeira quanto
seu verdadeiro falso retrato “Chandos” que encontramos reproduzido em todo tipo
de produto. De modo incisivo, Shapiro nos lembra de que “As biografias
convencionais de Shakespeare são obras de ficção indispensáveis que sempre
estarão conosco – menos pelo apresentado sobre a vida dele do que pelo revelado
sobre nossas fantasias e sobre quem desejamos que ele seja” (p.16). Contudo,
seria um erro acreditar que há certo pendor democrático na composição de tal
imagem.
A leitura
universalizante advoga pela imanência do valor de uma obra literária, por sua
autonomia em relação ao contexto sócio-histórico e pela existência de verdades
eternas sobre a condição humana que seriam percebidas e elaboradas por artistas
geniais e, ato contínuo, ofertadas à apreciação dos leitores de apurada
erudição. No entanto, como adverte Ginzburg, “Supor que existam ‘verdades
eternas’ capazes de expressar a experiência da condição humana em meio a todas
essas diferenças culturais e históricas é mais do que idealismo: é um
falseamento, ideologicamente conservador, dos mecanismos de opressão.” (GINZBURG,
2012, p.30). Tal falseamento, uma vez convertido em teoria e aplicado como
método de estudo de obras literárias, acaba por institucionalizar uma “teoria
autoritária da literatura”, encabeçada pelo crítico americano Harold Bloom,
Shakespearomaníaco, “que legitima a postura elitista de ensino, sustentando que
é parte da concepção do fenômeno literário o fato de que poucos podem
compreendê-lo” (p.71).
Mais do que
isso, a estabilidade universalizante contribui para o apagamento das
possiblidades de mudança social e parece muito curioso a permanência de um
dramaturgo como centro do cânone em um mundo em que a arte teatral é cada vez
mais relegada a segundo plano. O romance prevê o leitor o solitário, enquanto o
teatro existe como performance e apreciação coletiva, lançando mão do diálogo
(a partição do logos) enquanto recurso estrutural e também efeito, instigando-o
no público como meio efetivo de intervenção político-social: não foi imotivada
a escolha de uma encenação pública de Ricardo II, peça na qual se tem a
deposição de um monarca, por parte dos partidários do Conde de Essex às
vésperas de um malfadado ato de insurgência contra o reinado de Elizabeth
(p.371).
É válido
mencionar que, como diz Shapiro, “Shakespeare não escreveu ‘como se fosse de
outro planeta’, como Coleridge colocou: ele escreveu para o Globe; não era na
sua mente ou mesmo na página impressa, mas no teatro propriamente dito que suas
peças ganhavam vida e tinham importância.” (p.357). Assim, as peças de
Shakespeare, embora não tivessem o intuito de intervenção direta nos assuntos
políticos, não deixavam de fazê-lo e, com isso, seus versos adquirem camadas
insuspeitadas de significação.
Se por vezes
o excurso histórico pode parecer cansativo ou excessivamente digressivo, o
retorno a versos específicos, imagens e temas postos em cena pelas peças acaba
por perfazer uma translação profunda que confere uma espécie de harmonia essencial
aos movimentos do texto: “O Globe mostrou-se crucial para a ruptura artística
de Shakespeare. Ele foi o primeiro dramaturgo moderno a desenvolver essa
conexão íntima com um espaço de atuação e uma plateia, ambos específicos.”
(p.367). É o reconhecimento e exploração das particularidades, da especificidade
dessa conexão ao invés da abstrata “invenção do humano” de Bloom que tornam o
livro de Shapiro uma compreensão profunda e necessária de uma figura curiosa e
inalienável da literatura, figura tão proeminente que sua própria existência e
condição de autor são ainda hoje questionadas. Existência e autoria estas que
Shapiro defende com muita convicção e toques de humor em outro livro, Contested
Will: Who Wrote Shakespeare. Mas isto é outra história.
Em tempos de
terra plana, saber que Shakespeare escrevia não para o papel nem para os
universais abstratos do humano, mas para a pulsação viva do drama encarnado nas
personas dos atores, para o Globe, e daí para o globo e para nós, não diminui
sua importância nem amesquinha sua arte; pelo contrário, é grande motivo de
consolação e aprendizado diante de ventos não muito auspiciosos que requerem,
cada vez mais, uma arte vincada em seu tempo, condição fundamental para falar
além dos próprios muros.
Referências:
ASSIS,
Machado. Instinto de Nacionalidade. In: Obras completas de Machado de Assis:
crítica literária. São Paulo: Editora Mérito S. A., s/d, pp. 129-149.
CARPEAUX,
Otto Maria. Both your houses. In: Ensaios reunidos:Vol.I (1942-1978). Rio de
Janeiro: Topbooks; UniverCidade, 1999, pp. 550-555.
GINZBURG,
Jaime. Cânone e valor estético em uma teoria autoritária da literatura. In: Crítica
em tempos de violência. São Paulo: Edusp; Fapesp, 2012, pp. 61-74.
PAZ,
Octavio. O arco e a lira. O poema. A revelação poética. Poesia e história.
Tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Cosacnaify, 2012.
SHAPIRO,
James. 1599: Um ano na vida de William Shakespeare. Tradução de Cordelia
Magalhães e Marcelo Musa Cavallari. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2005.
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