Cinco razões (talvez algumas mais) para desfrutar do “Ulysses”, de James Joyce
Por José Manuel Benítez Ariza
Richard
Hamilton, "The Transmogrifications of Bloom" (1984-1985)
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Não parece
mal que se trate os clássicos literários como facilidade e naturalidade:
possivelmente uma das causas da aversão de amplas camadas da população pela
literatura, ou certo tipo de literatura, seja sua abusiva consideração como
território exclusivo de professores e acadêmicos e de suas sérias elucubrações.
Mais sensato é considerar que os livros que preservam um prestígio inquestionável
como clássicos se devem ao fato de continuarem falando com os leitores de hoje com
a mesma pertinência e poder persuasivo com os quais conquistaram a estima das
gerações passadas. E essa desejada aproximação deve traduzir-se, sem dúvida, na
possibilidade de questioná-los, de aceitar algumas coisas e mesmo recusar
outras, ou ainda de tentar uma aproximação a eles à margem das interpretações
mais ou menos canônicas que o tempo tratou de deitar por sobre eles.
Não se inclui
nesse louvável propósito, logo se percebe, a série de artigos escritos por Kiko
Amat sobre alguns dos livros que gozam da consideração de obras-primas da
literatura universal. Pelo contrário. O que parecem transmitir tais textos é a
ideia de que o leitor apressado agirá mal em dirigir sua curiosidade por esses
livros e que o esforço para os ler, e enfrentar suas possíveis dificuldades,
não vale a pena. Mensagem, então, muito em consonância com a moderna ideia de cultura
como um mero repertório de produtos de rápido consumo que deva se propor apenas
às exigências do seu público e, por sua vez, não o obriga a reinventar sua inércia
intelectual ou sua visão de mundo.
O último clássico submetido e esse sumaríssimo justiçamento
foi o romance Ulysses, de James Joyce*;
um livro, afirma o autor, “que só pode ser lido sofrendo”, que se reduz a “uma confusão,
clara e simplesmente” e que carece de “sentimento e trama”. O argumento do
romance, acrescenta Amat, é “irrelevante”, seu protagonista, Leopold Bloom, não
é senão o que “Joyce imaginava que devia ser um homem comum, pois é lícito
suspeitar que jamais tenha falado com um”. Eteceteras. Ao que parece, sugere
Amat, um romance é mais interessante se suas personagens “adestrem dragões” ou
“combatam contra comensais da morte”; coisas que, evidentemente, não acontecem
em Ulysses.
O fato é que
há leitores, como é o caso deste que escreve, que não só lemos o romance de Joyce
com interesse, como inclusive achamos uma obra excitante e divertida; e isso,
por razões sensíveis de ser enumeradas; e, mesmo que, como expõe o próprio
Amat, talvez não convençam mais aos previamente convencidos, é possível que encontrem
neste desanimado debate algum argumento favorável ao fato de que investir tempo
e esforço em ler um livro como este pode levá-lo a prazeres imprevistos,
negados por completo a quem nem sequer se permite senti-los. Digamos, então:
1. Como muito bem sabem os jogadores de
cartas e os alpinistas, o complexo não necessariamente implica aborrecimento. Muitas
vezes acontece justamente o contrário. A capacidade de desfrutar atividades que
requerem certo grau de entretenimento prévio melhor multiplica o efeito prazeroso
do objeto desfrutado. Nenhum leitor medianamente informado ignora que o romance
ocidental experimentou ao longo do século XIX e princípios do século XX um processo
de maturação que se traduziu numa maior complexidade técnica e do enredo. Para
que essa complexidade não suponha um obstáculo para o leitor há uma só receita,
a mesma que se aplica a qualquer atividade gratificante e que requer alguma
preparação prévia: recorrer à escala completa que vai dos compromissos mais
acessíveis aos mais complexos; isto é, gozar com o grau de complexidade maior
que o de romances como os de Henry James ou Marcel Proust supõem em relação à
literatura de Balzac ou Galdós – coloco-os aqui por puro acaso, veja: não
estamos falando sobre valor; um romance ser mais complexo que outro não significa
necessariamente que seja melhor. Nessa escala, o romance de Joyce se situaria numa
posição imediatamente superior às primeiras; o que, sem dúvida exige certo
esforço do leitor ou, pelo menos, certo hábito de frequentar textos dessa complexidade.
Mas o alpinista experiente, dizíamos, não desiste depois de encontrar em seu
percurso alguma outra montanha por escalar. Sobretudo, se a visão do alto vale
a pena.
2. Disso se deduz que Ulysses não é apenas pura confusão; e
boa parte de sua construção transcorre nos encalces do romance realista
tradicional. Considere-se, por exemplo, o capítulo em que os protagonistas se
encontram no enterro de um tal Paddy Dignam no cemitério de Dublin: tem o
ritmo, a precisão, o amor ao detalhe e a capacidade de apresentação das
melhores páginas de um Balzac. Não parece que ler “em diagonal”, como fazem os
maus estudantes e os leitores desmotivados, seja a melhor maneira de desfrutar
uma obra literária; mas, já que Amat confessa que esse método o tem salvado de
não poucas “situações ultrapassadas”, poderia acrescentar que Ulysses pode ser sim um livro até certo
ponto apropriado para ser lido, se não em “diagonal”, de um modo seletivo: sua
variedade estilística e a perfeita delimitação
de suas partes permitem que o leitor muito acostumado com a estrutura do conjunto
possa se movimentar com comodidade ao longo da narrativa e revisitar passagens
preferidas.
3. A diferença, entretanto, das grandes
obras-primas do romance do século XIX, em que predomina certa pretensão da
objetividade documental, portanto sisuda, apreciável inclusive no tom, é que Ulysses se inclina desde sua primeira
página para as tonalidades da comédia; isto é, trata-se de um livro decididamente
humorístico ou que apela constantemente para os mecanismos da provocação irônica, da paródia,
do pastiche e da caricatura. Se sua primeira parte, a dedicada às andanças solitárias
de Stephen Dedalus, se abre com uma paródia da consagração eucarística de um
estudante descrente, a segunda se inicia com o momento em que o olhar do narrador
surpreende Leopold Bloom enquanto “mastigava desesperadamente as vísceras de
aves e quadrúpedes” em seu café da manhã. É a paródia em clave dublinesca: a
linguagem do exagero e da blasfêmia, ouvida nas tabernas, das conversas de
estudantes e passadas às páginas de um romance. Tampouco falta franqueza – e
isso foi motivo para que o romance fosse censurado em diversos países – na hora
de se referir à fisiologia e ao sexo, nessa mesma clave cínica e da taberna que,
sem dúvidas, alcança ricas modulações íntimas quando transmuta na “palavra
interior” de uma mulher – Molly, a esposa de Bloom – que em seu cochilo recria-se
com suas recordações sobre suas experiências amorosas. Se o humor é frequente a
expressão de uma visão lúcida da realidade e permite ver as pessoas em justa
medida, muito além da pretensão do enaltecimento, Ulysses é uma amostra deste modo de entendimento tornado em prática.
4. Essa perspectiva humorística não
impede Joyce de alcançar uma profunda compreensão de suas personagens e da
dignidade humana essencial que lhes assiste, muito de sua condição insignificante
ou marginal. Bloom é um corno e sua condição de judeu o expõe ao desprezo e inclusive
à violência de seus mais próximos, mas é uma pessoa dotada de imaginação e de
uma insólita capacidade de empatia, que podemos apreciar graças ao empenho de
Joyce em destacar até seus menores pensamentos. O mesmo se pode dizer de sua
mulher, Molly. Talvez Stephen, o protagonista jovem, possa ser mais esquivo, em
sua condição de intelectual um tanto ressentido e carente de experiência existencial.
Não se pode esquecer que ele é alter ego
do autor e que o retrato feito por este de si mesmo não é em absoluto complacente
e revela que Joyce não só não era “o repulsivo levanta-dedos da aula, nerd com
óculos fundo de garrafa”, como Amat o descreve, mas uma mente aberta à
compreensão perspicaz do próximo e igualmente certeira e implacável na hora de
julgar a si mesmo e talvez seus mais próximos, a sem noção e inoperante classe
irlandesa de seu tempo.
5. O enredo do romance não é absolutamente
banal. Joyce alcança o milagre de que o deambular de um punhado de pessoas comuns
por uma cidade ao longo de uma só caminhada adquira a tensão e o dramatismo dos
melhores romances de aventuras; se estes, como sem dúvida Amat não ignora, parecem
ser basicamente narrativas que se iniciam com uma crise e se resolvem num processo
de busca conducente a um episódio de encontro e ressignificação. Isto é o que acontece
no Ulysses; e a diferença das
histórias de dragões e goblins que parecem fascinar Amat reside no fato de os
motivos que impulsionam suas personagens são preocupações de gente adulta num contexto
cotidiano. Precisamente a grandiosidade do romance consiste em revelar aos seus
leitores a condição mítica que pode alcançar a luta diária com as pequenas contrariedades
e o caráter iniciático de qualquer percurso de aprendizagem e revelação. E aqui
é onde entra em jogo a tão traída e levada “necessidade” de conhecer a Odisseia para entender este livro, que
talvez se reduza à ideia, não de um todo inesperada em Joyce, de que o leitor
que se atreva mergulhar em seu romance seguramente é porque conhece
determinadas obras que poderíamos considerar de leitura obrigatória para
qualquer pessoa de educação mediana; e que, portanto, reconhecer o paralelismo
entre os feitos que acontecem no romance e as aventuras iniciáticas de Odisseu
não está fora do alcance de um leitor experiente. Ingenuidade? É possível que
assim pareça a um aluno negligente ou aos modernos partidários da pedagogia
instrumental. Mas com certeza um intelectual de ideias avançadas de princípios
do século XX, como foram nossos krausistas ou como, reticentemente, foi o
próprio Joyce, não considerava as coisas dessa maneira.
Poderíamos continuar
enumerando motivos que fazem da leitura de Ulysses
uma experiência inesquecível. Entre eles, talvez, sua capacidade para conter
o pulso vivo de uma cidade, Dublin, que todavia se reconhece nas páginas de um
livro situado em 1904 e publicado em 1922. Mais relevante me parece o espírito cético
e individualista que transita por todo o livro, seu insubornável apego ao cotidiano,
ao ressentimento das grandes construções ideológicas, reducionistas e
totalitárias que planejavam – e planejam – sobre a comprometida individualidade
do homem europeu de então e de hoje. Nada mais que por isso, Ulysses merece ser colocado
anteriormente a um bom número de títulos de prestígio que, sem dúvidas, não conseguiram
elevar-se sobre esses onerosos débitos da época.
Não sei se o
que digo servirá para convencer alguém de que a leitura de uma obra literária
da riqueza e complexidade do Ulysses é
não apenas proveitosa e intelectualmente estimulante, mas, antes de tudo, extremamente
prazerosa. Esse desfrute requer simplesmente algo que talvez nem todo mundo
esteja disposto a dar: predisposição e tempo para mergulhar pouco a pouco, gradualmente,
com quem se exercita num esporte apaixonante, no inesgotável mundo da
literatura que pretende oferecer algo mais que evasão ou entretenimento. Os
preguiçosos, os desmotivados e destituídos de curiosidade, já se sabe, nunca alcançarão
o cume do Everest; nem sequer de outras montanhas mais próximas e acessíveis. Poderão
ter suas razões, certamente, e inclusive pode ser que se sintam animados a
fazer graça com elas. Nós também temos as nossas.
* O texto sobre o Ulysses está aqui. A partir dele também poderá chegar a outros textos de Kiko Amat que vimos traduzindo neste blog. O texto aqui apresentado é a tradução de “Cinco razanoes (quizá algunas más) para disfrutar del Ulises de Joyce”, publicado no El País.
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