Como nasce e renasce um leitor

Por Rafael Kafka



Comecei a ler nessa semana Servidão humana, de Somerset Maugham, e escolher a opção de leitura de um livro por vez – tomada após um infeliz acidente com meus óculos causado por uma mente acelerada, cansada e desatenta – me levou a perceber detalhes do gesto de ler muitas vezes ignorados por nós quando nos propomos, com nossa mente academicista e utilitarista demais em tempos pós-modernos, a nós ocuparmos com diversas leituras.

Muitas vezes o tempo de leitura mais focado garante que uma cena, por si só, garanta a nós um profundo prazer estético e intelectual por conta de sua dimensão existencial e reveladora. Na leitura multifocal acabamos perdendo muito disso, pois com a pressa ou não sentimos plenamente a poesia desta ou daquela cena ou frase ou não nos permitimos refletir e sentir tal dimensão, produzindo nós mesmos nossos pensamentos e textos que merecem ser compartilhados com outros leitores ávidos de debates de ideias e impressões.

Nesse sentido, considero a cena que me motivou a escrever este pequeno texto com preâmbulo imenso uma dupla salvação por revelar a mim a beleza contida em uma cena e em como ela pode ser explorada pelo pensamento crítico e por me fazer reviver a origem do prazer da leitura, algo que sinto ter traído demais com os academicismos, ocupações e redes sociais de meados de 2010 para cá.

Tal momento salvador se passa na casa do tio de Philip, protagonista do bom romance de formação de Maugham, um garoto que teve de lidar precocemente com a morte prematura dos pais e hoje vive em um lar conservador e religioso. Dado dia, o seu tio, que o proibia de brincar aos domingos e era o vigário de uma paróquia, pede-lhe que decore uma oração simples composta de dez linhas. Diante da impossibilidade de conseguir tal meta, o jovem começa a chorar e conta com o apoio da tia Luisa que sugere ao esposo a entrega de livros ao menino para que ele não fique ocioso e nem sofra demais com metas complexas.

Os livros eram uma presença constante na casa, mas paradoxalmente não eram lidos, como ocorre constantemente em lares que adoram vender a imagem de erudição cristalizadas em objetos culturais. Luisa a priori lê para Philip focada nas figuras e aos poucos o jovem garoto se encanta com aquela ação e passa a ler sozinho para saciar sua curiosidade.

Após ler as palavras para entender as imagens, Philip começa a ler mais livros centrados nas palavras e de repente se encontra em um estágio no qual a leitura parece suplantar a realidade concreta das coisas. Tudo começa a soar raso, tedioso, limitado e os livros se tornam uma grande obsessão libertadora para o jovem, que nos anos seguintes se destacará na escola sempre achando tal espaço incapaz de suprir seus anseios mais profundos.

Por mais que o romance em seu desenrolar mostre Philip cada vez mais afastado do caminho da plenitude poética, revelando-se um ser sem identidade definida e buscando desesperadamente a realização por meio das relações humanas, a cena de seu despertar leitor possui um poder imenso dentro da história e muito me tocou por conta da singeleza com a qual demonstra e explora a profundidade do ato leitor em sua descoberta.

Cada vez mais me deparo com professores e pais questionando o porquê de jovens não se interessarem pelo ato de leitura. A resposta muitas vezes é um espelho cruel o qual se volta para o interlocutor. Afinal de contas, a quantidade de pessoas leitoras no mundo adulto é algo que me espanta. Não levo muito tempo para concluir que os adultos os quais reclamam dos jovens não leitores foram provavelmente jovens não leitores também.

Um dia, uma conhecida olhava para o livro que eu tinha em mãos e após manuseá-lo um pouco falou de como achava ter lido em sua vida toda cerca de vinte livros. Citou autores frequentemente encontrados nas listas de best-sellers do mundo e seu ar encantado me comoveu, pois por dentro eu não me sentia empolgado com sua proeza. Vinte livros em uma vida, mesmo como estimativa imprecisa, é algo bem reduzido. Ademais, best-sellers são sim caminhos interessantes de começo de percurso literário, porém tendo a crer que o que faz sucesso geralmente se esbalda no uso do óbvio, do clichê. Nesse sentido, penso que se resumir a leituras de uns poucos best-sellers é uma atitude limitadora demais para uma pessoa leitora.

Alguns anos do diálogo com minha colega, a mãe de um aluno me questiona sobre como agir diante de um filho que não suportava ler. Disse a ela que o melhor remédio era, além de comprar livros, ler com o garoto para mostrar o prazer da leitura como algo dialógico. A mãe, alegando falta de tempo, preferiu seguir reclamando do filho preguiçoso e eu não pude fazer muito nesse caso em específico.

Situações como essas são extremamente comuns. Por mais que ler em si não garanta o surgimento de uma conduta ética e crítica no dinamismo individual de determinado ser, a falta da leitura parece ser um sério problema social, pois nos remete ao simplismo do lugar comum nos debates de toda ordem. E o senso comum, parecendo uma ponte segura, nos impossibilita de enxergar o óbvio. A tia de Philip foi sua mediadora de leitura, foi quem o fez entender e sentir o prazer do texto. A singeleza dessa cena é salvadora por mostrar quase sempre o ignorado pelos que reclamam da falta de leitura: aprendemos a ler imersos em um contexto de leitura e se nós não lemos não temos como cobrar, questionar ou incentivar o hábito de leitura. Ler é sofrer uma obnubilação pelo ler em si, um fenômeno tão intenso que nos faz muitas vezes fazer dos livros um prazer obsessivo cujas fronteiras com o trabalho crítico e literário, com a obrigação, tornarem-se tênues demais.


Um dia fiquei impressionado com o mito da autoajuda encarnado em Leandro Karnal na forma de um leitor afinco de diversos livros, que dorme pouco, ouve música clássica e tem a pose mais culta para falar das mais banais obviedades. Comecei a me cobrar a enfrentar diversas leituras ao mesmo tempo e cheguei a crer em alguns momentos estar vivendo em ritmo intenso e pleno de existência. Quase um ano depois, comecei a sentir os olhos tremendo e percebi em mim sérios lapsos de memória. Era comum sair de casa e esquecer algo importante ou mesmo me pegar com uma ansiedade brutal a qual me fazia pensar o tempo todo em arranjos de tempo em que coubessem todas os livros lidos em dado momento.

Muitas vezes, sacrifiquei sono nesse desejo de ser mais produtivo e abri mão praticamente da escrita e de outros prazeres estéticos e intelectuais para me sentir apto a vencer minhas metas. Há quase dois meses, contudo, comecei a estudar com Walquíria, uma grande amiga, para uma prova de concurso público e a convivência com ela me fez rever minha dinâmica de tempo. Ademais, enfrentei um processo de greve no município onde dou aulas e isso me levou a crer que ficar em casa lendo diversos livros infelizmente não é uma possibilidade concreta para a existência. Viver exige muito mais responsabilidades com o mundo, a luta política e mesmo com minha saúde.

Lembro-me de uma situação na qual um aluno reclamou de uma resposta grosseira minha e tive de pedir desculpas, pois tal grosseria se devia à ansiedade que me dominava naquele momento, causada pela obsessão de ser um leitor mais produtivo. Estudando com Walquíria e ouvindo dela insistentemente que eu deveria começar a não me forçar tanto a ler tanto, lembrei do aluno em questão e avaliei o quanto essa obsessão em atingir um modelo intelectual produtivo estava me fazendo mal. Além de ansioso, peguei-me displicente em diversos outros pontos de minha vida pessoal e profissional e meu corpo passou a dar mais sinais de cansaço e stress. Ao mesmo tempo, dormia aborrecido porque as sessões de estudo para o concurso me tomam muito e não conseguia mais adiantar três leituras em um mesmo dia.

Em dado momento, peguei-me encarando a beleza de minha amiga e pensando em como fazia tempo que não parava para simplesmente contemplar algo. Cheguei em casa, coloquei uma música e passei a ler um livro que gostaria de concluir naquele mesmo dia. Não terminei a tarefa, mas passei a me sentir inebriado pela influência da melodia e pelas frases as quais entravam com mais calma em mim, por conta de uma atenção dividida em dois prazeres estéticos. No dia seguinte, a caminhada para a casa de Walquíria já não era focada em pensamentos de ordenamento obsessivo de tempo e sim em olhar as paisagens, rir de memórias antigas e de analisar como determinadas pessoas trazem um colorido bonito a minha existência.

Peguei o livro de Somerset na biblioteca pública por esse período e tenho lido-o sem pressa. Sorvi completamente essa cena por diversas vezes, bem como outras tantas. Hoje, pego-me saboreando momentos da leitura e em cima deles refletindo e sentindo, algo que há muito não me permitia fazer pela pressa do cotidiano, piorada quando tentei me adequar ao modelo ideal midiático produtivo que se vende como intelectual incessante, sem tempo de descanso, sem futilidade. Philip lendo me encantou porque leitura é acima de tudo brincar, um prazer que temos quando simplesmente a realidade não nos basta e pela superação do contato com o livro buscamos entendê-la e experienciá-la de forma mais plena.

Por esses dias, peguei-me querendo ler novamente mais de um livro por vez, mas logo abri mão disso. Há muito a ser lido nos livros, mas também há muito a ser lido na realidade concreta, nos jornais, vídeos, filmes, curtas, debates, nos passeios, nas conversas sem pretensão e nas melodias ouvidas casualmente em uma noite de relaxamento. Sei que infelizmente amanhã ou depois posso vir a morrer sem ter lido algo que gostaria muito de ler. Nos últimos dias tal noção não tem sido um convite à pressa e sim uma espécie de alívio por exibir como nós, leitores, teremos sempre a nosso favor um rol de possibilidades de prazer e de descoberta que não nos deixará cair no tédio jamais.

***

Rafael Kafka é colunista no Letras in.verso e re.verso. Aqui, ele transita entre a crônica e a resenha crítica. Seu nome é na verdade o pseudônimo de Paulo Rafael Bezerra Cardoso, que escolheu um belo dia se dar um apelido que ganharia uma dimensão significativa em sua vida muito grande, devido à influência do mito literário dono de obras como A metamorfose. Rafael é escritor desde os 17 anos e sempre escreveu poemas e contos, começando a explorar o universo das crônicas e resenhas em tom de crônicas desde 2011. O seu sonho é escrever um romance, porém ainda se sente cru demais para tanto. Trabalha em Belém, sua cidade natal, como professor de inglês e português, além de atuar como jornalista cultural e revisor de textos. É formado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará em Letras com habilitação em Língua Portuguesa e em Língua Inglesa pela Universidade Federal do Pará. Chama a si mesmo de um espírito vagabundo que ama trabalhar, paradoxo que se explica pela imensa paixão por aquilo que faz, mas também pelo grande amor pelas horas livres nas quais escreve, lê, joga, visita os amigos ou troca ideias sobre essa coisa chamada vida.

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