Torquato Neto, exercício de liberdade
Por Pedro Fernandes
eu sou como
eu sou
pronome
pessoal
intransferível
do homem que
iniciei na medida do impossível
Os versos
que abrem este texto são do poema “Cogito” incluído na antologia Melhores poemas Torquato Neto preparada
por Cláudio Portella. É um daqueles textos em que o poeta exercita uma
definição sobre si, um trabalho de constituição de sua identidade pela obra da
qual é criador e pela qual, por que não, também se cria. Possivelmente, este
poema deve comparecer em quaisquer coletâneas do poeta, porque é uma de suas
melhores composições. A afirmativa está livre de qualquer arroubo heroicizante
sobre um poeta continuamente redescoberto nos últimos anos. E, muito menos, se
interessa em reduzir o valoroso trabalho criativo do autor a apenas um texto.
E, ainda que fosse, sosseguemos, era já motivo para não o desmerecer do epíteto
que o designa.
O diálogo
desse poema é com o pensamento fundador da razão proposto por René Descartes no
seu Discurso do método. Rotineiramente
a frase clássica cogito, ergo sum –
que foi traduzida para o português como penso,
logo existo – é atribuída na designação do nascimento da ideia do homem como
centro de todas coisas, do pensamento como estrutural determinante de si e do
mundo, da edificação de uma certeza do eu e, logo, da identidade enquanto
unidade bem constituída. É evidente que todos esses sentidos são questionáveis
e o poema de Torquato Neto é justamente uma proposição dessa natureza.
O poema
assume o mesmo tom da sentença do filósofo francês, mas transfere a unidade da condição
existencial do pensamento para a da escrita. Isto é, funde-se à palavra, esse
elemento a um só tempo constitutivo do poema, capaz de filtrar a poesia,
renovar as extensões nuas de sentido da existência e, por fim, servir de matéria
no sopro anímico do sujeito poético, entidade singular, transitável, ora
distinta e indistinta do poeta ao ponto de ser sempre erroneamente confundida com
a pessoa física, a capaz de verter a ordem de tudo na e pela palavra.
Torquato Neto
preenche, assim, uma resposta de que enquanto poeta tal unidade é
fantasmagórica e ela só preenche a condição na
medida do possível, no agora, presente, no vidente. Garante assim a recusa da simplificação e ressalta a beleza da
diversidade, duas características que significam tão bem sua atividade poética, breve
e intensa, assinalada por uma irreverência que dissimulava ou se mostrava muito
indiferente ao monstro que tragaria sua existência.
Há um conjunto
de fotografias recorrente na web em
que o menino magro de Teresina aparece trajado de vampiro. Os registros são recordações
de quando se compôs para o filme Nosferato
no Brasil, filme da década de 1970. Torquato se apresenta em todos eles como
que embevecido pelo poder que a capa rubro-negra lhe projeta. Nisso há uma
diversidade de simbologias indispensável o suficiente para não ser insuficiente
na compreensão da condição de múltiplas emulações
do eu e disfarçamento da solidão
profunda que não se hospeda em quase nada de sua obra, assumidamente multicolor
e irreverente.
Toda a força
da obra de Torquato Neto é endereçada à construção de uma nova possibilidade criativa
eminentemente brasileira como queriam os modernistas de 1922. O papel que
interpreta no filme de Ivan Cardoso é sinônimo desse projeto – a apropriação de
uma figura do imaginário coletivo estrangeiro animado com as forças tropicais que são eminentemente marcadas
pela ordem do improviso e as formas alimentadas pelo excessivo capaz de gerar
produtos culturais marcados por amplas multitudes. Daí não sobrar nada de
monstruoso nesse vampiro que gasta o tempo a correr em busca do alimento
indispensável a mantê-lo vivo. O monstruoso, voltamos a dizer, é negado.
Assim, uma
antologia que possa conter o múltiplo fazedor
de poemas que foi o vampiro do Piauí precisa compreender as variedades de
gestos poéticos que forjou em sua breve existência – sempre nos perguntaremos
nesse diapasão poeta-personagem-obra se terá ele a certa altura se sentido cansado
de buscar novo sangue ou terá findado com a certeza de que o que lhe cabia sugar já
era suficiente e restariam uma legião de súcubos capazes de tornar ainda mais
ampla sua tarefa. As duas possibilidades não são meras possibilidades. Dizem muito
da persona Torquato, esta que se revela nas variedades de tons de sua poesia.
E, como dizíamos, qualquer antologia falhará se as diversidades dos gestos
poéticos aí não se afinam.
E a antologia
agora apresentada cumpre bem a tarefa não fácil para o antologista. Estão aí
amostras da sonoridade verbal do poeta e raros exemplares que se confundem
entre o poema e a canção e que chegaram aos leitores através de outras
sonoridades. Isto é, estaremos à vontade para uma introdução ao universo poético
de Torquato Neto, incluindo sua condição disfarce ao não preencher nenhuma das
presenças com os textos mais próximos do fim da vida do poeta e que trazem certo
peso de alguém sem forças de continuar acreditando nas possibilidades oferecidas
pela vida.
Porque o
poeta não precisa responder pela condição total do eu, e é isso que o faz, no caso
em questão, sua multiplicidade – isto é, além da variação formal e estrutural
que dominou sua poesia – vale citar outro poema em que a voz poética se inaugura
pela negação do eu que se assume no poema:
“Escute, meu chapa: um poeta não se faz com versos. É o risco, é estar sempre a
perigo sem medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo
menos maiores, é destruir a linguagem e explodir com ela. Nada no bolso e nas
mãos. Sabendo: perigoso, divino, maravilhoso”. É de “Pessoal e intransferível”.
No poema citado,
novamente o eu-poético estabelece a orientação individual do eu – pelo sugerido
no título – mas preferirá a contradição da unidade pela manifestação da contínua
necessidade do múltiplo. Não tardará o leitor compreender que Torquato Neto foi
levado pelo excesso de ser. Ninguém resiste quando essa condição se mistura ao
modelo do obcecado que preenche a existência de todo criador. Cada poema seu se
reveste dessa tentativa de ser uma nova possibilidade para a poesia.
Nos Melhores poemas esta toda a sede que fez
a identidade do poeta. Mesmo que toda antologia não deixe de ser a resposta
para os gostos pessoais do antologista, há registros suficientes que anseiam
dizer este que doutra vez – para amarrar esse impasse de identidade e recobrar
um poema que precisaria aparecer nessa lista – preferiu negar-se: “EU NÃO
EXISTO. Não penso coisa alguma”. É o poema “Lembrança do tempo que não houve”.
Outra obra que prova o fulgor de Torquato Neto, o menino que na tessitura do
ser e do não ser tão logo se converteu numa ideia ao ponto de ser ponto
indispensável na constelação dos da sua geração. Sabemos que muito ainda
brilhará.
______
Melhores poemas: Torquato Neto
Cláudio Portella (Seleção e organização)
Global Editora, 2018
Cláudio Portella (Seleção e organização)
Global Editora, 2018
200p.
Comentários