Projeto Flórida, de Sean S. Baker



Por Pedro Fernandes



É verdade que não é de hoje a preocupação do cinema para com uma crítica ao modelo social vigente, este que tem sido vendido como o ideal de civilização e de liberdade dos indivíduos. Mas, o cinema estadunidense, porque integrado a tal modelo não foi de nenhuma maneira um precursor nessa crítica, embora tenha apostado de vez em quando em releituras de outras obras – e aqui podemos citar As vinhas da ira. A crise inaugurada no começo deste século terá sido o ponto crucial para o estabelecimento de uma cinematografia que deixa a mera idolatria de corte nacionalista para a partir do desenho de algumas situações propor um questionamento de determinados status quo

E esse movimento os estadunidenses acompanham a partir do cinema europeu, sempre mais afeito a uma lente realista e não meramente fabuladora da história. A safra nesta seara é grandiosa e poderíamos citar como exemplo mais próximo à proposta de Sean S. Baker, I, Daniel Blake, um filme britânico que trata sobre um homem de meia-idade em busca dos seus direitos como trabalhador e contribuinte social depois de se vê entre um impasse, encontrar outro emprego e não poder trabalhar por recomendações médicas depois de um problema cardíaco. A crítica aqui parece ser sobre os tão apregoados direitos e zelos do Estado para com seus indivíduos, transformados estes muito mais em elementos burocráticos e excludentes que realmente de respeito aos valores humanos.

No caso de Projeto Flórida, além de considerar este fator do indivíduo enquanto mera peça no extenso organograma da burocracia, há uma série diversa de críticas a um modelo social fadado ao fracasso – modelo que substituiu, paulatinamente, todos os elementos humanos pelo capital e tornou o homem escravo do dinheiro, situação que justifica toda e qualquer barbárie: do homem pelo homem e do Estado sobre o indivíduo. A situação aqui narrada consegue ser mais dramática que a do filme de Ken Loach porque toca noutra margem dos mais afetados quando o assunto é ainda a crise econômica: mulheres mães com baixa escolaridade e seus filhos.

O drama é extremamente bem construído porque Sean S. Baker ao invés de se deter no adulto evoca a situação a partir do olhar inocente da criança. Tal situação favorecerá ao espectador a ausência do dramático, uma vez prevalecer mais as situações do universo infantil, ainda não totalmente inteirado sobre o que é existir no mundo onde não se oferecem perspectivas ou estas são colocadas apenas nas mãos de uns poucos. É claro que nenhuma inocência do infante significa uma posição de alheado da realidade e dos problemas que cercam as vidas dos adultos. Pode-se perceber que Moonee, a garotinha que assume o papel de personagem principal da história, capta sensivelmente tudo que se passa ao seu redor ao ponto de se mostrar perfeitamente inteirada do que poderá acontecer a ela e sua mãe no desfecho da história. É quando, aliás, somos despertados para percebermos – com toda força – que não estamos diante de uma narrativa sobre o dia-a-dia de crianças na periferia, mas sobre a condição infantil marginal ou ainda a gênese de perpetuação da marginalidade através da impotência do Estado (e, claro desse modelo social que o sustém) em não oferecer as condições fundamentais que assegure ao cidadão o mesmo papel dado a uns poucos.

A mãe de Moonee teve no passado algum envolvimento com a polícia, está desempregada e vive de cometer as mais diversas atividades para conseguir custear semana a semana um quarto num hotel de beira de estrada. Quer dizer, tudo nesse universo forjado por Baker finda na margem: são duas mulheres condenadas socialmente ao degredo por um modelo que não privilegia a inclusão das duas e as ações se dão numa zona de periferia cujos limites são simbolicamente marcados ora pela imponência do universo Disney ora pelo abandono, a violência e a usura. Se as duas personagens, assim com as demais que são moradoras nesse pequeno hotel, significam toda a classe dos excluídos socialmente, o hotel e seu gerente personificam o próprio aparelho social, porque é o que julga trabalhar pela manutenção da ordem, é o que tudo vigia. Como não poderia faltar a um típico filme estadunidense, Bobby encarna aqui ainda a figura do homem sensível às agruras de Moonee e Halley.

Às crianças, vemos em Moonee, são dados alguns privilégios ainda não sepultados de um todo por este modelo social baseado na ordem e na aparência – vale recordar o pedido do proprietário do hotel a Bobby para garantir uma maneira de esconder as bicicletas que ficam pelos corredores do ambiente ou o desmesurado zelo do gerente para com o aspecto visual do lugar; um desses privilégios é  a possibilidade de transitar livremente por lugares não abertos aos adultos, outro é o de despertar em algumas certa compaixão dos adultos por sua condição de à margem, e ainda, para citar um terceiro, a capacidade que têm de tornar as situações ainda que dramáticas em situações modeladas pela imaginação. Elas estão e não estão nos parques Disney, a presença de Moonee favorece a mãe a vender mais perfumes e a celebração de um aniversário, que para uma pequena casta é desfrutada no glamour Disney, é ressignificada pelo que daí sobra, a queima de fogos.

Projeto Flórida se utiliza, portanto, da disparidade entre ricos e pobres para criticar que este modelo social conforme vendido como mais coerente é extremamente desumano e sustentado pela pura fantasia do Estado. Na prática, as condições são outras: os poucos privilegiados que não obedecem ao forjado pelas determinações estabelecidas pela lei precisam ser escondidos qual as bicicletas no hotel de Bobby ou as falhas que na pintura se conserta com tinta nova. A política do atual modelo é sustentada pelo disfarce e pela manipulação. Quem pode revelá-la? Eis aqui um papel caro à arte e obras como a de Baker estão incluídas neste esforço – este, sim, humano – de dizer o quanto de hipocrisia sustenta nossa civilização e o quanto corrigimos nossos fracassos com a mentira porque errar foi transformado em atitude para os incapazes. Claro que continuaremos de mal a pior se presos a esse modelo. Ou seja, o pior pode ainda estar por vir. 


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